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segunda-feira, 19 de abril de 2010
o olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 3
Cynthia Hamlin
Um dos problemas com a psicologia de James diz respeito ao seu individualismo (Lewis & Smith, 1981), o que impossibilita uma concepção de sujeito que transcenda o problema subjetivismo-objetivismo. De fato, o sujeito de James é hipossocializado e acredito que sua concepção de mente como uma esfera privada que se baseia na noção de “isolamento absoluto” da consciência e do eu é tão solipsista que tornaria impossível mesmo uma disciplina como a psicologia, dado que nenhuma comunicação seria possível. O problema que o individualismo representa para uma abordagem realista é que ela nega os poderes causais tanto das estruturas sociais quanto da cultura, tratando-as como epifenômenos e levando a um tipo de reducionismo que Archer chama de “conflação de baixo para cima” (Archer, 1995; 2000).
Peirce tinha aversão suficiente ao solipsismo para afirmar que tinha vontade de substituir o nome de sua filosofia por pragmaticismo, um nome tão feio que ninguém (leia-se, James) ia querer se apropriar dele (Lewis & Smith, 1981). (Fico imaginando o que ele teria pensado se tivesse lido Rorty...). A versão de Peirce do pragmatismo, a semiótica, enfatiza a realidade (objetiva) dos signos, que são, por este motivo, essencialmente públicos ou coletivos. Isso significa dizer que o pensamento, que é nada mais do que um conjunto articulado de signos, é algo privado, mas faz uso de meios públicos. Isso faz toda diferença, pois pressupõe a socialização do sujeito, admitindo a influência dos fatores estruturais e culturais.
Uma das características da filosofia de Peirce é que ele não parte dos problemas “tradicionais”, epistemológicos, da filosofia moderna (“como conhecer isso?”), mas retoma o debate medieval, grandemente apoiado nos clássicos gregos, que foca a questão ontológica realismo/nominalismo (“o que é isso?”). Não é de surpreender, portanto, que, de acordo com Archer (2003), ele tenha sido o primeiro filósofo ocidental a retomar os insights da filosofia clássica acerca da “fala silenciosa”, transformando-os em uma teoria da conversação interior. Aliás, se me permitem um parêntesis, talvez à exceção de Dewey, os pragmatistas tinham uma queda por práticas e conhecimentos “não-modernos”: o conceito de fluxo da consciência de James apóia-se fortemente em práticas budistas e o moço era chegado em formas não-ortodoxas de expansão da consciência a fim de compreender o funcionamento da mente humana, como o uso de beladona e de óxido nitroso (gás do riso). (Seria James um tanto bicho-grilo ou isso seria uma forma de pós-colonialismo avant la lettre?).
Voltando a Peirce, a ideia da “fala silenciosa” é tomada de Platão e, juntamente com sua noção de que todo pensamento é um signo, isso tem conseqüências importantes. Em suas palavras:
O pensamento, afirma Platão, é a fala silenciosa da alma consigo mesma. [...] Da proposição que todo pensamento é um signo, segue que todo pensamento deve se referir a um outro pensamento, deve determinar um outro, dado que essa é a essência do signo. (Peirce apud Short, 2007:34).
Esta última frase introduz a questão da sequencialidade do pensamento e, assim como o dialogo, ele envolve uma alternância entre as falas e implica numa “escuta”: “dado que a alternância é intrínseca à conversação, dado que falar e responder são sequenciais e não simultâneos, o problema intratável de se ter que se postular uma consciência dividida não se coloca” (Archer, 2003: 66). A alternância, por seu turno, implica na capacidade do sujeito de se projetar, por assim dizer, no tempo, o que leva Peirce a conceber o pensamento como um dialogo interior entre diferentes “fases” do ego. Essa diferenciação do ego em fases - na verdade uma distinção meramente analítica que não comporta reificação (o self é contínuo, constituindo uma unidade, da mesma forma que o ego freudiano ou o self de Mead) - baseia-se em duas proposições: a primeira é que um self pré-existente necessariamente antecede as atividades dialógicas que o transformam; a segunda, que o self elaborado (modificado) necessariamente se sucede àquelas atividades (Ibid. 71).
Na linguagem da semiótica, essas “fases” são definidas em termos de um esquema tripartite que envolve um “objeto” (ou um referente), um “signo” (que representa o objeto em termos de algo diferente) e um “intérprete” (aquele sobre o qual um efeito é exercido). Archer, embora reconheça que Peirce nunca utilizou esses termos, traduz o esquema em termos de um “Mim” (objeto), o “Eu” presente (signo) e um “Você” futuro como um intérprete. O Mim que, grosso modo, equivale ao que Peirce chama de “self crítico”, representa basicamente um resumo do passado, o ponto final de ciclos semióticos anteriores. Em linguagem mais simples, o Mim é um conjunto de hábitos ou disposições do sujeito no sentido de responder de uma maneira particular a determinadas circunstâncias, hábitos esses que representam o resultado de nossas interpretações em contextos anteriores. Assim, quando nos perguntamos o que fazer em uma determinada situação, é a este Mim ou “self crítico” que recorremos: é ele que resume a nossa experiência passada. Ele dá conta, portanto, de nossas ações e pensamentos habituais, rotinizados, o que sugere que é “crítico” no sentido específico da incorporaração de normas, crenças e valores que restringem (embora também capacitem) comportamentos (como o superego freudiano).
O Eu de Peirce, por outro lado, representa uma fonte de criatividade e inovação (ele é o único capaz de ação, já que se encontra no presente) e, diferentemente do Id freudiano, não diz respeito a um conjunto de pulsões primárias (e inatas), mas a poderes de transformação que se atualizam (no sentido do realismo critico, i.e., se “manifestam”) como resposta aos problemas colocados pelo ambiente sócio-cultural. São, neste sentido, as contingências dos sistemas sociais e culturais que, por seu caráter essencialmente aberto, possibilitam a reflexividade e a ação humana. O Você, por seu turno, diz respeito à projeção de nossos selves no futuro em função dos problemas colocados ao Eu. À medida que este Você é delineado a partir de um conjunto de possibilidades de selves futuros, ele torna-se o Eu do presente.
A conversação interna envolve, então, dois momentos, analiticamente separados: o primeiro diz respeito à relação entre o Eu e o Mim (como quando nos damos conta de que nossas formas rotineiras de agir não mais nos permitem “prosseguir” no fluxo de nossas ações e tentamos nos convencer que deveríamos adotar um curso de ação alternativo); o segundo momento envolve uma conversação entre o Eu e o Você (como quando usamos nossa imaginação para projetarmos como seria se fôssemos ou agíssemos de outra forma). Obviamente que nem tudo é fala: existem as imagens, muitas delas sem direção ou propósito específicos.
O agente Peirciano é, ao mesmo tempo, ativo e passivo: afetado por elementos externos, mas capaz de alterar sua situação. Em outros termos, Peirce tem uma concepção de agente que possibilita relacionar os “poderes” (ou capacidades, ou modos de ação específicos) particulares da estrutura social, da cultura e das pessoas. Mas não fica claro como os poderes do agente humano permitem que ele transforme não apenas a si mesmo (o que é explicado por Peirce), mas o seu ambiente, sobretudo, o social. Isso porque sua ênfase não recai na questão sociológica de saber como os atores usam a reflexividade no sentido de reavaliar seus projetos pessoais à luz de suas circunstâncias sociais e vice-versa. Esta é a principal tarefa que Archer se coloca em sua teoria da agência humana ao substituir a noção de introspecção pela de conversação interna. Quem sabe um dia eu escreva algo sobre isso por aqui.
Referências
ARCHER, Margaret (1995). Realist Social Theory: the morphogenetic approach. Cambridge, Cambridge University Press. ________ (2000). Being Human: the problem of agency. Cambridge, Cambridge University Press. ________ (2003). Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press. COLLIER, Andrew (1994). Critical Realism: an introduction to Roy Bhaskar’s philosophy. Londres e Nova York, Verso. LEWIS, David; SMITH, Richard (1980). American sociology and pragmatism: Mead, chicago sociology, and symbolic interaction. Chicago, University of Chicago Press. SHORT, Thomas (2007). Peirce’s Theory of Signs. Cambridge, Cambridge University Press.
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