terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Entre o Ser e a Linguagem: a verdade das variações de Goldberg (final)


Gould interpreta o Cravo-Bem-Temperado, de Bach, considerada uma das maiores obras contrapontísticas.

A metáfora do jogo a que me referi no post anterior para indicar a relação entre a interpretação de Glenn Gould e a própria obra de arte (as Variações de Goldberg) traz duas questões importantes para as disciplinas interpretativas como, acredito, é o caso da sociologia. A primeira delas diz respeito ao problema do nominalismo e do relativismo, um problema que pode ser resumido na célebre frase de Nietzsche: “não existem fatos, apenas interpretações”. A segunda diz respeito a uma concepção de subjetividade que não se apóia na oposição sujeito-objeto fundamentada, em última instância, na distinção cartesiana entre mente e matéria. Obviamente não poderei resolver essas questões aqui e, neste sentido, meu objetivo é bastante modesto: identificar alguns dos problemas centrais à relação entre realidade e linguagem na obra de Gadamer.

Voltemos a Gould. Quando ouvi as duas interpretações das Variações, algo me fez preferir uma à outra e fiquei me perguntando o que seria. Esse é um problema bem conhecido em relação à estética: é possível afirmar que uma obra (ou uma interpretação) é melhor ou, em algum sentido, superior a outra? A crermos em Gadamer, sim. Antes de mais nada, é preciso considerar que sua estética preocupa-se com a dimensão cognitiva da experiência artística. Como extensivamente argumentado em Verdade e Método, a arte proporciona um tipo específico de encontro com a verdade. Ao contrário da ciência, que considera a verdade como adequação (adaequatio) entre o pensamento e os objetos do mundo (a verdade do enunciado, que ocorre no juízo), a arte, a experiência histórica e a linguagem representam um encontro com a verdade concebida como desocultação ou desvelamento. Esta noção de verdade (aletheia, ou, numa tradução literal, "desvelamento") diz respeito ao "ato de trazer algo da escuridão para a luz" (Lawn, 2007:84) e, especialmente no caso da arte, implica num envolvimento emocional que, parafraseando Jonatas em um de seus posts sobre o jogo, falaria da nossa forma de ser no mundo, de nossa verdade mais profunda enquanto seres humanos.

Neste sentido, a arte, diferentemente da ciência, proporciona aquilo que já defini como “experiência hermenêutica”, uma experiência negativa, no sentido de perturbar e desestabilizar nossas expectativas culturais mais arraigadas. Trata-se, portanto, de uma abertura para o diferente, para aquilo que está escondido, em parte, pela linguagem. Mas esse “diferente” não vem apenas do intérprete. As duas interpretações que Gould faz das Variações nos (co)movem de maneiras distintas porque revelam coisas distintas acerca da música de Bach (e de nós mesmos), embora ele (ou a linguagem que ele usa) seja o veículo daquilo que é revelado. Há aqui uma sutileza na relação que, a partir de Gadamer, pode-se estabelecer entre o fato (a música de Bach) e sua interpretação: embora a música que não é tocada não é música, é a própria música que se revela por meio do desvelamento interpretativo de Gould. Neste sentido, como defende Jean Grodin (2005), à afirmação de Nietzsche de que “não existem fatos, apenas interpretações”, contrapõe-se a visão gadameriana de que não existem fatos senão por meio da interpretação, isto é, não existem fatos (para nós) sem uma certa linguagem que os expresse.

Acredito que o esforço de Gould consiste na tentativa de desvelar aspectos distintos das Variações. Mas como em qualquer interpretação, nenhum significado pode ser completamente revelado. Toda linguagem e toda interpretação, assim como um jogo de luz e sombra, esconde alguns aspectos da realidade à medida que revela outros. Mas existem limites, dados pelo próprio objeto, pelo próprio fato, que não podem ser ultrapassados pelo intérprete, sob pena de afastá-lo da verdade. Como afirma Grodin (2005), “uma interpretação que não seja orientada para a verdade é um exercício vão”. Talvez seja por esta razão que, ao comentar acerca de sua interpretação da Variação número 15 efetuada em 1955, Gould afirme que ela era “excessivamente romântica”, portanto “falsa” quando aplicada a Bach. Talvez de forma mais significativa, ao falar de sua preferência pelas interpretações mais lentas da maturidade, Gould indica claramente que um dos elementos centrais no tipo de música que lhe interessa é o contraponto (o contraponto envolve duas ou mais melodias independentes, tocadas simultaneamente) e isso implica, segundo Gould, um alto grau de “deliberação” que não é possível com uma pulsação muito acelerada.

O que temos, portanto, é uma mistura do elemento objetivo e subjetivo, do que diz respeito à obra e do que diz respeito ao intérprete (no que diz respeito à subjetividade do intérprete, uma questão ainda me persegue: qual o significado do reconhecimento, por parte de Gould, da dimensão táctil de seu self jovem e o não reconhecimento de seu espírito? Essa fica para outra ocasião). Não é qualquer interpretação que serve e, ao contrário do relativismo do niilismo nietzschiano, as diversas interpretações não se equivalem porque nem todas revelam a obra em si. Diferentemente de Nietzsche, para quem a verdade deve ser desconstruída como pura ilusão, para Gadamer, a verdade é a revelação da realidade. Resta saber que realidade foi essa que Gould me revelou na gravação das Variações de 1981. Mas isso é segredo.

Referências

Grodin, Jean (2005) Vattimo’s Latinization of Hermeneutics: Why did Gadamer resist Postmodernism? In: S. Zabala (ed.), Weakening Philosophy. Festschrift in Honor of Gianni Vattimo, Mc- Gill-Queens University Press.

Lawn, Chris (2007). Compreender Gadamer. Petrópolis: Vozes.

13 comentários:

Le Cazzo disse...

Seus últimos posts me fizeram ter vontade de assistir novamente a uma conversa entre Baremboin e Edward Said sobre linguagem e experiência musical. Se você não essa conversa viu, recomendo. Está no disco que o maestro argentino gravou com a West-Eastern Divan Orchestra - projeto maravilhoso que, por si, merece ser conhecido. Jonatas

Cynthia disse...

Ôôô, Jonatas, e eu achando que você ia resolver o problema da continuidade do self para mim!

Não sabia da existência dessa conversa e fiquei curiosa. Você tem esse cd?

Largou aquela criatura vil (a virose), ou melhor, ela largou você? Melhoras!

Robson Fernando de Souza disse...

Cynthia e Jonatas, muito obrigado por apreciarem o blog Consciência Efervescente. Fico honrado por vocês terem essa apreciação.

Aliás, o blog mudou para o Arauto da Nova Consciência. O endereço é o mesmo (apenas sem o www).

Abração

Robson Fernando de Souza disse...

Aliás, desculpem porque eu só notei agora.

Le Cazzo disse...

Oi, Robson,

Nós é que agradecemos tê-lo compartilhado conosco. Para nós é um prazer apoiar as iniciativas dos nossos alunos e alunas.

Abçs e sucesso no novo blog,
Cynthia

Le Cazzo disse...

PS. Se você me permite uma opinião, acho que eu preferia o nome antigo. O novo tem um quê messiânico, você não acha?

C.

Anônimo disse...

Cynthia,
A verdade das variações de Goldberg é mais do que desvelamento, é um deleite. Fico pensando na verdade do pobre Goldberg, submetido à insônia de um aristocrata diplomata, ainda por cima russo! En passant: adoro os russos; que ninguém me acuse de racismo!
Seu texto é o'timo; ainda bem que o relato'rio da Capes não o atrapalhou tanto. Você inicia seus cursos de epistemologia assim? Abraço, Tâmara

Le Cazzo disse...

Oi, Tâmara,

Legal que você tenha gostado do texto: deu para dar uma relaxada do relatório e acho que ele pode servir de base para algo um pouco mais sério no futuro.

Quanto às minhas aulas de metodologia (epistemologia), nem sempre dá para trabalhar as questões que precisam ser vistas no programa a partir de questões como a que coloquei aqui. Em primeiro lugar porque eu não sou assim tão criativa; em segundo lugar porque temos que ver uma bibliografia relativamente extensa. Na verdade, o uso de material alternativo em sala de aula sempre é uma faca de dois gumes: sem tempo suficiente para trabalhar as questões teóricas e metodológicas suficientemente, corre-se o risco de transformarmos as aulas em conversa de boteco. No final das contas, as pessoas também têm que aprender a pensar abstratamente, não é?

Mas, na medida do possível, tento trazer um elemento ou outro do cotidiano e/ou do mundo das artes. Por exemplo, após trabalhar Dilthey e Rickert na graduação, gosto de passar um filme chamado "Treze homens e uma sentença" para eles analisarem a partir de categorias da sociologia interpretativa. Em fundamentos, às vezes levo uma reprodução de "a plantação de cana-de-açúcar", de Diego Rivera, para que eles analisem as relações sociais retratadas no quadro a partir dos principais paradigmas teóricos trabalhados no curso. Geralmente, tenho bons resultados, mas já me aconteceu de um aluno levantar-se indignado e perguntar como eu, "uma professora universitária, ousava levar um quadro de um porco chauvinista" como Rivera para uma sala de aula. Paciência...

Mas para quem consegue comparar Gilberto Gil e Zedine Zidane, você deve fazer isso muito melhor do que eu, né?

Beijo,

Cynthia

Robson Fernando de Souza disse...

Aliás, Cynthia, mudei agora o nome pra Arauto da Consciência. Realmente achei que o "nova" ali dava a impressão de ser um movimento new-age tosco. E não é preciso inaugurar uma consciência nova pra perceber que usar "homem" como igual a "ser humano" ou financiar a crueldade contra animais são paradigmas destrutivos.

Abs

Cynthia disse...

Robson,

eu acho que fica um pouco melhor, mas o problema que eu vejo é com a palavra "arauto", afinal de contas, a idéia não é simplesmente transmitir as idéias e valores dos outros, mas refletir sobre as coisas. Qual o problema com "consciência efervescente"? O nome era tão bonitinho...

Robson Fernando de Souza disse...

Eu preferi modernizar o blog e aproveitei e mudei o nome. Achei que "consciência efervescente" era muito individualizado.

E não creio que algo, só por ser um arauto, não possa convidar à reflexão. A ideia transmitida mexe com a cabeça da pessoa, a não ser que ela resista à conscientização.

Pelo menos é assim que vejo.

Sr. Anísio disse...

Bem,

Que haja interpretação antes do fato, não entendo o temor, pois, se há linguagem e sentido, só se é "fato" entrando nessa ordem, enfim, podendo ser dito. Nunca pensei em Nietzsche como um "relativista", ou nunca consegui desvelar no "relativismo" um fim a quaisquer problemas, pois, se é relativo, é sempre relativo à algo, alguém, alguma coisa. O "relativismo" é o intermezzo, é o entre, nunca o fim, jamais se encerra alguma idéia dizendo que ela é relativa.
E quanto a questão de se julgar uma estética pela fidelidade ao século, isso realmente não dá. Bach sequer tocava piano, não me lembro exatamente para arriscar uma afirmação peremptória, mas o piano, provavelmente não existia na época de Bach. E tem outros complicadores em música. O "tempo" do compasso é absolutamente "relativo", um tempo não é um segundo e nunca foi. E fora da música a época é um fardo, não se escolhe a pertença, qualquer interpretação (ou apresentação, ou representação) tratá a marca do seu tempo, de sua circulação, se seu logar social. Não, jamais ouvimos J.S. Bach.
Mas, queria dizer também que gostei muito dos textos, e das músicas, conhecia apenas as de oitenta.
Bonito e instigante texto. Há sempre mais. Mas, depois.

Le Cazzo disse...

Caro Sr. Anísio,

Obrigada pelo belo comentário. Não há, de minha parte, temor na interpretação ex-ante, desde que se mantenha a abertura para o novo, claro. Concordo com você que só há fato se há sentido, mas também acho que os fatos são construídos (a posteriori) e não apenas constatados (quem disse isso? Canguillem?). E você tem razão, o piano não existia na época de Bach. Aliás, Gould tem uma versão para cravo das variações, mas eu acho o piano mais "verdadeira". O que quer que isso signifique.

Abraço,
Cynthia