quinta-feira, 21 de maio de 2009

Notas sobre "futebol e violência" -- II



Do futebol (primeiro clichê)...


O que significa dizer que a violência vem do futebol? Bem, seguindo o raciocínio do artigo anterior, seria alegar que a violência é intrínseca ao futebol, ou seja, que não é externa ao mundo futebolístico, e sim, e até mesmo, constituinte do conteúdo esportivo do futebol.

Tal alegação, no entanto, não é tão evidente assim, pois as diversas posições que se nutrem dessa inferência são nuançadas, e a noção de violência é, geralmente, introduzida de forma indireta e latente. Seria raro encontrar uma posição colocando, de forma explícita, que o futebol é explicado pelo conceito de violência; na verdade, a violência é vista muitas vezes como uma conseqüência inevitável do futebol.

De todo modo, para fins de exposição, analisarei algumas posições teóricas - comumente encontradas no meio acadêmico - que, direta ou indiretamente, consideram a violência como intrínseca ao futebol. Por exemplo: teorias que analisam o fut como "pão e circo" ou "ópio do povo", geralmente colocado como fazendo parte do aparato de "dominação de classe"; teorias que definem o fut como uma instituição que sublima a violência, através da própria violência simbólica desse esporte, afirmando o futebol como uma "guerra feita por outros meios"; ou ainda teorias que continuam a tradição teórica da psicologia social de criminólogos e psiquiatras do final do século XIX, julgando o fut como uma degradação do tecido social, cuja massa de torcedores é vista como uma horda primitiva, anárquica e caótica, em que toda violência é possível e temida.

Analisarei especialmente essas três posições, até porque são as mais conhecidas, já fazendo parte, digamos assim, do patrimônio cognitivo do senso comum; em suma, podem ser consideradas como clichês. Aliás, nada contra os clichês, aviso logo, pois podem servir como inspiração a um argumento ou mesmo como fonte de esclarecimento e conhecimento -- o futebol, por exemplo, é um mar de clichês e, convenhamos, sem eles, o que seria de nós, opinantes do fut?

Contudo, o clichê geralmente é redutor, talvez porque precise pagar o preço da simplicidade; afinal, é uma fórmula que precisa ser simples para ser repisada e popularizada. O perigo é que o clichê parece ser uma meia-verdade, isto é, não seria uma mera mentira, na qual a verdade apenas está sendo negada e, portanto, continua embutida na negação; não, a meia-verdade está aquém da veracidade e além da mentira, sendo um labirinto onde se procura a verdade, mas não se sabe se a busca é vã ou realmente sem propósito.

"Futebol é pão e circo" seria um exemplo perfeito de clichê, a começar pela sua longevidade: panem et circenses eram responsabilidades do imperador romano (na verdade, de toda a nobreza romana), mas o pão e o circo foram, na época, além de uma tentativa de apaziguamento do furor plebeu (principalmente na decadência do império romano), também um dom à coletividade, um mecenato à cidade. Visitando cidades antigas gregas e romanas, percebe-se que vários prédios públicos foram doações de "notáveis", perfazendo um costume provavelmente relacionado a uma moral de "classe" -- tal fato acontece e aconteceu na dita modernidade; no Brasil, por exemplo, vêem-se várias doações do tipo, principalmente vindas da liberalidade do nosso capitalismo emergente.

Com o surgimento da democracia e do Estado de Direito, a "doação" tornou-se "intolerável", saturando-se de desconfiança cívica, e o "dom" virou sinônimo de troca de favores - no sentido antigo, seria "pão e circo" a troca de favores que acontece no dia-a-dia entre os usuários e a polícia rodoviária. Evidentemente, as "doações" continuam, embora na surdina, principalmente em países onde o Estado de Direito é apenas de direito e não de fato; mas, com as devidas exceções, tais "doações" são vistas com maus olhos.

Mudando historicamente as conotações públicas e privadas do termo "doação", a acepção da expressão "pão e circo" passou a significar quase exclusivamente "apaziguamento das massas". Se subentende-se o que significa "apaziguamento", deve-se concluir que as "massas", por um motivo ou por outro, geralmente estão "coléricas" com alguma coisa -- como toda "elite" tem um tropismo pela paranóia, deve-se entender que a "fúria" popular invariavelmente vai de encontro ao status quo da sociedade.

Aparentemente, a causa do furor popular é sempre um mistério para os gentis-homens -- "por que urram tanto?" -- perguntam. "Estão com fome?" "Que se dê pão" - diz o papa-figo da Federaçõ Pernambucna de Futebol. "Estão gritando ainda?"... "Que se dê circo" - diz o rei da CBF. Nesse sentido, "pão e circo" significa um tipo de lazer coletivo no qual a coletividade participante submete-se a um mecanismo qualquer de "apaziguamento" de seu furor e/ou de sua tendência à sublevação, sofrendo, com isso, um "afastamento" de seus verdadeiros interesses.

Em suma, a "massa" distrai-se e se esquece da dura realidade -- tal visão pode-se misturar teoricamente com a teoria da catarse e da sublimação, como veremos mais adiante. O futebol, enquanto "pão e circo", seria uma espécie de ópio que anestesiaria os torcedores, desviando-os das mazelas cotidianas e de uma conscientização política da realidade. O futebol produziria, assim, uma "despolitização" das massas, fazendo parte do aparato simbólico de dominação das "classes dominantes". O futebol, enquanto "pão e circo", faria parte das diversas formas de "violência simbólica" que alienam as massas, os trabalhadores e quejandos.

Bem, pode-se fazer várias críticas a essa posição. Uma das observações possíveis seria bem pessoal: minha sensação é a de que, se posição acima for verdadeira, eu seria, digamos assim, um parvo. Sim, um parvo. Bem, primeiro implica dizer que preciso ser apaziguado de alguma forma, mesmo que minha mãe repita que fui e sou um rapaz calmo e pacífico -- de qualquer forma, o famoso "apaziguamento das massas" está indo de água abaixo: o torcedor violento entra violento no estádio e sai tão violento quanto. Segundo, que as partidas de futebol "distraem-me" ao ponto de esquecer a dura realidade brasileira e a existência dos Ricardo Teixeira -- em suma, vou ao estádio e volto "limpo" de rancor e de raiva contra o mundo.

Não sei se é porque tenho um ressentimento danado contra o establishment ou porque seja vacinado contra a alienação, mas o problema é que não me esqueço de nada! Posso me distrair, é claro, e o futebol é uma forma de distração, mas nenhum mecanismo cognitivo entorpece meu senso crítico por causa do futebol.

Mas você é um pequeno-burguês! - exclama um espírito de porco (confesso que, depois da vitória dos palmeirenses, passei a valorizar a porqueira da vida).

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Certo, sou um pequeno-burguês, e sendo assim, tenho uma vida melhor, uma educação formal e mais acesso às informações, podendo combater um pouco mais eficazmente a "alienação". Mas isso quer dizer que o "popular" é um débil mental que vai ao estádio e "esquece" que é miserável, que há pobres e ricos, sacanagens, dominação, repressão, exploração nesse mundo? A "alienação" causada pelo efeito "pão e circo" do futebol seria seletiva, ao ponto de poupar um pequeno-burguês, mas não um "plebeu"? Um mecanismo seletivo de classe?

Evidentemente, há imbecis no povo, tanto quanto há na pequena ou grande "burguesia"; afinal, a imbecilidade não é um monopólio de classe. Mas não consigo compreender - ou, pelo menos, até hoje nunca li tal explicação - como funciona esse mecanismo cognitivo de "despolitização" do torcedor. Seria o espetáculo em si? Mas como? A bola teria uma função hipnótica, causando um efeito de distanciamento da realidade? Mas como? Seria o efeito de distraimento?

Confesso que, durante uma partida de futebol, esqueço-me momentaneamente do DEM e quejandos, mas declaro que faço a mesma coisa quando escuto música, quando assisto a um filme no cinema, quando estou lavando os pratos... Em suma, geralmente o ócio e o lazer distraem-me o suficiente para esquecer-me momentaneamente das mazelas do cotidiano e da dura realidade brasileira. No fundo, não é propriamente um esquecimento, e sim uma mudança de foco e de atenção. Partindo do princípio de que a normalidade da cognição humana não passa necessariamente pela obsessão, podemos supor que não ficamos o tempo todo concentrados num tema ou assunto. Assim, mudar de tema ou se distrair com uma atividade de lazer, isto é, assistir a um jogo de bola, por exemplo, não significa um esquecimento ou um distanciamento duradoiro da realidade.

A teoria do futebol como "pão e circo", advogada por alguns setores da esquerda, retoma mutatis mutandis o velho preconceito conservador contra o lazer das classes populares. Se o conservador gostaria de ver, no fundo, o trabalhador não parando de trabalhar (férias? Que desperdício!), o "esquerdista" gostaria de ver o trabalhador não parando de... militar. Nesse sentido, o futebol ocuparia o tempo da militância, inviabilizando a luta de classes -- quem não se lembra da "proibição" de torcer pelo Brasil na copa de 70, quando nitidamente a ditadura estava instrumentalizando as vitórias da canarinha?! O conservador e o "esquerdista", assim, reencontram-se numa velha encruzilhada, onde reproduzem uma velha mania elitista: a dos educadores das massas - essa plebe que, se não trabalha, vai gastar o dinheiro na bebida; se não milita, vai alienar-se no futebol!

Contudo, não nego que o futebol também seja um instrumento de controle social, embora tanto quanto as férias ou a escola. Tais instituições, incluindo o fut, não têm uma natureza fixa; nesse caso, uma natureza alienada. São espaços coletivos que podem ou não ser instrumentalizados (à direita ou à esquerda), dependendo da conjuntura histórica. O fut, como manifestação coletiva da vida em sociedade, oferece um "campo" onde as pessoas expressam sentimentos, emoções e descontentamentos que podem ou não ser vinculados a outras "instituições sociais", como a política. E tais vinculações são históricas, e não ontológicas, isto é, não são dadas de forma evidente como se fizessem parte da natureza do futebol.

Por que reduzir o ato de torcer por um clube de futebol a uma compensação ilusória? Por que transformar o gosto pelo espetáculo num distanciamento da realidade? É inegável o prazer que um torcedor sente em assistir a uma partida de futebol, mas duvido muito que tal hedonismo apague-lhe a diferença entre a diversão e o cotidiano, independentemente do fato de viver numa sociedade onde seu dia-a-dia tem como horizonte a exclusão social e a quase ausência de mobilidade social. Não é porque gritei feito um louco pelo Santinha, exclamei invectivas febris contra a Coisa ou saí completamente extenuado depois de uma vitória ou de uma derrota do meu clube, que perdi a minha capacidade prosaica de dar sentido à minha vida e às minhas preocupações.

Enquanto torcedor, não estou condenado necessariamente à passividade política, à alienação e à reprodução das relações de dominação. Degusto o "pão" e vou ao "circo" -- mas juro que a minha alma não fica corrompida, mesmo voltando "pra lá de Bagdá" ao lar; em suma, permaneço intacto espiritualmente. Pelo menos, é o que descubro no outro dia quando -- para o bem ou para o mal -- olho-me no espelho...

Já, já, continuo...

Artur Perrusi

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