segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

domingo, 20 de janeiro de 2008

Consertando o Equilíbrio de Gênero na Comuna Smurf



Transcrevo, abaixo, notícia importantíssima que recebi por e-mail, retirada do jornal alemão Der Spiegel. O Cazzo também é cultura!

A colônia dos Smurfs azuis supostamente é a concretização perfeita do comunismo que deu certo, com Papai Smurf, com barba branca e calças vermelhas, simbolizando Karl Marx. Mas onde estão todas as garotas?

R. Jay Magill Jr.
Em Berlim

Tra-la-la-la-la-la, la-la-la-la-la. Vida livre, música e cogumelos. Para muitos, os Smurfs são a concretização perfeita da utopia de Marx e Engels.

O dinheiro não significa nada na sociedade Smurf de 100 pessoas, onde a propriedade pertence a todos e não há moeda. O trabalho comunitário é realizado junto. As divisões de trabalho são claras: Habilidoso (comerciante), Fazendeiro (planejamento agrícola), Gênio (intelligentsia), Harmonia (as artes) e assim por diante. [Como é isso mesmo??].

Todo mundo é igual, até mesmo na idade: ativos 100 anos (exceto, Papai, a suposta personificação de Karl Marx; ele tem 542). Apenas o maligno feiticeiro Gargamel e seu gato Cruel -considerados agentes do capitalismo global- podem perturbar a bem-aventurança socialista da sociedade.

Só há um problema neste utopia marxista -onde estão todas as mulheres? Até agora, o refúgio coberto de musgo contava com apenas uma garota proeminente: a Smurfete, com seu cabelo loiro esvoaçante, salto alto e movimentos femininos. (Apesar de ninguém se lembrar delas, havia na verdade três mulheres Smurfs, segundo a enciclopédia online Wikipedia.)

Mas agora tudo vai mudar. Um novo filme dos Smurfs, o primeiro de uma trilogia, apresentará uma população estrangeira ao reduto dos baixinhos: mulheres.

"Ocorreram grandes mudanças nos valores socioculturais nos últimos 20 a 25 anos", disse Hendrik Coysman, chefe da International Merchandising Promotion & Services, a empresa que é dona dos direitos dos Smurfs, em uma coletiva de imprensa em Bruxelas, na segunda-feira. "Uma delas foi a valorização das mulheres." Coysman prosseguiu: "Haverá uma maior presença feminina na vila dos Smurfs, e isto, é claro, será uma base para novas histórias. Isto provavelmente virará de cabeça para baixo certas situações tradicionais dentro da vila".

Malgorzata Tarasiewicz uma especialista em política da União Européia e gênero e diretora do Fórum Feminista Europeu, com sede em Amsterdã, acha que os Smurfs podem dar o exemplo. "Mesmo no mundo dos Smurfs é aceito o que muitos políticos e outros tomadores de decisões ainda não querem entender: que as mulheres necessitam de igualdade e representação igual", ela disse à "Spiegel Online" na sexta-feira. "Se tornou um fato difícil de ignorar, o de que as mulheres estão mais visíveis na esfera pública, na mídia e nos negócios -a ponto de até contos de fadas precisarem refletir este importante desenvolvimento da civilização."

A International Merchandising está celebrando o 50º aniversário dos Smurfs em 2008 com um "Feliz Dia Smurf", que ocorrerá durante todo o ano. Coletivas de imprensa em Berlim, Bruxelas e Paris, uma exposição, um dirigível Smurf gigante, um site e uma parceria com a Unicef -que compartilhará dos lucros- tudo faz parte da comemoração.

Detalhes de um futuro filme e outras surpresas estão sendo mantidos sob sigilo na International Merchandising. Mas se sabe que o retorno dos Smurfs às telas, em um desenho animado por computador em 3D com lançamento previsto para novembro de 2008, está sendo desenvolvido pela unidade Nickelodeon Films da Paramount Pictures, produzido por Jordan Kerner ("A Menina e o Porquinho", "Inspetor Bugiganga").

E com rumores de que o filme dos Smurfs contará com as vozes de algumas das mulheres mais talentosas de Hollywood, incluindo Sally Field, Lucy Liu, Julia Sweeney, Jessica Simpson e Marisa Tomei, as coisas estão prestes a ficar muito mais modernas na casa de cogumelo.

Tradução: George El Khouri Andolfato

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A Natureza do General McArthur



Você quer saber o que é real, meu filho? Pula do vigésimo de cabeça na esperança de que tudo seja construto social para ver... Tenta comer um cento de manga-espada no intervalo de uma hora para ver o resultado... Come todos os quitutes - "passarinha", um delicioso "figado de alemão" - no Bar do Bigode e procura sustentar com o máximo de coerência que essa estória de disenteria é algo cultural... Procura fecundar teu parceiro gay e espera nove meses... O(A) leitor(a) vai desculpar a qualidade dos exemplos, mas grosso modo é deste tipo de argumento que nos valemos sempre que procuramos, eu e meu amigo, o general McArthur, pôr um limite a esse tal construtivismo que grassa as ciências sociais. No final das contas, o General é mais refinado que eu. “Teu anti-depressivo está funcionando bem? Então, há de haver algum limite pare esse tal culturalismo...”

O problema é que o que parece um argumento pragmático, não deixa de se valer de algumas pressuposições metafísicas que nunca emergem como tal – o que não é de espantar, já que estamos tentando nos concentrar em um argumento pragmático que nos livre da verbosidade gorda de uma certa tradição filosófica, sociológica. Há algo mais metafísico que o positivismo comteano? Sua inteção, entretanto, era nos livrar do blá-blá-blá da filosofia. Insatisfeito conosco, por antecipação, um tal Martin Heidegger escreveu um livro interessante nos idos de 1959. Li o Introdução à Metafísica há coisa de uns dez anos e me lembro um tanto vagamente do argumento do livro – o que é uma lástima, pois a obra é mesmo importante para a pesquisa que realizo no momento. Uma parte importante do livro, de qualquer modo, é dedicada à questão da diferença entre o conceito grego de physis e o conceito latino de natura. Se devemos pensar de modo sólido o que é metafísica (meta ta physis), raciocina Heidegger, devemos começar por inquirir acerca do mundo físico, uma vez que é ele que a pergunta “por que há seres e não o nada?” pressupõe. Essa pergunta filosófica fundamental (angústia que alberga - gostaram? - outras angústias importantes, como: por que eu devo morrer? logo eu...) pressupõe que há um fundamento para o que há, ou para aquilo que Heidegger chama de essentes. É esse fundamento que a palavra grega physis procura.

Em algum lugar do Introdução à Metafísica Heidegger se pergunta algo como: “O que a palavra physis denota? Ela denota um emergir auto-florescente (por exemplo, o florescer de uma rosa), uma abertura, um desdobrar, aquilo que se manifesta neste desdobrar e persevera e o sustém; em suma, o âmbito das coisas que emergem e permanecem”. (E aqui já percebemos que o General estava correto ao falar da incompetência de filósofos, cientistas sociais para a literatura: "o florescer de uma rosa?...")Para os gregos, então, o mundo físico é algo que se abre permanecendo em si mesmo; uma potência que emerge e se sustém. Lembram da definição de natureza que nos oferece Aristóteles? Está lá na Física: A natureza tem o seu princípio de produção em si própria - em oposição a um ser técnico, que tem o princípio de sua produção em outrem.

As questões metafísicas são aquelas que não podem ser respondidas por esse ou aquele ser natural, mas pela totalidade dos essentes. É essa totalidade que é pressuposta, de partida. Não prosseguirei adiante com o argumento heideggeriano, falta-me tempo para retomar o resto do livro e o ler com atenção. Mas para o que pretendo discutir aqui, já dá.

A verdade é que tanto o conceito grego de phyisis como o conceito latino de natura pressupõem essa totalidade, essa unidade dos seres cujo sentido procuramos descortinar pela filosofia, pela religião, pela ciência, pela técnica. Aristóteles, por exemplo, acreditava que essa totalidade estava cindida, em um mundo lunar e um mundo sublunar, e que as regras físicas que valiam para o primeiro âmbito, não valiam para o segundo. Newton propôs, em oposição a ele, a unidade de todo universo e a possibilidade de encontrar um denominador comum para todo o cosmos: a matemática. Em A Imagem da Natureza na Física Moderna, Heisenberg escreve a esse respeito o seguinte: "para Newton, o passo decisivo tinha sido constituído pela descoberta de que as leis da mecânica regem a queda de uma pedra são as mesmas que regulam o movimento da lua em torno da terra e podem, por isso, aplicar-se também à escala cósmica". E algumas linhas abaixo, ele prossegue: "Também a palavra "descrição" da natureza foi perdendo cada vez mais o seu significado primitivo de representação destinada a transmitir uma imagem da natureza tanto quanto possível viva e sensível; adquiriu, pelo contrário, cada vez mais o sentido de 'descrição matemática da natureza', isto é, uma compilação de informações sobre as relações e as leis da natureza, tanto quanto possível precisa, concisa e ao mesmo tempo compreensível". A partir daí os cientistas começaram a dizer que mesmo Deus, se quiser produzir algo no mundo físico, teria de se submeter as regras da natureza.

Mais recentemente, outro desconfiado com o conceito de natureza, e que não gosta muito de Heidegger, propôs que pensássemos se o real, e a natureza, teriam mesmo uma necessidade, uma razão oculta uma causa primeira. Em oposição a essa visão, Rosset propõe uma visão trágica do natural, onde o acaso, a contingência, seria tudo o que poderíamos ter. Na Antinatureza Rosset faz um trabalho muito interessante de mapeamento filosófico dessas duas visões básicas da natureza: uma visão cética, que encontraríamos em pensadores como Hume, Montaigne, para quem a natureza é contingência; e uma visão que propõe uma univocidade da natureza, um fundamento ou necessidade, que deveríamos procurar sob a complexidade da empiria - Platão é aqui a referência fundamental. Tenho que voltar a esse texto, mas acredito que para Rosset não haja nada como uma natureza – e não obstante não podemos abandonar simplesmente essa comodidade do pensamento e da linguagem. O que é importante, no entanto, é pensar que a cultura ocidental (permitam-me essa redução) vem há muitos anos negociando, não apenas o que é cultura, mas o que é natureza. E a negociação de um dos termos, o(a) leitor(a), deve intuir, é a negociação do outro. O que tradicionalmente é visto na sociologia como uma antinomia insuperável, apresenta-se sob essa perspectiva como o terreno de uma economia.

Mas aqui já estou entrando num terreno familiar para quem vem acompanhando meus posts neste Cazzo – ou seja, Cynthia e Arthur. Foucault, Agamben, Nikolas Rose, Negri, todos esses estão (esteve) envolvidos com um tipo de pensamento que parte da seguinte constatação: a natureza, o que ela vem sendo, vem se tornando, é um problema fundamental na definição do que a cultura pode ser. Por esse motivo eu tenho me dedicado a estudar as tais tecnologias da vida e as transformações epistemológicas, ontológicas, políticas que passam a ser supostas em algo tão simples como acreditar, por exemplo, que os sistemas vivos são determinados por instruções moleculares escritas num alfabeto cujas letras seriam: T,C,G,A. Para os que não são iniciados, essas são as bases nitrogenadas, cuja combinação determinam o genoma dos seres vivos.

A natureza, acredito, não é âncora para nada: ela é um, talvez O, espaço de negociação onde produzimos a cultura. Isso seria construtivismo? Apenas se acreditarmos que a cultura é algo imaterial. E, no mais, McArthur, sempre podemos testar nossas hipóteses vendo quanta Boêmia weiss podemos tomar numa noite – obviamente, a mesa redonda não há de ser no Bar do Bigode.
.......
Um tempo após a publicação desse post, estudando Judith Butler, onde essa discussão toda começou, leio as seguintes linhas:

"Pois se o gênero é tudo que existe, parece não haver nada "fora" dele, nenhuma âncora epistemológica plantada em um "antes" pré-cultural, podendo servir como ponto de partida epistemológico alternativo para uma avaliação crítica das relações de gênero existentes. Localizar o mecanismo mediante o qual o sexo transforma-se em gênero é pretender estabelecer, em termos não biológicos, não só o caráter de construção do gênero, seus status não natural e não necessário, mas também a universalidade cultural da opressão. Como esse mecanismo é formulado? Pode ele ser encontrado, ou só meramente imaginado? A designação de sua universalidade ostensiva é menos reificadora do que a posição que explica a opressão universal pela biologia?" (Butler, Problemas de Gênero, Civilização Brasileira, p. 67)

(por editar)
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Jonatas Ferreira

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Judith Butler: Drag Queen, Pensamento Crítico e Estratégia Política (II)



Não é preciso fazer referência a um argumento tão acéfalo para compreender qual o problema aqui. O que está em jogo é justamente aquilo que Butler coloca como questão no vídeo que Jonatas postou abaixo, relativo à identidade das vítimas do Holocausto: “o que é dar uma descrição [account] de si quando não se é totalmente transparente para si mesmo e quando não se pode relatar sua vida em forma narrativa [isto é], quando as condições lingüísticas e sociais da própria existência não são totalmente compreendidas ou não estão disponíveis em uma descrição narrativa?”. Reclamar uma identidade é dar uma descrição daquilo que somos, é exigir que sejamos reconhecidos como sujeitos (ou, para Butler, mais propriamente, como agentes); é estabelecer as bases para a solidariedade política, dado que estabelecer interesses comuns pressupõe uma definição mínima daquilo que importa para nós.

O que vimos no circo dos horrores foi um exemplo claro da impossibilidade de uma formulação alternativa aos significados de “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino”. A inteligibilidade desses termos está ligada àquilo que Butler concebe como “heterossexualidade compulsória”, isto é, como uma instituição social na qual apenas uma classificação binária homem/mulher, macho/fêmea é inteligível. Uma identidade de gênero como “mulher-travesti-lésbica-não-operada” não faz sentido, é aberrante e, mais do que isto, abjeta. Mas como “reconhecer” identidades que não fazem sentido para nós, já que estão além daquilo que a matriz binária hegemônica e compulsória estabelece como possibilidade inteligível? A resposta é: desestabilizando esta matriz de significado; mostrando que não há nada de “natural” ou essencial nem no sexo, nem no gênero. Não desenvolverei, aqui, o argumento de Butler a este respeito, pois ele requer uma descrição bastante detalhada de sua concepção do que se convencionou chamar de sistema sexo/gênero. Para os meus propósitos aqui é suficiente notar que o sexo é, para ela, um efeito do gênero. Como? Bem, o gênero é concebido como um conjunto de gestos desempenhados sob a superfície do corpo, mas que instituem as fronteiras desse corpo a partir dos limites do socialmente hegemônico. Em outras palavras, o sexo é “materializado” por meio da performatividade dos agentes sociais, inclusive por meio de práticas sexuais que “abrem ou fecham superfícies ou orifícios à significação erótica”, reinscrevendo as fronteiras do corpo (Butler, 2003: 190).

Assim, as identidades de sexo e gênero são concebidas como práticas e os sujeitos, como “efeitos de um discurso amarrado por regras” (Butler, 2003: 208). A capacidade de mudança reside no fato de que, embora as performances sejam consideradas como constitutivas do sujeito, este sujeito não é determinado pelas regras (assim como os corpos não são gerados pelos discursos, embora a questão de sua materialidade seja um problema que acho que Butler não consegue resolver). Isto porque as “repetições” das regras via performance nunca são simples repetições, mas sempre geram uma espécie de excedente, pequenas variações que abalam os significados instituídos dessas normas, o que abre espaço para sua desestabilização e, em última instância, para o fim do binarismo que regula a heterossexualidade compulsória. A agência crítica está, portanto, intimamente ligada à possibilidade da desestabilização das normas a fim de que se possa rearticular os termos da inteligibilidade e da legitimidade simbólica via discursos políticos que mobilizem categorias de identidade.

É assim que Butler atribui um papel político importantíssimo às performances de gênero desempenhadas pelas drag queen. A drag queen não procura imitar ou simplesmente repetir as performances das “mulheres”. Uma drag queen é mais do que uma mulher: é uma mulher exagerada, uma paródia de mulher que possibilita problematizar as relações entre essência e aparência. É como se dissesse: “vejam, minha aparência exterior é feminina, mas meu corpo (minha essência) é masculino”, e também (e ao mesmo tempo), “minha aparência exterior (meu corpo) é masculino, mas minha essência interna é feminina”. A drag queen, como os travestis e outros indivíduos transgênero, mostram que não há uma coerência naturalmente dada quando se trata de categorias como sexo, gênero, sexualidade, mas todas são “flutuantes”, culturalmente construídas por meio de repetições de atos estilizados. E quanto mais repetidas são, mais dão a impressão de que são, em algum sentido, naturais, meras representações de alguma essência fixa e imutável.

A paródia e a ironia, sendo gêneros de humor, não garantem a desestabilização de significados instituídos, e Butler reconhece isto. Mais uma vez, recorro a um caso empírico que me foi contado por uma amiga que tenho em comum com o criador de problemas (no sentido butleriano) em questão: ao ser convidado para paraninfo de uma turma em uma grande universidade brasileira, nosso amigo (que, até onde sei, define sua sexualidade como heterossexual), resolveu se “montar” para a cerimônia de formatura na qual estavam presentes os estudantes, outros professores e o reitor. Apareceu de drag, com peruca, maquiagem pesada, um vestido brilhante e sandálias de salto e, segundo minha amiga me contou, fez um discurso maravilhoso que foi ovacionado pelos estudantes. Apesar das reações positivas ao seu discurso, não consigo deixar de imaginar a seguinte cena: “eita! Você sabia que ele era gay?”, pergunta um estudante. “Esse cara nunca me enganou!”, responde o outro, reafirmando o discurso hegemônico de matriz binária. Sei não, mas deve haver formas mais eficazes de estratégia política. E pacíficas, caso o gatinho da foto tenha remetido a algum sentido oculto que escapa à minha autoria...

Butler, Judith. (1993). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex. Nova York e Londres: Routledge.
________. (2003) Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Salles, Ronaldo Laurentino. (2006). Raça e Justiça: O Mito da Democracia Racial e o Racismo Institucional do Fluxo de Justiça. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, Recife.


Cynthia Hamlin

domingo, 13 de janeiro de 2008

Judith Butler: Drag Queen, Pensamento Crítico e Estratégia Política



Durante os anos de 1990, a revista neo-zelandeza Philosophy and Literature realizava um concurso chamado Bad Writing Contest, a fim de ridicularizar aquilo que considerava como os excessos da escrita acadêmica. A vencedora do ano de 1998 foi Judith Butler – as medalhas dos anos imediatamente anteriores foram para Frederic Jameson e para Roy Bhaskar, respectivamente. Incidentemente, todos os três estão no topo da minha lista do que considero os maiores intelectuais vivos. Questões estéticas (e teóricas) à parte, o que esses intelectuais têm em comum é o fato de que seus trabalhos são de difícil leitura, em parte por sua formação “enciclopédica” (por falta de um termo mais adequado), em parte porque suas obras representam algo realmente original. Em minha modesta opinião, não se trata, portanto, de má argumentação ou de má escrita, mas de uma dificuldade genuína em formular (e compreender) algo novo a partir do que está dado.

Butler não é para os fracos de espírito. Sua leitura é lenta, trabalhosa, exige interrupções freqüentes a fim de que possamos nos inteirar de suas premissas. Mas ela é uma daquelas autoras que, ao fim desse esforço, nos deixa com a sensação de que algo novo foi construído. Se concordamos ou não, são outros quinhentos, mas nada como uma nova perspectiva para nos fazer questionar nossas próprias crenças. Acredito que este seja um dos princípios mais fundamentais da idéia de crítica, já que é isto que impede que o pensamento congele, se cristalizando em dogma.

Uma de suas principais armas é o uso da paródia e da ironia como potenciais críticos, isto é, como potenciais para a articulação daquilo que os pós-estruturalistas chamam de “contra-discursos”, ou de discursos que se opõem aos hegemônicos. Um exemplo disso é a própria teoria da qual ela é um dos principais representantes, a teoria queer. O termo queer, em inglês, quer dizer estranho, esquisito, e é usado como termo pejorativo na linguagem cotidiana para se referir às pessoas gay. Em parte impulsionados pelo movimento gay, o que esses teóricos fizeram foi se apropriar de forma irônica do termo a fim de transformar algo negativo em positivo, em uma auto-denominação que denota orgulho. Vale lembrar que a ironia é uma forma de discurso na qual se diz o oposto do que se quer dizer – uma abertura para a ambigüidade, para a desestabilização do sentido. De maneira resumida, pode-se dizer que a teoria queer refere-se a uma combinação do pensamento teórico gay e lésbico, que deriva da ênfase que o feminismo pós-moderno e a teoria pós-colonial colocam na ironia como uma estratégia de oposição aos discursos dominantes. A paródia, para Butler, aparece como o modo por excelência pelo qual o gênero é “performado”, uma formulação que exige alguns esclarecimentos. Comecemos pela noção de discurso.

O discurso pode ser concebido como a efetivação de “um conjunto de regras que autorizam o que é permitido dizer, como se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, sob que circunstâncias etc.” (Salles, 2006: 35), ou seja, como a efetivação daquilo que Foucault chamou de formação discursiva. De um ponto de vista ligeiramente diferente do descrito acima, a noção de discurso pode ser intercambiável com a noção de prática, entendida no sentido específico de “uma combinação de elementos lingüísticos e a ação nas quais esses elementos estão inseridos, (....) [uma] totalidade de palavras e ações” (Laclau, 1998: 9) que são, por sua vez, regidas por regras. A este conjunto de palavras, ações e regras dá-se o nome de discurso, uma noção que está muito próxima à de jogos de linguagem de Wittgenstein. Apesar das diferenças entre as diversas concepções de discurso, de forma geral, seus defensores argumentam que as diferentes culturas interpretam e nomeiam os objetos e os sujeitos segundo as normas sociais, e este ato de nomeação é considerado constitutivo daquilo que nomeia.

Com base em pressupostos como estes, Judith Butler tenta demonstrar que categorias de identidade como sexo e gênero são efeitos de instituições, práticas e discursos, e não a origem ou a causa destes últimos. A relação que ela estabelece entre sexo e gênero subverte radicalmente o que a teoria feminista estabelecia até então. Mas deixo esta subversão para ser tratada em outra ocasião. O que me interessa aqui é mostrar como esta autora trabalha a ironia e a paródia como uma forma de crítica e também de estratégia política. Foquemos, então, na categoria gênero, o que não me parece totalmente absurdo, dado que, ao contrário de grande parte da teoria feminista, Butler argumenta que o gênero pode ser concebido como totalmente independente do sexo. O que ela quer dizer com isto é que “homem” e “masculino” podem facilmente significar um corpo masculino ou feminino, e “mulher” e “feminino”, um corpo masculino ou feminino (Butler, 2003). Em outras palavras, em seu esquema teórico, Butler implode todo e qualquer fundamento biológico e concentra-se nas formas como os atributos de gênero são regulados, gerando padrões identitários relativamente estáveis, ou identidades de gênero inteligíveis. Partindo de uma perspectiva genealógica, Butler vai em busca das “condições de possibilidade” da emergência de determinados discursos ou formulações de sexo/gênero; dito de outra forma, daqueles elementos sociais/culturais que garantem a inteligibilidade de certas formulações do que seja “masculino” ou “feminino”, ao passo que impede outras (por torná-las inconcebíveis, ou impossibilidades lógicas, como a existência de outros sexos ou identidades de gênero)(Butler, 1993).

Um exemplo prosaico da forma como o discurso pode afetar certas formulações do que é masculino ou feminino ou, de forma mais geral, determinadas concepções de identidade e de sujeito, foi um episódio do programa de televisão apresentado por Luciana Gimenez, o Superpop. No que considero uma versão contemporânea do circo dos horrores, Gimenez entrevista um casal de lésbicas. Uma delas se autodefinia como lésbica; a outra, como uma travesti lésbica não-operada. Ao desfiar um rosário de queixas relativas ao preconceito e à incompreensão alheia, em termos mais teóricos, à impossibilidade de serem reconhecidas como sujeitos capazes e responsáveis por suas próprias vidas, as duas se vêem atônitas diante da solução ao problema apresentada por Gimenez. Ora, argumentou ela, embora uma das moças se definisse como travesti lésbica, na verdade, em sua essência (biológica) ela era homem. O argumento irrefutável assumiu mais ou menos a seguinte forma: “você tem um pinto?”, pergunta Gimenez, “sim”, responde a moça, “então você é homem e, já que se relaciona com uma mulher, não é gay”. E continua, para a outra “se ela é homem e você é mulher, então você também não é gay”. Assim, quase que num passe de mágica, Luciana Gimenez resolve o problema das duas. Difícil é explicar isso para o resto do mundo, assim como extirpar os sentimentos delas de que eram mulheres que gostavam de mulheres. Mas, do meu ponto de vista, o mais interessante nessa história toda foi o silêncio das moças diante deste argumento. Embora parecessem discordar veementemente do veredicto, nenhuma das duas foi capaz de articular uma narrativa que conferisse sentido às suas existências no mundo – nem para elas, nem para os outros.

(continua...)

Cynthia Hamlin

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Judith Butler e Avital Ronell

Judith Butler (2006)

O som não está grande coisa, mas a partir deste vídeo você poderá acessar outras palestras, comunicações desta importante intelectual que é J.Butler.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Romeu, Julieta e Peter Winch (Parte II)



Descrever as condições de possibilidade do conhecimento é considerado por Winch como uma pergunta essencial para as ciências sociais na medida em que a vida social depende do nosso conhecimento acerca dela ou, dito de outra forma, as relações sociais entre as pessoas dependem das nossas idéias sobre a realidade e sobre essas relações. Daí sua famosa frase: “as relações sociais são expressões de idéias sobre a realidade” (Ibid.: 23). A aproximação, quase ao ponto identitário, entre filosofia e sociologia é então estabelecida: esta é entendida como a disciplina que procura entender a natureza dos fenômenos sociais; entender a natureza dos fenômenos sociais significa elucidar o conceito de forma de vida, que é também o objetivo da epistemologia. Winch admite que o ponto de partida da sociologia é diferente do ponto de partida da epistemologia, no entanto, as duas estariam de fato muito próximas: a sociologia é concebida por ele como uma “epistemologia que foi mal planejada”, isto é, ele acredita que os problemas da sociologia foram mal construídos e, portanto, mal manejados, dado que foram tratados como problemas científicos. E isto ocorreu, em parte, porque o tratamento da linguagem foi, até Wittgenstein, colocado de forma equivocada: não é que inicialmente exista uma linguagem na qual as palavras têm um significado estabelecido e as sentenças podem ser tratadas como verdadeiras ou falsas e, depois, esta linguagem entra nas relações sociais. Na verdade, para o autor, as categorias de significado são, elas próprias, logicamente dependentes (para que tenham sentido) das relações entre as pessoas. Pense, por exemplo, no significado de uma palavra como negro: seu significado depende das relações sociais no seio das quais o termo é usado e não da cor da pele que se apresenta objetivamente aos nossos sentidos.

É por esta razão que as idéias são consideradas o próprio objeto das instituições sociais e o que nós pensamos acerca da realidade social, ou os conceitos que usamos para nos referirmos a ela, constituem o objeto das ciências sociais. Mas o que eu penso acerca da realidade não constitui um sentido privado e cada forma de vida a partir da qual meu sentido deriva refere-se a um aspecto particular da realidade (a jogos de linguagem específicos) e tais aspectos não podem ser comparados. É isto que gera um certo hermetismo em relação às formas de vida, tornando a tradução impossível – e impossibilitando que os leões sejam compreendidos.

Recapitulando: compreender a natureza de um fenômeno social é elucidar o significado de uma forma de vida e, dado que este também é o objetivo da epistemologia, as ciências sociais têm uma relação como esta que não encontra equivalência nas ciências naturais. Isto significa, para Winch, que o objeto das ciências sociais é mais complexo que o das ciências naturais e sua maior complexidade implica conceitos logicamente distintos daqueles utilizados na explicação causal.

A inadequação da explicação causal para as ciências sociais é demonstrada por meio da crítica à visão de J. S. Mill de que “compreender uma instituição social consiste em observar as regularidades no comportamento de seus participantes e expressar tais regularidades sob a forma de generalizações” (Winch, 1968: 86). O problema que Winch percebe nesta abordagem diz respeito à questão de como observar tais regularidades: a fim de estabelecer que o mesmo tipo de fenômeno ocorreu em duas situações diferentes (uma condição da generalização), o cientista natural deve se referir às regras que regem a investigação científica; para estabelecer que o mesmo tipo de comportamento ocorreu em duas situações distintas, o cientista social deve se referir não apenas às regras que regem a investigação social, mas também àquelas que definem o que, numa situação específica, conta como “estar fazendo a mesma coisa”. Neste sentido, embora Winch não descarte a possibilidade de se identificar regularidades na vida social, a forma como apreendemos essas regularidades é fundamentalmente diferente da forma como um cientista natural o faz.

Essas diferenças também são enfatizadas na crítica que ele faz ao processo weberiano de se checar a validade das interpretações em termos daquilo que Weber chama de “conhecimento nomológico” (com base na formulação de regularidades estatísticas baseadas na observação empírica). Na verdade, Winch questiona a idéia de que o Verstehen é logicamente incompleto, devendo ser complementado por um método naturalista. Para ele, uma interpretação equivocada deve ser substituída por uma interpretação melhor, não por algo logicamente diferente. Aqui, talvez Winch esteja contaminado por uma interpretação positivista de Weber. Como William Outhwaite (1986) argumentou, Weber coloca a necessidade de verificar a validade de uma interpretação naquelas circunstâncias em que uma pluralidade de explicações parecem fazer igualmente sentido em uma forma de vida. Isto sugere que, para Weber, não existe uma diferença muito nítida entre motivos, razões e causas e o ponto realmente importante levantado por ele foi o de que a compreensão das ações envolve a compreensão de intenções, motivos e razões.

A exclusão de relações causais do domínio da sociedade humana confere uma forma muito particular à compreensão advogada por Winch. As conexões lógicas envolvidas nas ciências sociais dizem respeito a conceitos, não a eventos empíricos, e tais conexões apresentam um caráter intrínseco (ou necessário), no sentido de que a existência dos fenômenos sociais não apenas é dependente dos conceitos usados para descrevê-los, mas idêntica a eles! O ideal e o real parecem coincidir de forma absoluta. Se é este o caso, apesar das afirmações de Winch em contrário, a linguagem dos cientistas sociais deve coincidir com a linguagem “nativa” – o que leva ao questionamento da utilidade das ciências sociais.

Acredito que parte do problema que leva a isto é uma concepção excessivamente hermética da idéia de forma de vida. Winch adere a uma perspectiva holística radical segundo a qual a linguagem (e as formas de pensamento) de uma cultura só são compreensíveis em seus próprios termos e isto, no limite, impede a compreensão, pelo menos a compreensão daquilo que interessa: não apenas o estrangeiro não pode penetrar na linguagem nativa, dado que não pode se livrar de seus próprios horizontes, mas isto geraria um problema mesmo para a socialização infantil. Como a criança nascida em uma determinada comunidade poderia aprender a linguagem de seus pais e assimilar sua cultura se ela não compartilha dos seus conceitos antes de aprendê-los?

Este holismo radical pressupõe, ainda, que as idéias de uma dada cultura ou sociedade são absolutamente homogêneas, e todos sabemos que este não é o caso. Especialmente depois dos pós-estruturalistas, sabemos que os diversos significados atribuídos por grupos sociais distintos estão em uma luta constante por hegemonia, isto é, eles são contestados, negociados, desestabilizados.

Foi contra este essencialismo lingüístico radical que Julieta se insurgiu quando pediu a Romeu que renunciasse ao seu nome. Ao contestar as referências simbólicas que identificavam um Montecchio com um inimigo, ela estava contestando os pressupostos, valores e práticas de sua forma de vida. Além disso, contrariamente a Winch, que defende que o significado de uma ação deriva exclusivamente do sistema de regras que guia o comportamento, e nunca de suas intenções, ao levar a sério a resposta de Romeu, Julieta reintroduz a subjetividade do agente de uma forma que Winch jamais conseguiu fazer. E Romeu? Ah, carcamano do inferno...

Gellner, Ernest. (1974) The New Idealism: Cause and Meaning in the Social Sciences. Anthony Giddens (ed.) Positivism and Sociology. Londres: Heinemann.
Outhwaite, William (1986). Understanding Social Life: The Method Called Verstehen. Lewes: The Beacon Press.
Winch, Peter (1958) The Idea of a Social Science: and its Relation to Philosophy. Londres: Routledge.

Cynthia Hamlin

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Romeu, Julieta e Peter Winch



O Renascimento é geralmente considerado uma das principais fontes da noção moderna de indivíduo, concebido como uma essência interna única, autônoma, universal. Dentre os autores renascentistas, não há ninguém maior do que Shakespeare. De fato, já se afirmou que o bardo inglês foi o inventor da “natureza humana” e que a obra de Freud não era nada mais do que Shakespeare em prosa. Não sei se isto é verdade e deixo esta questão para os meus colegas psi resolverem. Mas o fato é que, sempre que leio Peter Winch, vem-me à mente a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta. A minha hipótese é a de que, se Julieta tivesse lido A Idéia de uma Ciência Social, jamais teria dado aquele mole que hoje nos faz perceber a impossibilidade do amor romântico. Deixo vocês, por um instante, com os dois amantes, numa tradução portuguesa que encontrei na Internet, embora sem os devidos créditos ao tradutor ou tradutora:

“Jardim de Capuleto

(Entra Romeu)

ROMEU- Só se ri das cicatrizes aquele que nunca sentiu uma ferida. (Julieta aparece à janela) Mas... devagarinho! Qual é a luz que brilha através daquela janela? É o oriente, e Julieta é o Sol. Ergue-te, ó Sol resplandecente, e mata a Lua invejosa, que já está fraca e pálida de dor ao ver que tu, sua sacerdotisa, és muito mais bela do que ela própria. Não queiras mais ser sua sacerdotisa, já que tão invejosa é! As roupagens de vestal são doentias e lívidas, e somente os loucos as usam. Deita-as fora! Esta é a minha dama! Oh, eis o meu amor! Se ela o pudesse saber! O seu olhar é que fala e eu vou responder-lhe... Sou ousado de mais; não é para mim que ela fala. Duas das mais belas estrelas de todo o firmamento, quando têm alguma coisa a fazer, pedem aos olhos dela que brilhem nas suas esferas até que elas voltem. Oh! Se os seus olhos estivessem no firmamento e as estrelas no seu rosto! O esplendor da sua face envergonharia as estrelas do mesmo modo que a luz do dia faria envergonhar uma lâmpada. Se os seus olhos estivessem no Céu, lançariam, através das regiões etéreas, raios de tal esplendor que as aves cantariam, esquecendo que era noite. Vede como ela encosta a face à sua mão. Oh! quem me dera ser a luva dessa mão, para poder tocar a sua face.

JULIETA- Ai de mim!

ROMEU- Está a falar... Oh! continua, anjo resplandecente! Porque esta noite tu brilhas tão esplendorosamente sobre a minha cabeça como um alado mensageiro do Céu perante o olhar extasiado dos mortais, que escondem a íris nas pálpebras ao inclinarem-se para o contemplar quando ele perpassa por entre as nuvens indolentes e navega no seio do ar.

JULIETA- Oh! Romeu, Romeu! Mas porque és tu Romeu? Renega o teu pai, o teu nome; ou, se o não quiseres fazer, jura apenas que me amas e deixarei eu de ser uma Capuleto.

ROMEU (aparte)- Deverei eu continuar a ouvi-la, ou responder-lhe?

JULIETA- É apenas o teu nome que é meu inimigo; tu és tu mesmo, e não um Montecchio. E que é um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte que pertença a um homem. Oh! Sê qualquer outro nome! O que é que existe num nome? Aquilo a que nós chamamos rosa teria o mesmo perfume embora lhe déssemos outro nome! Assim, Romeu, ainda que não se chamasse Romeu, conservaria a mesma perfeição que agora possui. Romeu, renuncia ao teu nome, e em vez dele, que não faz parte de ti mesmo, apodera-te de mim!

ROMEU- Aceito. Chama-me apenas teu amor, e far-me-ei de novo baptizar. De ora avante nunca mais serei Romeu.”

A questão que deve me guiar aqui é uma espécie de exercício weberiano de explicação contrafactual (tá legal, tá legal, tô exagerando nos termos, mas façam uso de um pouco de caridade interpretativa pelo bem do argumento): Se Julieta tivesse lido Winch, e concordasse com a leitura que ele faz de Wittgenstein (essa é uma condição importante!), jamais teria acreditado que Romeu pudesse renunciar ao próprio nome sem modificar sua essência. Vejamos.

Peter Winch é um autor pouco explorado no Brasil, o que é uma pena, pois ele consegue relacionar um autor relativamente complexo, Wittgenstein, a questões sociológicas clássicas e bastante familiares aos cientistas sociais. Acredito que ele faça isso emprestando ao pensamento deste último um certo essencialismo lingüístico que não tenho certeza se Wittgenstein aprovaria. Apesar disso, acho que é um dos melhores caminhos para se introduzir a virada lingüística nas ciências sociais, especialmente para alunos de graduação.

De certa forma, Winch inverte um dos princípios de Wittgenstein acerca dos jogos de linguagem. Como argumentou Ernest Gellner (1974), se para Wittgenstein o significado das expressões corresponde ao uso que se faz delas, para Winch, o uso de expressões (e de qualquer outro comportamento social) é igual ao seu significado. Colocando em outros termos, o que Winch se propõe é a explicar as “formas de vida” em termos de jogos de linguagem.

Sua obra principal, A Idéia de uma Ciência Social, exemplifica um argumento anti-naturalista radical que afirma que o entendimento dos fenômenos naturais ocorre em termos de causas relativas a leis gerais, enquanto o entendimento dos fenômenos sociais se dá em termos de motivos e razões das ações dos indivíduos em uma dada comunidade. Mais tarde, depois que os críticos praticamente arrancaram seu couro, especialmente os de origem neo-kantiana, Winch admite que motivos e razões podem ser concebidos como causas, embora não como causas naturais regidas por leis gerais (veja, por ex., a introdução à segunda edição de seu livro).

O anti-naturalismo de Winch é defendido a partir de uma aproximação entre os objetos da filosofia e das ciências sociais, o que ele faz por meio de uma crítica às concepções usuais das duas disciplinas. Seu objetivo é poder afirmar que as ciências sociais são, na verdade, uma forma filosófica de se produzir conhecimento e que a filosofia, por seu turno, envolve o conhecimento da sociedade humana. O que é, então, filosofia, para este autor? Contrariamente a posições defendidas pelos positivistas do Círculo de Viena (e pelos positivistas, em geral) este ramo do conhecimento não deve ser concebido como um mero ajudante de obra das ciências, no sentido de eliminar as confusões lingüísticas relativas a determinados termos científicos - como nas infindáveis discussões dos autores do Círculo acerca do significado de termos teóricos como “solúvel”. Winch argumenta que a atividade filosófica não depende da atividade científica, pois enquanto as questões da ciência são empíricas, as da filosofia são conceituais. Assim, o problema da filosofia é muito mais amplo do que acreditavam os membros do Círculo, pois trata de esclarecer como o pensamento se relaciona com a realidade.

Seguindo Wittgenstein de perto, Winch retoma a idéia de que os limites da minha linguagem constituem os limites do meu mundo e afirma que “nossa idéia do que pertence ao mundo nos é dada pela linguagem que usamos. Os conceitos que nós temos definem para nós a forma de experiência que temos do mundo [...] O mundo é para nós aquilo que nos é apresentado por meio dos nossos conceitos” (Winch, 1958:15). Por esta razão, ele confere à epistemologia (teoria do conhecimento) uma dimensão central na filosofia, já que ela pode ser concebida como as formas pelas quais pensamos sobre o mundo. Sendo assim, a tarefa da filosofia é “descrever as condições que devem ser satisfeitas, caso existam critérios de compreensão” (Ibid.: 21) ou, reformulando em termos mais kantianos, descrever as condições de possibilidade do conhecimento.

(Continua...)

Cynthia Hamlin