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Há boatos de que amarelei. Ora, ora, como amarelei? Não tenho icterícia, nem sou descendente da dinastia Ming, convenhamos. A campanha difamatória revela que a pernambucanidade treme diante da presença tipicamente paraibana — eu nego!, como se diz por estas plagas, embora nunca se saiba bem o resultado da negação. Bem, de todo modo, eis aqui o meu primeiro texto no Cazzo.
Antes, contudo, um esclarecimento: atualmente, ofereço um curso sobre estratificação social e estrutura de classe para a turma de graduação em ciências sociais da UFPB . Estamos, nesse momento, dando uma revisada em Weber. Assim, aproveito esse espaço e discuto um pouco, na forma de uma resenha, o texto “O sentido da 'neutralidade axiológica' nas ciências sociológicas e econômicas", artigo encontrado no livro Sobre a teoria das ciências sociais (Lisboa, Presença, 1974, pp. 113 a 192). Utilizarei essa discussão inicial como plataforma para outros debates que envolvam a relação entre teoria e prática, verdade e valor... No fundo, ao longo dos textos, tentarei responder a seguinte indagação: é possível uma teoria crítica que aborde a emancipação humana sem postular a possibilidade de uma fundação racional dos valores? Nesse sentido, Weber é um bom ponto de partida, pois nega enfaticamente tal possibilidade.
Bem, sem maiores delongas, vamos lá:
Boa parte do texto weberiano — seguindo inclusive uma lógica que permeia todos os artigos do livro Sobre a teoria das ciências sociais — seria uma aplicação das conseqüências dos vetos de Hume (uma tradição seguida fielmente, nessa questão epistemológica, por Weber) a respeito da possibilidade de se encontrar uma fundação racional ou científica para as "aplicações práticas" (campo da ética), isto é, de inferir que das "questões práticas" podemos encontrar "verdades". No texto em questão, a tese da impossibilidade da ciência de inferir verdades dos "preceitos práticos" é aplicada na "deontologia" do professor universitário. De que forma? Ora, o professor universitário deve num curso universitário "afastar dentro do possível, numa lição, todas as questões práticas de valor" (pp., 368). Não afastar as "questões práticas de valor" significa admitir que, num curso universitário, devemos inflamar o nosso auditório com nossas opiniões pessoais — uma tática fácil que permite um reconhecimento fácil por parte de um auditório ávido de opiniões pessoais. Tais opiniões "pessoais" são baseadas em representações de mundo, isto é, em visões morais, culturais, políticas e estéticas e não em representações científicas do mundo, representações estas "objetivas", em suma: "verdadeiras". Assim, a verdade seria monopólio da ciência, pois esta teria uma fundação racional, ao contrário dos preceitos normativos e morais que não teriam uma capacidade de produzir "verdades".
Ao invés de discutirmos a complexidade dos vetos que Weber produz em relação à conduta do professor universitário, acreditamos que vale a pena discutir um pouco mais detidamente as premissas subjacentes (premissas, como foi dito, que balizam não só o artigo, mas toda a discussão do livro) à posição defendida no texto:
1. Há entre os julgamentos de fatos e os julgamentos de valor um abismo intransponível. Nesse abismo, não pode ser construído uma ponte pela ciência. Do ser ao dever-ser existe apenas uma solução de continuidade. A razão teórica não pode prolongar-se em "razão prática" — a validade de um imperativo prático e a validade de uma verdade de uma constatação empírica são duas validades completamente heterogêneas;
2. as representações científicas são objetivas, isto é, vale para todos os homens, inclusive também para os marcianos. Os enunciados científicos são universais; já os enunciados práticos são subjetivos. Na verdade, não haveria a possibilidade de uma outra razão autônoma como, por exemplo, a razão prática de Kant nem uma continuidade entre os julgamentos de fatos e os julgamentos de valores, como sempre quis o pensamento "positivista" francês" de Descarte até Durkheim;
3. a razão científica não pode fundar os preceitos éticos e práticos; pior ainda: não há, fora da razão cientifica, nenhuma forma de razão capaz de fundá-los. Assim, os julgamentos de valor possuem uma liberdade absoluta e dependem apenas do livre arbítrio do indivíduo, isto é, de sua liberdade de escolha: os julgamentos de valor dependem das decisões dos indivíduos (decidicionismo). Weber afirmaria, com isso, um relativismo nas questões práticas.
Para Weber, tais premissas não impedem, muito pelo contrário, o tratamento racional dos valores e dos julgamentos de valor, colocados como objetos de estudo das ciências empíricas. Podem-se estudar perfeitamente os efeitos dos processos axiológicos na conduta dos indivíduos. Os valores podem ser vistos como "fatos normativos" e, mesmo não justificando o que funda sua validade, podem ser estudados como "causas" do comportamento dos indivíduos. A ciência não pode justificar os fins, mas pode muito bem analisar os meios pelos quais atinge-se um fim — inclusive, pode ajudar uma discussão prática analisando os melhores meios para atingir um determinado fim. A ciência pode esclarecer a significação dos valores e os axiomas que dão base às questões práticas envolvidas, permitindo um melhor entendimento do que orienta, de forma geral, as práticas culturais — a ciência problematiza e não prescreve (Weber afirma, várias vezes no texto, a função de problematizar da ciência). A ciência, enfim, pode oferecer uma base (e isso não é pouco!) ou uma clareza para a escolha, permitindo também uma fundação mais segura à responsabilidade. A ciência pode esclarecer os julgamentos de valores em jogo, como também os próprios valores que os cientistas utilizam na produção científica, tornando transparente e "controlado" o jogo axiológico no qual estão submetidos. A universalidade dos enunciados descritivos (usando a linguagem weberiana) pode ajudar, embora não os funde, os enunciados prescritivos. Temos aqui (de uma forma resumida, é claro) uma argumentação impressionante que funda a diversidade cultural e o famoso "politeísmo dos valores".
Tais premissas não nos conduzem necessariamente a um pessimismo ou a uma epistemologia da suspeita; não, na verdade, pode nos levar até o multiculturalismo (não iremos discutir aqui tal questão), isto é, a uma apologética do "politeísmo dos valores". Contudo, com seu pessimismo habitual, Weber transforma o "politeísmo de valores" numa "guerra de deuses". Afirmar uma diversidade cultural e uma pluralidade de formas de vida não implica ainda a afirmação de um antagonismo irreconciliável entre os valores; pelo contrário, pode afirmar inclusive uma tolerância axiológica e um respeito profundo pela pluralidade. Assim, a premissa final para a transformação do "politeísmo de valores" numa "guerra dos deuses" seria a consideração de que os julgamentos de valor são antagônicos, isto é, a diversidade cultural é pensada enquanto conflito (Simmel?!). Os valores são fundados livremente, no sentido de que não possuem uma fundação racional, e tal liberdade cria uma pluralidade que não pode evitar o conflito, pois os valores vão se chocar entre si — a oposição entre a liberdade de cada valor expressa-se através do conflito e da concorrência entre os sistemas de valores. Weber passa do relativismo dos valores ao afrontamento dos sistemas axiológicos — no entanto, apesar do conflito, Weber jamais excluiu a resolução racional de um conflito axiológico. Um exemplo famoso é a contradição entre a ética da convicção e a ética responsabilidade em que Weber defende a possibilidade de uma reconciliação e uma complementaridade entre os dois sistemas de valores.
Assim, não causa surpresa a ojeriza de Weber pelos professores que tentam justificar suas visões de mundo via as representações científicas da realidade. Tais professores são pejorativamente chamados por Weber de "profetas". Ele afirma que existem palcos específicos para tais "profecias", a começar pelo palco político, no qual as visões políticas podem ser balizadas pelas visões de mundo de cada pessoa; na universidade, não haveria espaço para tais expressões, pois o meio acadêmico é o reino da razão científica, um mundo onde somente os meios podem ser justificados. Se Weber tem medo das conseqüências do "politeísmo de valores", entendido como uma "guerra dos deuses", pode-se imaginar seu receio de professores que, justamente, estimulam a propagação da "guerra dos deuses" no próprio seio da ciência empírica. Weber, no texto, discutirá inclusive "tecnicamente" todas as contradições de uma posição acadêmica que confunde julgamentos de fatos e julgamentos de valores.
Curiosamente, Weber debilita ou, simplesmente, elimina a razão prática para reforçar a posição acadêmica e de especialista dos cientistas. Reforça o distanciamento da universidade da vida prática e, principalmente, das discussões políticas. A ciência pode orientar, esclarecer, ajudar, iluminar as "aplicações práticas" da vida cotidiana, mas jamais poderá misturar-se ou mergulhar no caldeirão vivo das prescrições práticas, sob pena de perder a sua razão de ser.
Por fim, queremos salientar uma aparente contradição: Weber, em vários trabalhos, afirma claramente que há uma racionalidade baseada em valores (racionalidade axiológica). Ora, por que tal racionalidade não pode produzir verdades práticas? Por que somente a racionalidade científica tem esse poder? O que seria um tipo de racionalidade sem um tipo de verdade correspondente? Estamos diante de dois Weber? Como se pode eliminar a razão prática e, ao mesmo tempo, supor a existência de uma racionalidade axiológica?
Enfim, pretendo paulatinamente tentar responder a tais questões. Até lá.
Artur Perrusi