domingo, 31 de julho de 2011

Apresentação da Conferência de Margaret Archer no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia

Frédéric Vandenberghe e Margaret Archer em Curitiba


Por Cynthia Hamlin

Em nome da SBS, gostaria de agradecer a presença da prof. Margaret Archer na 15º edição do Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Uma das principais representantes da teoria sociológica britânica contemporânea, a prof. Archer sempre demonstrou um grande interesse em estabelecer um diálogo com os sociólogos brasileiros, ainda que o falecimento de sua mãe, na véspera de sua conferência na última edição deste Congresso, impedisse que este diálogo tenha ocorrido neste fórum anteriormente. É, portanto, com grande satisfação, que lhe dou as boas-vindas.

Após cerca de 30 anos como professora de sociologia na Universidade de Warwick, Reino Unido, Margaret Archer mudou-se recentemente para a Suíça, onde dirige o Centro para Ontologia Social na Escola Politécnica Federal de Lausanne. Primeira mulher a presidir a Associação Internacional de Sociologia (entre 1986 e 1990), é co-diretora do Centro de Realismo Crítico, organização que deu origem à Associação Internacional de Realismo Crítico com o objetivo de promover a filosofia e a teoria realistas das quais ela, juntamente com Roy Bhaskar, Tony Lawson, Andrew Sayer, William Outhwaite, dentre outros, é uma das principais representantes. Sua vasta obra inclui mais de 70 artigos e capítulos de livros, além de um conjunto de 6 livros principais voltados para o desenvolvimento de sua própria abordagem teórica, a abordagem morfogenética, na qual procura integrar as influências mútuas da estrutura social, da cultura e da agência humana na explicação dos fenômenos sociais.

Dona de um estilo elegante e um tanto irônico - o inferno de seus tradutores para as línguas latinas - desde o final dos anos de 1970 vem desenvolvendo uma abordagem original para aquilo que ela, nas palavras de Ralph Dahrendorf, define como “o fato vexatório da sociedade”: o de que as pessoas moldam a sociedade ao mesmo tempo que são moldadas por ela no processo de modifica-la ou reproduzi-la, individual ou coletivamente. Ao lado de autores como Anthony Giddens, de cuja teoria da estruturação efetuou uma crítica devastadora, elegeu a relação agência-estrutura como um dos principais problemas da teoria social, um problema que, para ela, é parte de uma questão ontológica mais ampla: em que medida a sociologia deve endossar uma ontologia estratificada segundo a qual estruturas e as pessoas consistem em tipos distintos de agentes, com propriedades e poderes também distintos e irredutíveis uns aos outros.

Esta ontologia, desenvolvida em dois livros distintos (Culture and Agency, de 1988, e Realist Social Theory, de 1995) foi, em larga medida, informada pelo realismo transcendental de Roy Bhaskar. De acordo com esta abordagem, tanto a cultura quanto a estrutura social são concebidas como fenômenos objetivos, relativamente independentes das representações dos indivíduos presentes aqui e agora, e cujas propriedades sistêmicas são acionadas, elaboradas e modificadas nas interações entre indivíduos e grupos.

No pólo da agência, seu Being Human, de 2000, pode ser considerado não apenas uma forma de resistência ao imperialismo sociológico e sua tendência de representar os seres humanos em termos exclusivamente sociais, mas também daquelas vertentes pós-modernas relacionadas à morte do sujeito, considerando-o uma mera posição no discurso.  Contrariamente a isso, seu agente humano é concebido em termos de uma subjetividade, ou de uma vida mental interior e privada, que o torna capaz de reflexividade. A ideia de reflexividade, concebida em termos de uma “conversação interior” que ocorre privadamente em nossas mentes, adquire uma dimensão central, pois é ela que nos permite deliberarmos acerca da relação entre as nossas circunstâncias sociais e o conjunto e ordenamento de preocupações que nos torna seres humanos únicos.

Os mecanismos por meio dos quais as estruturas sociais são mediadas pela agência humana são estabelecidos em Structure, Agency and the Internal Conversation (2003). Aqui, Archer desenvolve uma tipologia básica e não exaustiva dos tipos reflexivos: reflexivos comunicativos, reflexivos autônomos, metarreflexivos. Por meio de diferentes formas de reflexividade, os agentes humanos examinam suas preocupações pessoais a partir de suas circunstâncias sociais e avaliam suas circunstâncias a partir de suas preocupações, estabelecendo o papel da reflexividade na mediação entre propriedades e poderes subjetivos, relativos aos agentes, e propriedades e poderes objetivos, relativos às estruturas sociais.

Mas os diferentes tipos de reflexividade não geram as mesmas consequências em termos internos (individuais) e externos (sociais), reforçando sua tese principal de que estruturas e agentes não podem ser reduzidos uns aos outros. Em Making Our Way Through the World: Human Reflexivity and Social Mobility (2007), ao investigar a relação entre diferentes práticas reflexivas e padrões individuais de mobilidade social, a professora Archer demonstra que a reflexividade comunicativa é internamente associada à imobilidade social, a reflexividade autônoma à mobilidade ascendente e a metarreflexividade à volatilidade social ou à mobilidade lateral. Externamente, os reflexivos comunicativos contribuem para a estabilidade social e para a integração; os reflexivos autônomos para o aumento da “produtividade social”; os metarreflexivos, para o desenvolvimento de valores contra-culturais que desafiam a comodificação e burocratização das relações humanas.

Seu último trabalho, The Reflexive Imperative (no prelo), assume a forma de uma reflexão sobre a maneira como mudanças em direção a um sistema global vêm distanciando a ordem social dos parâmetros estabelecidos pela modernidade, alterando não apenas a própria reflexividade dos agentes, mas amplificando processos morfogenéticos segundo os quais a variedade gera mais variedade. Os mecanismos nos níveis micro, meso e macrossociais por trás dessas mudanças constituem o cerne de seu projeto atual, desenvolvido no Centro de Ontologia Social, em Lausanne.  É sobre um desses mecanismos, a dinâmica dos processos de construção de identidade na sociedade morfogenética, que ela falará hoje. Desejo a todos um debate produtivo.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Resistindo ao niilismo através das novas tecnologias: experiências de mídia livre





[O texto que se segue é a introdução de um ensaio que deverá compor uma coletânea sobre inclusão digital organizado por Marcos Lima. O livro deverá ser publicado este ano]

Jonatas Ferreira, Luiz Carlos Pinto e Maria Eduarda da Mota Rocha

Resumo

Há uma vasta literatura que produz uma crítica por atacado ao fenômeno tecnológico que constitui a quintessência das sociedades modernas. Citemos alguns nomes expressivos dessa tradição: Arendt e suas considerações acerca da redução da política ao labor; Marcuse e a idéia de unidimensionalidade da experiência humana nas sociedades de massa; Adorno e Horkheimer e sua crítica à razão instrumental e à indústria cultural; Heidegger e a leitura da tecnologia como disponibilização sem sentido do mundo, sua afirmação de que tecnologia e niilismo andam juntos; Virilio e suas ponderações sobre o caráter dromocrático, irrefletido de nossos envolvimentos com tecnologias de informação e comunicação. Há um enorme poder argumentativo nessas análises, mas elas pecam por constituir uma crítica por atacado, além de fornecer uma compreensão questionável do significado da tecnologia nas sociedades modernas. Claro, aqueles que vêem apenas oportunidades na sociedade de informação, como Pierre Lévy, incorrem em equívoco semelhante. A tecnologia não é unidimensional, nem mobilização sem sentido, tampouco nossa última esperança, mas um espaço ambíguo, e por isso político, no qual a diferença pode ser produzida. Através das experiências de mídia livre, verificaremos em que medida a resistência à instrumentalização da vida, à transformação da política em labor, tem sido produzida.

Introdução

É atribuída a Heidegger a afirmação que diz ser a tecnologia o destino da civilização ocidental. Mas o que é mesmo a técnica? O que é mesmo a tecnologia? Como, e por que, eventualmente, a tecnologia constituiria a trajetória obrigatória da cultura ocidental - dentro da qual, de um modo muito particular, sul-americanos, latinos, inscrevemo-nos? Para o filósofo alemão, a resposta a essas questões passa pela constatação de que a civilização ocidental produziu um determinado tipo de encontro entre o ser humano e o mundo que o circunda, encontro que se caracteriza pela mobilização e aceleração constantes. E se há um projeto mobilizador que caracteriza o ocidente e, particularmente, o ocidente moderno, este não se realizaria nas proporções em que ele hoje se realiza sem que a própria comunicação entre os seres humanos fosse reduzida a essa compulsão pela performance, pela extração de energia do vivo e da matéria inanimada (FERREIRA, 2010). As tecnologias da informação e da comunicação, para Heidegger, constituiriam a consumação da metafísica em sua incapacidade de pensar a humanidade do ser humano fora dos limites deste projeto de controle total dos seres.

E a mobilização constante dos entes, a dinâmica que exaure a energia de tudo, seria apenas uma maneira de falar que o labor1 se tornou a única forma de pensar a relação que os seres humanos entre si, e estes com o mundo, estabelecem na cultura ocidental. O próprio convívio humano, neste contexto, já não nos coloca algo além da exaustão pelo trabalho. Tal constatação permite-nos perceber dois fatos: a tecnologia é uma questão política da maior importância; nos limites de nossa cultura, esta só é concebível a partir de um olhar transcendente sobre o mundo, aquele olhar de que Hannah Arendt fala na Condição Humana, o olhar do cosmonauta que vê a terra, parte integrante das possibilidades de seu ser, de uma perspectiva distanciada. Apenas essa distância garante a instrumentalidade da razão, apenas ela nos sentencia o labor como quintessência do político. Recentemente, Stephen Hawkin propôs que teríamos de nos acostumar com a ideia de que a terra iria se tornar inabitável, um planeta exaurido, arruinado pelos nossos envolvimentos técnicos, que precisaríamos pensar em abandonar o planeta. Curiosa solução técnica para um problema técnico – e que afinal não resolve nada.

Com vistas a alargar a compreensão das potencialidades das novas tecnologias, podemos partir da crítica à redução do trabalho ao labor. Como diz a Arendt, o trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal. O labor, pelo contrário, não deixa frutos a não ser a própria continuidade da vida. O resultado de seu esforço é consumido quase tão depressa quanto seu dispêndio (ARENDT, 1997, p. 98). O desenvolvimento das forças produtivas poderia liberar um crescente contingente humano de uma parte desse esforço, redirecionando-o para a produção de artefatos que possam povoar a vida humana. Mas, segundo Arendt, não foi isso que aconteceu. As horas vagas do “animal laborans” não foram ocupadas com atividades do “homo faber”; pelo contrário, foram absorvidas pelas práticas de consumo, complementares ao labor. A autora assinala: “O perigo é que tal sociedade, deslumbrada ante a abundancia de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo interminável, já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade – a futilidade de uma vida que ‘não se fixa nem se realiza em coisa alguma que seja permanente, que continue a existir após terminado o labor’ ” (ARENDT, 1997:148 - citando Smith, no final). Labor e consumo são dois estágios de um mesmo processo imposto ao homem pelas necessidades da vida. Não é através do consumo que as atividades humanas escaparão à exigência de assegurar as coisas necessárias à vida e de produzi-las em abundancia. O que quer que façamos, devemos faze-lo para “ganhar o próprio sustento”, eis o veredito da sociedade (1997: 139). Neste sentido, uma “sociedade de consumo”, para Arendt representa o perigo de que toda a produtividade humana seja sugada por um processo vital intensificado em um ciclo natural eternamente repetido.

Há, portanto, na civilização ocidental uma compulsão à repetição, um esquecimento trágico da possibilidade de pensar uma relação não instrumental com o mundo e com a vida. A tradução desse esquecimento seria a própria tecnologia, seu elemento matematizador, seu saber antecipador que, enquanto tal, é sempre capaz de enquadrar, arquivar os seres animados e inanimados em uma bocejo entediado: “É apenas mais do mesmo”. Na Dialética do Esclarecimento, mais exatamente no excurso que ali é feito à obra de Sade, Adorno e Horkheimer já falaram sobre isso, sobre a incapacidade de a cultura moderna estabelecer relações sociais em que alguma forma de pathos prevaleça e não a distância do cálculo (ADORNO E HORKHEIMER, 1985). Mais contemporaneamente, poderemos também dizer que a cultura do espetáculo, do consumo, da produção de celebridades efêmeras, das tragédias descartáveis, é necessariamente tecnológica precisamente no sentido já identificado por Heidegger, Arendt, Horkheimer, Adorno: apenas a mobilização distanciada dos entes é aqui a regra. É isso que permite que e demanda uma estética do horror nos seja apresentada em filmes, noticiários televisivos etc. De que outra forma, senão através do horror, do mórbido, das tragédias descartáveis, nossa atenção seria, mesmo que momentaneamente, capturada?

Mais radicalmente, ainda, poderíamos suspeitar de que sob o gesto de Prometeu, sob a perspectiva de afastar de nosso cotidiano a inexorabilidade de nossa mortalidade, através de instrumentos, de artefatos que nos abrigam, protegem, ampliam nossas faculdades, ou seja, sob a técnica, haja o perigo de que tudo se encontre esquecido precisamente quando alcança exposição total. Uma vez mais, o desespero cultural de Adorno e Horkheimer nos ocorre como ilustração de uma crítica absoluta à tecnologia. E sem chegar àquele extremo, àquele desespero, poderíamos também recordar o Heidegger de Cartas sobre o Humanismo que afirma ser a tecnologia algo que mostra, exibe, disseca, escondendo.

Eventualmente, há aspectos na contribuição heideggeriana que precisam ser desenvolvidos. Por não empreender esse esforço, as análises de Arendt, Horkheimer, Adorno, debitárias daquela outra, erram por apresentar uma percepção unidimensional, catastrófica da técnica e da tecnologia. Acreditamos, por outro lado, perceber uma ambigüidade fundamental no âmbito da própria técnica - uma aporia que deve ser compreendida como uma dimensão fundamental da própria finitude humana, e não como traço de uma ou outra cultura específica. Com Derrida e Stiegler, podemos afirmar que a técnica é aquilo que, constituindo nosso horizonte, afasta de nosso cotidiano a nossa mortalidade, mas, por outro lado, destina-nos irremediavelmente a nunca esquecer dessa mortalidade. A técnica, e a tecnologia, são portanto ambíguas, abrem-se em aporias que são a força mesmo de sua dinâmica, são, em suma, humanas. E essa é sua força política, aquilo que põem em suspensão, mas não elimina, a possibilidade de que não estejamos fadados ao niilismo cultural, ao labor sem sentido.

O espaço político que Arendt percebe como eixo da cultura ocidental, e mais radicalmente de nossa condição moderna, o automatismo de não ver outra perspectiva existencial, cultural que não a mobilização perpétua dos seres, sua exaustão, é de fato uma constatação tão importante quanto apavorante. Mas há ali um político que já não pode ser política, uma dimensão do político que aborta sempre a possibilidade do conflito, do dissenso. Acreditamos, por outro lado, que, como coisa humana e fundamentalmente aporética, a tecnologia e a técnica, abrem novamente a questão da produção da diferença, a outra possibilidade. E isso não como utopia que não nos diz organicamente respeito, mas como possibilidade não garantida nas tragédias daquilo que há. Derrida, Stiegler nos chamam atenção para nossa condição de seres protéticos, seres para quem o mundo é sempre o mundo da mediação tecnológica. Tecnologia é o rastro daquilo que perdura, da tradição, se quiserem um jargão mais próximo das ciências sociais, mas o que perdura não pode ser entendido sem um conflito intestino, sem as violências que configuram o horizonte das coisas possíveis. Se a tecnologia é o destino das sociedades ocidentais, é preciso manter em aberta a perspectiva de que o mundo técnico não seja unidimensional (FERREIRA, 2010).

Existe uma farta literatura que discorre sobre as novas tecnologias como algo que produz seres híbridos - em especial, aquelas que se desenvolvem sob a influência da cibernética, o que não deixa muita coisa de fora. Ciborgues, falava-se na década de 1990 (HARAWAY, 1991; BELL e KENNEDY, 2000; GRAY, FIGUEROA-SARRIERA, MENTOR, 1995). Havia ali um Futurismo requentado, uma esperança irônica de libertação pela técnica, no que pese um diagnóstico interessante acerca de estruturas tradicionais de poder. “Feministas ciborgues devem argumentar que ‘nós’ não queremos mais a unidade da matriz natural e que não há construção que seja uma totalidade. Inocência, e a insistência que culmina com a vitimização enquanto fundamento para insight, tem feito muito dano” (HARAWAY, 1991, 157). E: “Culturas high-tech desafiam esses dualismos de maneiras intrigantes. Não fica claro quem produz e que é produzido na relação entre o humano e a máquina” (Ibid., p. 177). Esse mesmo Futurismo é, por vezes, tomado como perspectiva distópica; a tecnologia contemporânea esmaga a subjetividade, desorienta, cria apenas simulação sem realidade. Citaríamos aqui, sobretudo, Baudrillard e Virilio. “A inteligência dromocrática não se exerce contra um adversário militar mais ou menos determinado; ela se exerce como um assalto permanente ao mundo e através dele, como um assalto à natureza do homem. O desaparecimento da fauna e da flora, a anulação das economias naturais, são apenas a lenta preparação de destruições mais brutais” (VIRILIO, 1997, p. 69). Mas, já afirmamos acima, nossa condição é protética em um sentido completamente diferente do que aquele primeiro conjunto de referências propunha – e, assim, também não pode aceitar candidamente o tom catastrófico que este segundo conjunto de referências alardeia. Pois, na medida em que o espaço técnico é um espaço de “indecibilidade” e ao mesmo tempo de decisões precárias, de esquecimento, de “hypomnésis” e ao mesmo tempo de rememoração, ele é um espaço político em que uma alternativa à reificação, instrumentalização, ao empobrecimento existencial pode ser pensada (DERRIDA, 2001).

O ensaio que propomos, todavia, não tem um cunho apenas teórico. Partindo das constatações críticas que formulamos acima, de fato, só poderíamos nos orientar através da investigação concreta dos horizontes políticos abertos na sociedade de informação. E é nesse sentido mesmo que pretendemos analisar em que medida as experiências de mídia livre constituem um espaço tenso em que uma perspectiva não niilista, instrumental, possa ser forjada de dentro do, em oposição ao, capitalismo contemporâneo. Em geral, todavia, as políticas de inclusão digital limitam-se a promover o acesso a equipamentos de informática, reeditando a organização de lugares econômicos (a classe) e simbólicos - organização na qual cabe ao sujeito que não detém os meios de produção ser mero usuário ou peça do sistema produtivo, e não exercer um papel criativo, perturbador em relação a este. O que se apresenta aí como perspectiva política é a reprodução de uma relação de tutela de tais “usuários” com respeito aos objetos técnicos usados para a produção de valor. Os interesses sistêmicos de reprodução do capital atuam de uma forma muito concreta: restringindo a possibilidade de atuação dos indivíduos, que passam a lidar com caixas-pretas, pacotes tecnológicos fechados, cuja lógica de funcionamento interno, cujos princípios de estruturação políticos não parecem constituir questões relevantes. O corolário desse tipo de truísmo, sob o qual se escondem o peso de hegemonias políticas, históricas, é a restrição de apropriação criativa sobre as ferramentas de produção de valor – apropriação que possa mesmo pôr em questão os princípios amplos sobre os quais o que chamamos de fenômeno tecnológico é produzido.

As ações coletivas com tecnologias livres, por outro lado, parecem indicar uma perspectiva oposta a esta - uma perspectiva na qual são produzidas condições para uma apropriação crítica das tecnologias de informação e comunicação. Os princípios que informam essa apropriação devem tornar possível a produção de valor com base na improvisação contínua, na comunicação, nas subjetividades culturalmente construídas, nas relações afetivas, no cotidiano sensitivo das comunidades envolvidas. O trabalho imaterial que se desprende dessas potencialidades está afinado com aquilo que Gorz pontuou como sendo o “trabalho da produção de si”. Nesse sentido, o caminho traçado pelas ações coletivas com tecnologias livres é tal que permite contribuir para a construção de espaços lógicos, físicos, afetivos e normativos que permitam a expansão das potências criativas, a quebra da previsibilidade e a superação da relação industrial entre projeto e produto. Aliás, neste sentido, o resultado das ações coletivas com tecnologias livres se aproxima de seu próprio percurso, de sua relação processual com os sujeitos que tomam parte, sendo composto de encontros, celebrações, performances, compartilhamentos de saberes, intenções. A pergunta que propomos como guia do presente ensaio é identificar em que medida essas iniciativas podem ser percebidas como fraturas no discurso hegemônico acerca das tecnologias de informação e comunicação – fraturas onde o político poderia se reinstalar.


1 O labor é a atividade que corresponde aos processos de reprodução biológica do ser humano; o trabalho diz respeito à produção de artefatos que constituem um mundo diferente do ambiente natural; a ação é a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação de coisas ou da matéria, é a condição de toda vida política (ARENDT, 1997: 15).

terça-feira, 19 de julho de 2011

Pierre Bourdieu e Raymond Boudon : sacos da mesma farinha ?!


Tâmara de Oliveira


Outro dia, pesquisando sobre a segregação escolar na França, deparei-me com uma dessas declarações que fazem a gente matutar : o que esse cara está realmente querendo dizer com isso ? O cara foi François Dubet que, formado na trilha dos Novos Movimentos Sociais com Alain Touraine, mas há tempos voando muito bem na sociologia da educação por suas próprias asas, afirmou em entrevista, comme si de rien n’était, que Pierre Bourdieu (1964 ; 1970) e Raymond Boudon (1984) fizeram uma sociologia da educação sem atores sociais.
Uma declaração dessas a propósito de Bourdieu e saindo da boca de um ex-aluno de Touraine, vá lá : consigo imediatamente contextualizá-la e articulá-la às dificuldades que muita gente boa pelo mundo encontra diante do excesso de estrutura com o qual Bourdieu quis resgatar a dimensão construtiva dos agentes sociais (aproveito para declarar para todos os fins que não uso o termo agência porque me lembra banqueiro) na produção/reprodução social. Mas afirmar que o francês do individualismo metodológico fez uma sociologia da educação sem atores, já pede maiores explicações. E quando, ainda por cima, coloca-se esses adversários pouco cordiais como farinha do mesmo saco, assim sem mais nem menos, pode-se estar criando problema para pobres professores obrigados à explicação das diferenças entre a sociologia de Bourdieu e a de Boudon.
Mas a verdade é que, além de ser sociólogo respeitável, Dubet não é o único a aproximar esses dois. Leitores do Cazzo familiarizados com o MAUSS (Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales) já devem conhecer uma posição persistente de seu fundador, Alain Caillé, segundo a qual Pierre Bourdieu e Raymond Boudon, cuja oposição teórico-metodológica é a base do que aprendemos sobre eles na faculdade, possuem uma convergência essencial, relacionada ao que ele chama de virada individualista geral nas ciências sociais e na filosofia política, tornada visivelmente hegemônica a partir dos anos 1980. A primeira vez que tive conhecimento dessa posição de Caillé, meu problema foi o contrário  : falar em individualismo sobre Boudon pode até ser redundante, mas juntar Bourdieu a isso como se os dois fossem sacos diferentes de uma mesma farinha, pode abalar a reputação do sociólogo das estruturas estruturantes estruturadas (desconfio que Bourdieu revolve-se em sua sepultura até hoje, quando lembra do dito de Caillé).
Agora durma com um barulho desse : Dubet criticando os dois Bs por uma sociologia sem indivíduos ; Caillé criticando-os igualmente, por fazerem uma sociologia individualista ! Minha avó diria que é o comunismo chegando, tudo de ponta-cabeça, a bola de fogo descendo…Para escapar desse barulho é importante lembrar que indivíduo e individualismo são termos deslizantes, daqueles que exigem muita atenção para saber do que se está falando com eles.
Dubet estava falando antes de tudo em metodologia, de sua convicção de que a representação estatística dos indivíduos em escolarização foi um instrumento pertinente para estudar o que a sociedade faz com a escola (ponto de vista de Bourdieu e Boudon), mas não o que a escola faz com os indivíduos. Este último sendo o ponto de vista que ele e outros de sua geração teriam adotado em sociologia da educação, implicando em técnicas de pesquisa que partem diretamente dos próprios atores sociais – experiência, sentimentos, relações, motivações, enfim, uma metodologia de inspiração compreensiva e preferencialmente qualitativa, sem contudo renegar o quantitativo.
Ora, de fato o individualismo metodológico de Boudon que, em certo momento, foi explicitamente inspirado pela teoria dos jogos (Boudon, 1992), não é uma sociologia compreensiva e, embora as motivações dos indivíduos estejam em linha de frente em sua sociologia da educação (Boudon, 1984), elas são abordadas a partir de um pressuposto abstrato : o das escolhas individuais como causa e a reprodução social como efeito. Quanto a Bourdieu (1989 ; 1970 ; 1964), sua metodologia parte dos campos da ação e, embora os habitus dos agentes sejam socialmente estruturantes, o são no interior de campos estruturados que por sua vez estruturam os habitus (é inevitável para mim ter a sensação de círculo vicioso diante de Bourdieu). Num caso como noutro, por pressupostos diversos, a possibilidade metodológica de representar as práticas e as representações dos indivíduos em séries estatísticas está facilmente colocada.
Ora, Durkheim (1982) tinha a representação estatística dos fatos sociais como regra metodológica, justificada por uma concepção onto-epistemológica e, cá pra nós, obsessiva, sobre o necessário isolamento metodológico do coletivo, nas expressões individuais dos fatos sociais. A propósito, lembrei de um doutorando em sociologia que conheci quando eu também estava fazendo doutorado em Aix-Marseille, nos idos de 1999. Fazendo uma tese comparativa do ensino da sociologia em diferentes universidades européias, esse estudante francês costumava declarar hilário que a sociologia francesa, mesmo quando exibe desprezo pela herança durkheimiana, ainda era uma presa da sociologia de Durkheim. Será que a reflexão de Dubet sobre a sociologia da educação de Bourdieu e de Boudon refere-se a essa prisão – da qual sua sociologia mais compreensiva sentir-se-ia liberta ?
Em outros termos, não podemos esquecer que metodologia, base da declaração de Dubet, não é uma mera questão de técnicas de pesquisa ; ela envolve princípios onto-epistemológicos, base da posição de Caillé. Este, de fato, não está falando especificamente em metodologia mas em um axioma que, segundo ele, torna-se visivelmente dominante nos anos 1980 e contra o qual desde então se insurge o MAUSS :
Cette manière de penser était parfaitement congruente avec l'évolution récente de la sociologie dont je m'étais alarmé dans un article de Sociologie du travail : « La sociologie de l'intérêt est-elle intéressante ? » (1981) dans lequel je pointais la surprenante convergence, au moins sur un point essentiel, entre des auteurs en apparence diamétralement opposés : Raymond Boudon et Michel Crozier, du coté libéral, Pierre Bourdieu du côté néomarxiste. Pour les uns comme pour les autres l'intégralité de l'action sociale s'expliquait par des calculs d'intérêt, conscients pour les deux premiers, inconscients pour le troisième. Tous trois, par delà leurs divergences criantes, communiaient ainsi dans ce que j'ai appelé l'axiomatique de l'intérêt(…). Pour cette sociologie alors dominante l'homo sociologicus n'était au fond qu'une variante, un avatar ou un déguisement de 'homo œconomicus. Caillé, In : http://valery-rasplus.blogs.nouvelobs.com/archive/2011/02/27/10-questions-a-alain-caille.html

Raciocinando em termos construtivistas em sentido largo (em argumentação que nos remete imediatamente à dupla hermenêutica de que fala Giddens), o fundador do MAUSS entende ainda que tal axioma não se reduz a princípio de conhecimento, mas é também construtor de uma realidade social assentada sob o cálculo dos interesses individuais como fundamento das interações e estruturas sociais, em texto que faz da science économique standard um genuíno « objeto » da sociologia do dom, como abaixo traduzido:
A evidência histórica é que as ciências sociais bem menos interpretaram e descreveram o mundo moderno do que contribuiram à sua edificação e à sua transformação. Na feitura deste último, elas jogaram um papel que sem dúvida não é menos importante do que o do cristianismo na modelagem da Europa. Isso não é nenhum pouco contraditório com sua vocação de conhecimento. Pelo contrário. Há mais chances de se compreender e analisar melhor uma realidade para a qual nós contribuímos fortememente a criar, do que fatos totalmente estrangeiros. E aliás, o cristianismo também, como todas as religiões, não era exclusivamente prescritivo, ele oferecia igualmente uma explicação do mundo. A diferença, com certeza, é que as religiões subordinam todo objetivo de compreensão à enunciação de normas de conduta, que elas só emitem julgamentos de realidade desde que estas concordem e subordinem-se aos seus juízos de valor, enquanto as ciências sociais, quando desembocam em juízos de valor, frequentemente implícitos e não assumidos enquanto tais, entendem ou pretendem deduzi-los de julgamentos de fato, de realidade ou de racionalidade. Mas essa dependência proclamada da dimensão normativa à pretensão cognitiva não proíbiu às ciências sociais de jogarem um papel de parteiras simbólicas da modernidade(…)
(…)Nesse papel de parteiras da modernidade, nem todas as ciências sociais tiveram a mesma importância em todos os momentos e em todos os países. Considerando um período longo, digamos que dois séculos e meio, não há quase dúvida de que o principal papel, eminente, determinante, foi jogado pela ciência econômica. Melhor dizendo, pela economia política transmutada pouco a pouco em ciência econômica(…)
(…)Digamos as coisas mais simples e sinteticamente : o mundo moderno é, em larga medida, a realização do sonho (the dream come true), da profecia e da predicação da ciência econômica. Chegando até ao pesadelo, às vezes. E isso torna-se cada dia mais verdadeiro, em escala planetária, onde nada mais parece dotado de realidade, além dos constrangimentos econômicos e financeiros, da busca do enriquecimento pessoal e material. Face a estes, tudo – todo valor, toda crença, toda ação empreendida por ela mesma, para o prazer, toda existência que não é consagrada à busca da utilidade – tudo parece doravante ilusório, inoperante, sem valer à pena, supérfluo, irreal. (Caillé, 2007, pp. 6/7)

O que poderia haver de convergente no aparente paradoxo entre a declaração de Dubet (os dois Bs fizeram uma sociologia sem atores, logo, sem indivíduos) e a crítica de Caillé (os dois Bs tem em comum uma orientação científica subordinada ao axioma individualista que domina as ciências sociais e a filosofia política) ? Para tentar vislumbrar uma hipótese, continuarei citando longamente François Dubet e Alain Caillé, mesmo porque a preguiça agora não me permite argumentar mais livremente sobre eles – e preguiça é coisa que respeito cada vez mais. Primeiro Dubet, quando este fundamenta sua crítica ao princípio meritocrático da igualdade de oportunidades dos sistemas de ensino democratizados – a partir do caso francês, sua especialidade:
J’en ai tire deux conclusions. La première, c’est que dans une société non aristocratique, l’égalité des chances est le seul principe de justice sur lequel peur s’appuyer l’école : il faut bien que les individus se hiérarchisent selon leur mérite. La seconde, c’est que ce principe est extrêmement difficile à mettre en œuvre. D’une part, les élèves n’ont pas les mêmes chances au départ, en raison de leur origine sociale, de leur capital culturel, d’autre part, c’est un principe très cruel, qui dit aux bons « vous avez droit à tout » et aux mauvais « tant pis pour vous ».
On peut pondérer ce principe, en faisant par exemple valoir ce que John Rawls appelle le principe de différence : il faut faire en sorte que le déroulement de la compétition méritocratique ne dégrade jamais la sort des vaincus. D’où ma défense du collège unique, qui ne doit pas servir à sélectionner des enfants, mais à les amener tous au même niveau.
Ensuite, si les inégalités scolaires ne sont pas parfaitement justes, il est injuste qu’elles déterminent à leur tour les inégalités sociales. L’école ne devrait pas être la seule institution susceptible de distribuer les individus dans la société. Il y a des moyens de détendre un peu le jeu, comme par exemple le développement d’une véritable formation professionnelle, pour que les enfants qui échouent à l’école puissent se dire que leur vie ne s’arrête pas là.
Enfin, je m’inquiète actuellement du fait que l’école française n’a pas, ou plus, de projet éducatif. Les seules questions sont désormais : « les élèves ont-ils un bon niveau ? » et « la sélection est-elle juste ? » Ce que l’école fabrique comme individu, la totalité de l’échiquier politique s’en désintéresse. Pourtant, la seule manière d’éviter que l’école devienne complètement un marché serait de fixer à l’école des objectifs éducatifs : tout élève qui sort de l’école doit par exemple avoir le sentiment d’avoir de la valeur, ou être capable de s’exprimer en public sans avoir honte…( Dubet, 2008)
 
Agora Caillé, em texto coletivo intitulado Un quasi-manifeste institutionaliste :
Aucune communauté politique moderne ne peut être édifiée sans se référer à un idéal de démocratie. La caractéristique d'un régime et d'une société démocratique est qu'ils se soucient de manière effective de donner du pouvoir (empowerment) au plus grand nombre de gens possible et qu'ils le prouvent en les aidant à développer leurs capabilités. Aucune communauté politique ne peut être édifiée et perdurer si elle ne partage pas certaines valeurs centrales, et elle ne peut pas être vivante si la majorité de ses membres n'est pas persuadée - à travers quelque forme de common knowledge et de certitude partagée - que le plus grand nombre d'entre eux (et tout spécialement les leaders politiques et culturels) les respecte en effet. C'est le partage plus ou moins massif des valeurs communes qui rend plus ou moins fort le sentiment que la justice règne, ce sentiment qui est le ciment premier de la légitimité politique.
Si l'existence, la durabilité et la soutenabilité de la communauté politique ne sont pas considérées comme allant de soi mais, au contraire, comme quelque chose qui doit être produit et reproduit, alors il apparaît aussitôt qu'est nécessaire d'étendre la Théorie de la justice de John Rawls. Car il ne suffit pas de dire que les inégalités ne sont justes que dans la mesure où elles contribuent à l'amélioration du sort des plus mal lotis (même si c'est bien sûr tout à fait important). Il convient d'ajouter que les inégalités ne sont supportables que si elles ne deviennent pas excessives au point de faire éclater et de mettre en pièce la communauté morale et politique. Si la démocratie n'est pas vue seulement comme un système politique et constitutionnel, si on la pense en relation, de manière plus générale, avec la dynamique de la montée en puissance (empowerment) des gens, alors il ne suffit pas d'imaginer un système de division des pouvoirs et de contre-pouvoirs au sein du système politique (quelque nécessaire que ce soit par ailleurs), entre l'exécutif, le législatif et le judiciaire (à quoi il faudrait ajouter le quatrième pouvoir, celui des médias). Il est également nécessaire d'instaurer un système d'équilibre des pouvoirs entre l'État, le Marché et la Société ainsi que, du strict point de vue économique, entre l'échange marchand, la redistribution étatique et la réciprocité sociale. »

Democracia (ou sociedade não aristocrática), necessário controle institucional do mercado, desigualdades e justiça sociais e, teoria da justiça de John Rawls: eis alguns dos termos que aparecem tanto na argumentação ao mesmo tempo crítica e prescritiva de Dubet sobre o que a escola democratizada faz com os indivíduos (ponto de vista que, segundo ele, Bourdieu e Boudou teriam negligenciado metodologicamente), quanto na de Caillé para sustentar um projeto societal para além do dominante axioma indivualista do interesse (que, segundo ele, é uma convergência onto-metodológica entre os divergentes Bourdieu e Boudon). Minha hipótese é então a seguinte : a convergência entre Dubet e Caillé no que diz respeito às suas posições sobre Bourdieu e Boudon pode ser traduzida citando Adorno e Horkheimer (1978), num velho texto quase inteiramente impiedoso e unilateral contra a sociologia : « Quanto menos são os indivíduos, tanto maior é o individualismo ».
Com efeito, Adorno e Horkheimer afirmam ali que a disciplina sociológica, pretendendo libertar-se de todas as teleologias para conformar-se à verificação dos vínculos causais e regulares dos fenômenos sociais, abandonou o « impulso de possível transformação do SER, por obra do DEVER-SER, que é próprio da filosofia », dando « margem à sóbria aceitação do SER como DEVE-SER (Adorno/Horkheimer, 1978, p. 17). Todavia, apesar dessa crítica, esses autores reconhecem no mesmo trabalho que :
Sob a influência do liberalismo, da teoria da livre concorrência, surgiu o costume de considerar as mônadas como algo absoluto, um ser em si. Por isso nunca será demais realçar o valor da obra realizada pela sociologia e, antes desta, pela filosofia especulativa da sociedade, quando abalaram essa crença e mostraram que o próprio indivíduo é socialmente mediado ». (Adorno/Horkheimer, 1978, p. 47)

Em suma, quando Dubet critica relativamente e integra Bourdieu e Boudon argumentando que ambos fizeram uma sociologia da educação sem atores, incapaz de compreender o que os indivídos concretos tem na cabeça sobre o que a sociedade lhes faz, diria que ele está nos remetendo à pretensão da sociologia clássica, pelo menos àquela devedora do positivismo comteano que marcou Durkheim e a sociologia francesa posterior, de conformar-se à verificação dos vínculos causais e regulares dos fenômenos sociais. Por outro lado, quando Caillé os critica por participarem, de maneiras diferentes, do mesmo axioma individualista do interesse, diria que ele está nos remetendo à interpenetração entre dimensão normativa e dimensão cognitiva das ciências sociais, ao fato de que o conhecimento sociológico é inevitavelmente mediado pelas visões de mundo (Weber, 1992) do contexto sócio-histórico em que ele se desenvolve. Assim, embora Bourdieu, ao contrário de Boudon, sempre recusou-se teórico-metodologicamente a abordar os fenômenos sociais pelas escolhas individuais (além de ser um crítico vigoroso da sociedade neo-liberal), teve sua sociologia mediada pela hegemonia do princípio do cálculo dos interesses enquanto orientação normativa e cognitiva de seu tempo.
Concluo declarando que sei que este texto está confuso e que espero que algum leitor faça a caridade de apontar problemas. Escrevi-o porque considero que o tema é prometor e o Cazzo um excelente espaço para amadurecer idéias. Pretendo reler Boudon e Bourdieu, sobretudo quando escrevem sobre Durkheim, para esclarecer um caminho para um futuro artigo.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. / HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo, Cltrix, 1978.
BOUDON, R. L’inégalité des chances. Paris : Hachette Littérature, 1984.
__________Tratado de sociologia.São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1992.
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa : Difel, 1989.
BOURDIEU, P. / PASSERON, J.-C. La réproduction – éléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris : Les Editions de Minuit, 1970.
CAILLÉ, A. et alii. Un quasi-manifeste institutionnaliste, suivi de Vers une économie politique institutionnaliste ? In : Revue du Mauss n° 30. Paris : La Découverte/MAUSS. Second semestre 2007.
DUBET, F. Déscolariser la société – Rencontre avec F. Dubet. In : Sciences Humaines n° 199. Article de la rubrique « Rencontre avec… ». Paris, décembre 2008.
WEBER, M. Metodologia das Ciências Sociasi (Parte I). São Paulo : Cortez, 1992.