Por Tâmara de Oliveira
(Este texto é a introdução de uma participação em mesa redonda sobre o Slow Science e o produtivismo, organizada pelo Comitê Local de Greve da Universidade Federal de Sergipe)
Durante aquela hora, eu vira e descobrira o eterno segredo de qualquer grande arte e, mesmo, para dizer a verdade, de qualquer produção humana: a concentração, a reunião de todas as forças, de todos os sentidos, a faculdade de se abstrair do mundo, que é própria a todos os artistas. Eu aprendera alguma coisa para a vida. (Stefan Zweig, sobre uma hora passada com Auguste Rodin, em seu atelier. In: O Mundo de Ontem).
Começo com nosso herói sem caráter, Macunaíma, que, em meio às suas batalhas contra o gigante Piamã, gostava de sentenciar ironicamente o Brasil com a frase que (quase) parafraseei acima. A saúva de Macunaíma remete-me à Formiga de La Fontaine, aquela que ordenava sua vida calculadamente, trabalhando sem parar no presente com a ilusão de não morrer no futuro. E que, desprezando sarcasticamente o gênero de vida de uma Cigarra dedicada o tempo inteiro à arte de cantar, recusou-lhe ajuda em tempos difíceis. Sou dos que sempre simpatizam com a Cigarra; não por compaixão porque ela sofre de frio e morrerá fatalmente no inverno, mas porque não viveu trabalhando sem parar, carregando um peso maior do que ela sobre as costas – ao contrário da Formiga, esta trabalhadora que, de tão voraz e calculista, acabou desenvolvendo amargura contra o canto e a dança, contra o prazer de viver e apreciar a beleza do mundo e da vida.
A Cigarra e a Formiga é uma fábula do século XVII, ou seja, ela é filha dileta de seu tempo, aqueles primeiros do longo processo de modernização, os mesmos que, para o sociólogo Max Weber (2004), estão na origem de uma ética do trabalho produtor de riquezas materiais como valor em si e, do predomínio de uma racionalidade fundada no cálculo racional de meios úteis para a obtenção de fins perseguidos. Valores estes que tendem a opor radicalmente trabalho (domínio da economia, da produção/circulação de bens materiais) e arte (domínio da criatividade, da produção/circulação de bens
anímicos); valores estes articulados a um modo de conhecer e agir sobre o mundo através de uma linguagem científica quantitativa ou quantitativada. A ciência, tal qual a conhecemos, a partir da qual as universidades de hoje consolidaram-se, também é filha desse longo processo:
A ciência apresenta-se como um instrumento básico para a ruptura com o passado, como meio fundamental para fazer do presente a eterna construção do futuro; em suma, ela teria como pressuposto o de ser útil ao progresso da humanidade. Assim, entre a ciência e as necessidades modernas estabelece-se um vínculo íntimo e ideal de meio e fim, que tem sua fonte histórica no antropocentrismo da Europa renascentista (século XVI). Este vínculo significa que a ciência é parte constituinte da oposição tradição/modernidade, que ela se define como parte ativa desse presente aberto ao futuro que caracterizaria a sociedade moderna. (OLIVEIRA, 2006, p. 92).De lá pra cá, muitas foram e são as tensões entre trabalho e arte, quantidade e qualidade – no próprio mundo do trabalho material (Marx, 2004), no mundo da arte e no mundo científico (Coutrot, 2009). A arte e suas cigarras perderam a ambivalente proteção aristocrática, mas ganharam autonomia de campo (Bourdieu, 1989) adquiriram direito de cidade, embora muitas vezes denunciado por sua transformação em indústria cultural (Adorno/Horkheimer, 1985), ou sua colonização pelo subsistema mercado (Habermas, 1997) – em outros termos, pelo mundo das mercadorias. No que diz respeito à ciência, instalada desde sua origem como meio racional para o fim de eterno progresso da modernidade, estamos vivendo um momento crítico dessas tensões. Um universitário de Bruxelas que tem se destacado como ativista (Gosselain, 2011), afirma que há mais ou menos vinte anos o termo SLOW SCIENCE é evocado aqui e acolá para por em questão um modelo de ensino e de pesquisa que, fincando raízes antes de tudo no domínio das ciências da vida e da natureza em países anglofônicos (Gosselain, 2010) disseminou-se mundo afora entre os anos 1990 e 2000 – globalizou-se.
Lendo inúmeras manifestações reivindicando-se direta ou indiretamente de SLOW SCIENCE, fiquei pensando que a Formiga de La Fontaine tem uma descendente contemporânea que, tendo podido aproveitar a democratização do ensino superior (crescente, sobretudo, a partir dos anos 1960, 1970, 1980), ascendeu muito socialmente: virou professora-pesquisadora-publicante. O seu trabalho, dito “calculado racionalmente”, consiste em: competir ferozmente por editais de pesquisa e até de extensão; preencher formulários de projetos online inspirados em videogames; orientar um monte de estudantes na graduação e na pós; correr entre mega-congressos ou entre seminários discretos de grupos de pesquisa; fazer malabarismos entre reuniões, relatórios, pareceres, prestações de contas e até pesquisa de preços para material de pesquisa; e, acima de tudo, cumprir quotas de artigos a serem publicados em periódicos bem classificados – sem esquecer de verificar regularmente a dança misteriosa das classificações oficiais, pois, entre o prelo e a publicação do artigo, o periódico pode ter perdido conceito ou ter simplesmente sumido do qualis...
Ah, sim!, há também as aulas....ufa! O que fazer com a formação de estudantes em universidades cada vez maiores? Ora, o jeito é inseri-los desde cedo nessa máquina compressora: selecionar para nossos grupos ou laboratórios de pesquisa aqueles que, desde as primeiras aulas na graduação, revelem-se motivados e possuidores de “capabilidades” cognitivas e competitivas razoáveis para entrarem na corrida de obstáculos; glups!, quero dizer, na carreira acadêmica. O resto..., bem, aqueles que não manifestam potencial para a competição e a performance acadêmicas, estão de qualquer forma condenados ao abandono dos estudos ou a diplomas baratos – talvez úteis para batalhar um empreguinho no mundo profano de bens e serviços extra acadêmicos. Para que nos preocuparmos com eles?
E, se o professor-pesquisador-publicante trabalhar numa universidade cuja expansão deu-se a toque de caixa, através de um projeto com verbas e data pré-definidas para terminar, como é o caso de nosso REUNI, a gente não tem mais dúvidas de que se trata de um descendente da Formiga de La Fontaine, daquela saúva que, segundo nosso Macunaíma (preguiçoso, mas bom entendedor das coisas) é um dos males do Brasil – e do mundo, eu acrescentaria. Com efeito, vemo-lo cotidianamente carregando pesos quase mais pesados do que ele dentro de mochilas e pastas (data-show, netbook, tablets, DVDs.), todos esses objetos das novas tecnologias de comunicação e informação, porque as instalações universitárias são tão precárias que essa Formiga contemporânea não deve esperar que o Datashow e o notebook do auditório estejam funcionando. Sem falar nos panes de sistema ou até da prosaica eletricidade...Ah! É sempre bom também levar papel higiênico para o trabalho.
O termo SLOW SCIENCE quer dizer em bom português ciência lenta. Provavelmente é por isso que Macunaíma passou por minha cabeça, quando percebi que, em vários dos trabalhos que estudei para preparar minha fala aqui (Coutrot, 2009; Barnier, 2009; Candau, 2011; Gousselain, 2011), há um referência ao “pesquisador preguiçoso”: aquele que publica pouco ou nada (em periódicos com conceito relevante); aquele sem uma agenda que não se sabe como comporta tanta atividade! Lembram-se da primeira frase do bebé Macunaíma? “Ái, que preguiiiiça....”
Pois é, de meu ponto de vista, o que há de comum nas diversas manifestações do SLOW SCIENCE (há outras designações, como por exemplo LA DÉSEXCELLENCE da Universidade Livre de Bruxelas) é uma reivindicação historicamente recorrente na modernidade, qual seja, a do direito à preguiça – como a do genro de Marx, outrora. Porque a preguiça gosta de tempo lento e tempo lento é necessário ao exercício da criatividade, da descoberta, da transmissão, da necessidade e do prazer de fazer bem feito. Ora, e nisto são uníssonos todos os da nebulosa SLOW SCIENCE, a ciência, a pesquisa, a formação (o ensino), a articulação entre elas e a sociedade que a financia (a extensão), precisam da criatividade, do prazer de fazer bem feito e da cooperação – todas estas qualidades que a Formiga de La Fontaine não costuma cultivar. O crescimento da reivindicação por slow science significaria que suas descendentes estão enfim se rebelando contra a sina sarcástica, amarga e destrutiva de sua mãe ancestral?
Referências Bibliográficas
ADORNO, T. / HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
BARNIER, F. A pesquisa universitária avaliada...para o desprezo da ciência. In: http://quecazzo.blogspot.com.br/2010_01_01_archive.html, dez. 2009
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: DIFEL, 1989. CANDAU, J. Apel pour um mouvement slow Science. In: http://slowscience.fr/
COUTROT, L. Avaliação em ciências sociais: você disse quantificar? In: http://quecazzo.blogspot.com.br/2010_01_01_archive.html , dez, 2009
GOUSSELAIN, O. P. Slow Science – La Désexcellence. In: http://www.pauljorion.com/blog/ , agosto 2011.
HABERMAS, J. Dorit et démocratie. Paris: Gallimard, 1992.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Sâo Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
OLIVEIRA, T. Porque ensinar os clássicos ou: tradição, modernidade e ciência, substantivos da sociologia. IN: Cadernos UFS – ciências sociais. Vol VIII, fasc. 5. São Cirstóvão: Editora da UFS, 2006.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 2004.