Por Josias de Paula Jr. (Professor do Departamento de Ciências sociais da UFRPE)
O "Outro" do humano, a natureza: alguns questionamentos antropológicos
O que a “natureza” significa para a identidade ocidental? Essa pergunta pode ser mais bem formulada assim: Como funciona a “natureza” na elaboração da identidade “humana”, ou ainda, e mais simplesmente: o que significa a “natureza” na construção daquilo que é considerado o “humano” dentro do imaginário ocidental? Isso porque a relação natureza-humanidade, ou natureza-cultura – dicotomia mais usual – constitui-se no cerne da metafísica humanista.
Em uma das passagens cruciais de um de nossos textos fundadores, afirma Deus, após conceber o homem e a mulher:
Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra”. Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão fruto que dão semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas”, e assim se fez. (Gen.: 1, 28-30).Como se observa em um primeiro momento, a criação é vegetariana. Os animais e os homens vivem em paz. Mas por pouco tempo. Logo vem o pecado original, a expulsão do paraíso, a corrupção, o dilúvio... E se estabelece uma nova era, de um renovado domínio:
Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra. Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo o que se move na terra e de todos os peixes do mar: eles são entregues nas vossas mãos. Tudo o que se move e possui vida vos servirá de alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das plantas. (Ibid: 9, 1-3).
De imediato algumas questões se nos impõe: por que se dá tal mudança na relação entre os humanos e a natureza, para desvantagem desta última? Teria a natureza que expiar pelos pecados e corrupção humanos? A que futuro estaria condenada um tipo de relação como esta?
O certo é que tal discurso – repito, nosso mito fundador – deitou profundas raízes ao longo dos últimos milênios, fazendo-se estruturante de um dos aspectos mais vitais, essenciais, de nosso imaginário e práticas culturais; fez-se constituinte de uma verdade, uma das verdades mais apaziguadas, imediatas e inquestionáveis, a saber: a legitimidade do domínio humano sobre a natureza.[1]
O signo da superioridade e da dominação concentrou-se na ideia da Razão. Frente à natureza – irrefletida, irracional, instintiva, selvagem, ingovernável por si mesma – opõe-se a humanidade – reflexiva, racional, civilizada, autocentrada e previdente. A passagem dos séculos foi-nos fazendo naturalizar tais postulados, isto é, tê-los como evidentes em si mesmos. Aquilo por meio do qual a humanidade exerce seu domínio sobre o natural – a técnica, a tecnologia – foi-se tornando índice de sua evolução, de seu progresso, de seu avanço rumo à plena realização de “nossa” identidade. A ponto de hoje a técnica, ou tecnologia, ter-se tornado símbolo tão ambíguo: objeto de veneração para uns, e de desconfiança/repulsa para outros, de acordo com a tendência mais forte para a exploração ou conservação da natureza, de uns e de outros.
Um filósofo como Jean-Jacques Rousseau, que se ateve de modo tão apaixonado ao tema, não deixaria, aliás, ao esboçar a genealogia dos males societários, de ressaltar os vínculos entre humanidade-natureza-dominação. Na segunda parte do seu "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens", na qual visa deslindar a transição do estado da natureza para o estado degradado, Rousseau argumenta do seguinte modo a evolução na relação entre os humanos e os demais seres:
Essa comparação reiterada dos diversos seres com ele mesmo e de uns com os outros gerou naturalmente no espírito do homem as percepções de certas relações (...). As novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram-lhe a superioridade sobre os outros animais ao torná-lo ciente dela. Exercitou-se em preparar-lhes armadilhas, ludibriou-os de mil maneiras e, embora muitos o superassem em força no combate, ou em velocidade na corrida, daqueles que podiam servir-lhe ou prejudicá-lo, tornou-se com o tempo o senhor de alguns e o flagelo dos outros. Foi assim que o primeiro olhar que dirigiu a si mesmo produziu-lhe o primeiro movimento de orgulho. (Rousseau, 1983, p.183).Guardemos com atenção essa observação do filósofo: é no trato com os seres da natureza (especialmente aqui, com os animais) que emerge insinuante o orgulho humano! Guardemos com especial atenção essa nota, pois ela vem de uma das primeiras liras dissonantes do que se convencionou chamar de “cultura ocidental”. Rousseau, em larga medida, pertence a uma cepa de pensadores que fora influenciada fortemente pela descoberta e conquista, por parte da Europa, do “Novo Mundo”.
Este período que marca o início da “modernidade” é aquele em que a máquina conceitual metafísica, calcada no engendrar de oposições binárias[2], opera freneticamente. Classifica-se e ordena-se o mundo sob a perspectiva de uma nova série dicotômica: Europa x não-Europa; Civilização x Selvageria; Brancos x não-Brancos, etc. É a tomada de consciência por parte da Europa de sua “superioridade”, a qual daria ensejo à ideologia do Progresso e ao evolucionismo, posteriormente. A colonização dá-se pelo impacto de tal influxo. O “Novo Mundo”, com sua fauna, flora, paisagens e habitantes fantásticos e exóticos representava a natureza exuberante! E como natureza devia ser controlada, domesticada, instrumentalizada.
Mas é nesse mesmo contexto que se levantam também as vozes discordantes, a semear suspeitas na arrogância Europeia. Montaigne, ainda no século XVI, em seus Ensaios “americanos”, teceria uma das expressões lapidares contra o etnocentrismo: “Cada qual chama de barbárie o que não é de seu costume”.[3] Frei Bartolomeu de Las Casas – a quem Montaigne havia lido com interesse e admiração – iria suscitar uma das batalhas intelectuais mais destacadas da história. O sacerdote espanhol entrara em polêmica aberta contra o jurista Sépulveda, no intuito de convencer a todos – e em especial aos Reis de Espanha – da humanidade dos ameríndios. Debatia-se contra a escravização, exploração e assassinato dos povos da América, que se dava sob a justificativa da barbárie dos mesmos. Ao descrever as crueldades da conquista europeia, invertia os sinais e torcia os signos: a barbárie, na realidade, se encontrava no tratamento brutal dispensado aos “índios” pelos (que se diziam) "civilizados" [4].
Retomemos Rosseau. O autor que sustentara a superioridade virtuosa do “tempo das choupanas”, contra a frivolidade, vaidade e presunção de nosso tempo, o das ciências e das artes; Rousseau que afirmara: “Digo-o com pesar; o homem de bem é aquele que não necessita enganar ninguém, e o selvagem é esse homem” (Ibid: XVI); Rousseau, talvez o mais renomado dentre os teóricos da noção de “bom selvagem”. É nesse mesmo Rousseau que encontramos, como vimos, a análise do germe do orgulho localizado na relação humano-animal. E, portanto, ao darmos consequência lógica a tal descoberta, o germe da degradação situado na assunção de superioridade pelos humanos frente à natureza.
Tal apreciação, julgamos, constitui-se reveladora de mais coisas do que aparentemente pretendia apontar. Em que sentido? Se examinarmos mais de perto certa consciência largamente difundida em nossa época, uma perspectiva quase generalizada em nossos dias, seja pelas instituições escolares, seja pelos meios de comunicação em massa, cuja tese radica na presunção de que uma devastação da natureza sem precedentes ocorre em nosso planeta apenas a partir de alguns séculos atrás, muitos ficariam surpresos.
Isto é, tem-se uma impressão bem sedimentada que a modernidade industrial foi o grande evento detonador, o fenômeno fulcral para a crise ecológica que agora vivenciamos. Assenta-se sobre a ideia de que as “sociedades tradicionais”, ou melhor, que sociedades não-ocidentais e “pré-modernas” – como os primeiros habitantes da África, da América, etc. – viviam em harmonia com o meio ambiente, em paz com a natureza. Em suma, antes da engrenagem perdulária do capitalismo, e mais ainda dentre aqueles povos “primitivos”, reinava uma relação balanceada, equilibrada, entre humanos e mundo natural.
Não obstante, com o que sabemos hoje, por meio de disciplinas como a arqueologia e a biogeografia, por exemplo, é possível defender tal hipótese? Absolutamente, não! Em uma obra magistral, Fernando Fernandez expõe com riqueza de dados uma realidade bem distinta.
O efeito destrutivo exercido pela sociedade industrial sobre a natureza é bem conhecido e inquestionável. No entanto, só a partir da década de 60 vem ganhando terreno uma percepção adicional: a de quão profundamente o homem pré-histórico já havia afetado as faunas de continentes inteiros, especialmente por meio da extirpação seletiva dos animais terrestres de grande porte – a chamada megafauna. (Fernandez, 2004: 27)
Se pudéssemos voltar ao Pleistoceno superior – o período geológico anterior ao atual, o Holoceno – cerca de 50 mil anos atrás (o que é muito breve em termos geológicos; basta lembrar que os tão afamados dinossauros desapareceram há cerca 65 milhões anos – final do Cretáceo), teríamos oportunidade de ver todos os grandes animais encontrados hoje, mas também um formidável elenco de espécies fantásticas e desconhecidas para nossos olhos. Não apenas os mamutes, mastodontes, bisões, como também gliptodontes (“tatus” gigantescos), “lobos” marsupiais, moas etc. Uma gama imensa de fauna dizimada em período geológico muito recente e em alguns casos num curto período histórico também – exemplo dos maoris, na Nova Zelândia, os quais alcançaram o sul da ilha há aproximadamente 400 anos. Não custa lembrar que a tradição neozelandesa configura os maoris como símbolos da vida harmônica com a natureza...
Se essas informações baseiam-se em evidências tão abundantes, com formulações teóricas explicativas consistentes, por que o tema das extinções pré-históricas nos é tão desconhecido ainda? Fernandez afirma:
...muito dessa obscuridade se deve a serem fatos tão incômodos, que mexem com um preconceito muito em moda – que o homem primitivo coexistia em harmonia com a natureza. É irônico pensar que a chamada revolução agrícola, tão louvada como ponto de partida para a nossa civilização, tipicamente só foi adotada em cada lugar depois que a caça de grande porte se tornou mais difícil de obter. E não é menos irônico observar que os povos que hoje dizemos que coexistem em harmonia com a natureza coexistem apenas com as espécies difíceis de extinguir, porque as fáceis de extinguir já foram exterminadas há muito tempo. (Ibid: 42).Não viria, essa desinformação, ao encontro de um certo desejo nosso de manter intactos alguns pressupostos? Insistimos em sustentar que a crise ecológica atual constitui-se em um período excepcional da história, um desvio, uma aberração iniciada com a revolução industrial. O colapso ecológico é quase sempre situado no futuro, quando mais no presente. Entretanto nos apegamos a um passado paradisíaco. Isso nos leva à incapacidade de enxergarmos que a degradação ecológica nos acompanha ao longo da história, sendo coextensiva a nós mesmos. Ressalte-se, com o intuito de ênfase, que se sabe que a capacidade destrutiva humana galgou patamar mais elevado nos últimos séculos: somos em maior número e portamos um aparato técnico – inclusive para matar e destruir – incomparável. Contudo, a questão segue reivindicando resposta acurada: não teriam as extinções pré-históricas várias lições a nos ensinar?
Um exemplo simples: há cerca de 15 mil anos atrás, desvenda um estudo levado a cabo por um grupo de pesquisadores da Universidade de Stanford, a ação humana já desencadeava o aquecimento climático. Christopher Doughty, coordenador dos estudos, explica que se encontraram provas da seguinte sequencia: os caçadores humanos saíram da África em direção ao Hemisfério Norte; uma das espécies mais rapidamente afetadas e extintas foram os mamutes – grandes herbívoros; a extinção dos mamutes proporcionou que as bétulas se expandissem e se espalhassem – antes, com seu principal predador, os mamutes, as bétulas mal chegavam a evoluírem a troncos; sabe-se que as bétulas são responsáveis pelo aumento de 0,1º C na temperatura mundial [5].
Sabemos que a trama identitária é diferencial: “identidade é diferença”, já se observou. Temos apontado, ao longo desse ensaio, que os humanos tendem a conceber a natureza como disponibilidade, como algo a ser consumido. Por implicação lógico-identitária, os humanos seriam então aqueles que usufruem, que se apropriam das coisas naturais ao seu alcance. A relação de identidade comporta as figuras de propriedade e proprietário.
A nossa era industrial-capitalista é, quanto à capacidade de matança e destruição, a mais devastadora de todas as eras. Entretanto, é nela que se desenvolve de modo mais sistemático um elaborado discurso de conservação da natureza. Talvez, seja a hora de fazer o escrutínio mais íntimo dessa modulação discursiva. Talvez seja o momento oportuno de principiar a nos indagarmos: de que lugar, de que lócus conceitual falam os ecologistas? Em que solo identitário fincam seus pés? Evidentemente “ecologistas” é um termo muito amplo e passível de definições múltiplas. Gostaríamos de tomar em consideração aqui, mesmo que brevemente, uma parcela dentre estes, justamente aquela que granjeia a maior repercussão nos debates públicos, qual seja: a parcela daqueles que defendem o “desenvolvimento sustentável”.
O que está implicado na noção de “desenvolvimento sustentável”? Para os humanos, deve-se averiguar, qual alteração em nossa autoimagem, em nossa identidade, advém com o aparecer da noção? Não estaria o discurso ecológico situado no mesmo paradoxo identitário da relação humano-natureza exposta até então? Pois o desenvolvimento sustentável permanece a conceber os humanos como donos, proprietários da natureza. É como se perecêssemos presos a um mesmo espectro melódico, com leve alteração de tom. Em suma, o que parece repousar em tal modulação é: “Aprendemos com o passado e com nossos erros. Agora já somos capazes de ser responsáveis no manejo, no uso, na posse da natureza”. Pergunto: seria isso factível? Seria tal presunção verdadeira? Ainda mais se situarmos tal presunção numa sociedade como a nossa, na qual os lucros auferidos pela devastação da natureza são privados, e apenas os prejuízos são coletivos. Em que esfera se situaria a responsabilidade?
Resta então perguntar: estamos condenados para sempre como prisioneiros do labirinto? Surge a noção de “pós-humano” – outra expressão polissêmica. Seria ela o fio de Ariadne, o escape ao labirinto? O pós-humano é entendido aqui como crítica ao antigo humanismo, cuja calção fundamental são as oposições binárias metafísicas antes assinaladas, em especial a oposição humano-natureza. Gira o enfoque identitário: o humano (com seu arsenal de termos, técnicas e cosmologias justificadoras da exploração e expropriação natural; e sua incapacidade, ainda, de ver-se como coparticipante do mundo natural) seria confrontado agora pelo “pós-humano”, representado de maneira mais radical na capacidade já existente de se “produzir” a natureza, o “natural”.
Recentemente, por exemplo, o governo britânico encomendou um estudo a Real Society, a fim de saber qual será a situação dos recursos no planeta em 2050. Em grande medida as conclusões não foram nada animadoras: a população atingirá a cifra dos nove bilhões de habitantes; o consumo de alimentos crescerá não apenas pela expansão demográfica, mas também por uma maior absorção nos “países em desenvolvimento”; haverá intensas disputas por água e por terra; os preços dos alimentos subirão, etc.[6] Como nos alimentaremos?
É preciso assinalar que a produtividade agropecuária teve significativos índices de incremento nas últimas décadas. Novas técnicas de cultivo, o combate às pragas, o melhoramento de sementes, possibilitou um novo patamar à agricultura. Da mesma forma, estudos genéticos, alterações na ração, entre outros, proporcionaram, com relação à pecuária de gado bovino e tendo por referência o ano de 1960, 30% a mais na produção de carne e 30% a mais na produção de leite. A despeito disso, a segurança alimentar em 2050 é uma meta aparentemente inalcançável; sendo mais provável a previsão de um colapso.
O que fazer?
Considerações breves sobre o que ainda é possível fazer
O modo provocador deste ensaio não deve ser reputado como um gesto cínico, nem tampouco é intencional que seja percebido como um decalque, ou projeção apocalíptica. O caráter de alarme que ele faz soar provém de constatações objetivas que nos chegam a toda hora. O nosso planeta encontra-se hoje se debatendo em variados processos de degradação. Para que não estendamos a litania de desastres, basta que lembremos apenas de algumas ocorrências, tais como: o comprovado aquecimento global, com o consequente derretimento das grandes massas de gelo e elevação dos níveis dos oceanos; a tendência de grandes áreas do globo se tornarem desérticas, diminuindo o espaço agriculturável, num mundo onde ainda quase um bilhão de pessoas passa fome.
Repete-se a questão: o que fazer? O que se impõe como primeiro passo é a premência da desconstrução da cosmovisão hegemônica ocidental, substanciada na aludida imagem do humano forjada na tradição judaico-cristã. É preciso que de imediato se alcance uma revolução no imaginário, transformando o atual padrão de entendimento antropocêntrico num "ecocentrismo".
Desta forma, cumpre desativar os mecanismos de construção do social calcados unidimensionalmente nas possibilidades e aspirações da técnica e da ciência. Devemos estancar as consequências nefastas que acompanham a mitologia iluminista, as quais estão consciente ou inconscientemente debruçadas sobre o leito do Progresso. E é aqui que o pensamento pós-colonial ganha espaço ante a Razão, esta entidade abstrata, imperial e etnocêntrica. Pois, com base em todo o esforço de pesquisa, reflexão e vivência pós ou descolonial – entendido lato sensu, sem se restringir a um campo específico de autores e conceitos – já é possível contra-argumentar ao quadro exposto acima por Fernando Fernandez. Em que sentido? Seja porque nem todos os grupamentos humanos viveram de modo uniforme sob o signo da destruição do ambiente; seja porque vários dos povos habitantes dos países colonizados, no entrechoque com a "civilização ocidental", perceberam a necessidade de uma vivência harmônica com "a natureza"; a verdade é que dispomos de uma gama variada de experiências culturais, com ensinamentos profundos, para uma relação estável e saudável com o "nosso outro", todas as espécies não humanas.
Como alguns tem alertado, o momento não é para noções como "desenvolvimento sustentável". A transformação de nossas metas requer deslocamentos mais radicais. Entre eles, o abandono do ideário do crescimento, do desenvolvimento. Escutemos Serge Latouche:
Romper com a sociedade do crescimento, de fato, não significa preconizar outro crescimento, nem mesmo outra economia; é sair do crescimento e do desenvolvimento e, logo, da economia, ou seja, do imperialismo da economia, para reencontrar o social e o político [...] Quando, para ser breve, evocamos a necessidade de escapar do desenvolvimento e do crescimento, trata-se, sobretudo, de uma rejeição do imaginário da sociedade do crescimento e da religião do desenvolvimento econômico ilimitado. Esta descolonização do imaginário é o requisito a toda construção de uma via alternativa (Latouche, 2010, p. 219; 223).
Portanto, o discurso pós/descolonial não pode exigir somente leves mudanças de rota na marcha da sociabilidade "ocidental". Sua razão, seu acerto, se consolidará na medida em que aquilo a ser buscado se constituir no desmonte da Razão, com seus desdobramentos prático-políticos: "modernização", "desenvolvimento", etc.
Para utilizar uma expressão cunhada por Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2002), convém não desperdiçarmos a experiência, ou melhor, as experiências acumuladas por povos, coletivos e "culturas" que não sucumbiram à lógica suicida "ocidental". Por isso, é estarrecedora a maneira passiva, ou mesmo celebratória, com que pessoas que se autoidentificam como "progressistas", e de "esquerda", acatam no Brasil as políticas neodesenvolvimentistas do governo do Partido dos Trabalhadores – PT.
A consequência é o aplauso ou o silêncio diante de ameaças decisivas para várias etnias "indígenas", com o desrespeito às suas terras simbolizadas, por exemplo, na construção de megaempreendimentos de construção hidroelétrica, tal como a usina de Belo Monte. O que subjaz a esse tipo de política é a mentalidade colonizada, mente colonizada que se vê sempre em atraso – como magistralmente observou (Bosi, 1992) - em relação aos "países desenvolvidos".
Enfim, nos apropriando do jargão do marquês de Sade, é preciso mais algum esforço, companheiros, que a mera publicidade da "política verde", para podermos superar a lógica colonial. Um índice privilegiado para calibrar nossa imaginação (Sim, porque é forçoso reconhecer que necessitamos de uma intensa carga imaginativa para sair do atoleiro em que nos encontramos) salta aos olhos quando nos detemos para ver como nossa sociedade enxerga os "índios". Para mencionar somente o cenário brasileiro, como tem mostrado ao longo já de várias décadas o arguto antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, existe uma cosmovisão riquíssima entre etnias na Amazônia brasileira[7]. Urge aprender com elas.
No entanto, como nos abrir ao aprendizado se, efetivamente, ainda enxergamos aos ameríndios como um resquício do passado? Como dialogar, logo nós seres racionais, com fantasmagorias, espectros de um pretérito recém-expurgado? Promovamos uma radical revolução de nossa cosmovisão, descolonizando nosso imaginário. Encerramos aqui nossa argumentação com as palavras de Viveiros de Castro, com as quais ele propõe algo que merece ser levado à sério: ao invés de insistir com a percepção racista contra a exterioridade radical que significam os "índios" (exterioridade em relação à "civilização ocidental"), por que não pensá-los como um viés de futuro?
Tudo isto dito, entendo que índio não é um conceito que remete apenas, ou mesmo principalmente, ao passado – é-se índio porque se foi índio -, mas também um conceito que remete ao futuro – é possível voltar a ser índio, é possível tornar-se índio. A indianidade é um projeto de futuro, não uma memória do passado. No dia em que os brasileiros entenderem isso, nossa relação com a "Europa" vai se resolver. (Viveiros de Castro, 2011 – grifo nosso).
Referências Bibliográficas
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LAS CASAS, Frei Bartolomé. (2001). O paraíso perdido: brevíssima relação da destruição das Índias. Porto Alegre: L&PM.
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (2002). A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify.
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WALLERSTEIN, Immanuel. (2007). O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo.
[1] Cf. a este respeito – embora com outro enfoque e objetivo -
“Dialética da Colonização”, de T. Adorno e M. Horkheimer. Ao esmiuçar as
insuspeitáveis relações entre racionalidade e mito, afirmam os autores: "Enquanto
soberanos da natureza, o deus criador e o espírito ordenador se igualam. A
imagem e semelhança divinas do homem consistem na soberania sobre a existência,
no olhar do senhor, no comando." (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 24).
[2] Cf. acerca das implicações das oposições binárias (Derrida,
1995).
[3] Cf. Lestringant, 2006.
O autor descreve como o Brasil teve um papel importante no discurso
declamatório de Montaigne.
[4] Ainda hoje a obra de Las Casas é de um valor perturbador.
Ver (Las Casas, 2001).
[5] Cf. Estudo sobre mudanças climáticas, reportado por Paloma
Oliveto para o "Correio Brasiliense", em julho de 2010. (Oliveto,
2010).
[6] Cf. (Marinheiro, 2010).
[7] Cf. (Viveiros de Castro, 2011).