A crença de que o Cristianismo foi a religião que tornou diferenças étnicas irrelevantes ao substituir, através do trabalho missionário do apóstolo Paulo, os “laços de sangue” valorizados pelo Judaísmo por uma fraternidade universal baseada na “fé em Cristo” se manteve inabalada no interior do pensamento cristão até muito recentemente. Uma boa síntese dessa crença está na afirmação do teólogo protestante Albert Ritschl, em 1875, de que “o reino de Deus consiste daqueles que acreditam em Cristo, na medida em que tratam uns aos outros com amor, sem considerar diferenças de sexo, posição social, ou raça, criando, dessa forma, uma comunhão baseada na atitude moral (...)”[1]
Ninguém em nossos dias confunde “laços de sangue” com laços baseados em uma fé comum. Damos como certo que “sangue” é algo que se herda e “fé” é algo que se adquire. Entretanto, por mais óbvia que se nos afigure, a distinção entre “herdar” e “adquirir” um atributo não fazia muito sentido no mundo mediterrâneo do apóstolo Paulo. Nesse mundo a fé não era, como modernamente tendemos a pensar, uma crença abstrata a ser internalizada, ou uma disposição mental a ser adquirida, mas um traço de caráter que se herda de algum ancestral. No mundo de Paulo se acreditava que os traços de caráter eram atributos hereditários. Herda-se do pai a honestidade ou a desonestidade, do mesmo modo que se herda o nariz grande ou pequeno, ou uma casa ou um jumento. Um raciocínio semelhante valia para a fé. A única diferença é que, no caso da fé, havia um ancestral particularmente talhado para legá-la: o patriarca Abrahão. Para Paulo, somente um verdadeiro descendente de Abrahão (como, aliás, ele próprio acreditava ser) poderia herdar a fé redentora de Cristo. Isso trazia um problema: quem não era judeu não era descendente de Abrahão. Como tornar a fé acessível a esse gentio, ou não-descendente? A resposta era: através do batismo. O batismo fazia de um gentio um descendente (espiritual) de Abrahão, assegurando-lhe, com isso, o direito à herança do patriarca, outrora restrito aos descendentes carnais. Através do batismo se estabelecia, então, uma nova linhagem, para ser mais preciso, uma nova “raça abrahâmica”, ao lado da que já existia. A que já existia, isto é, os judeus, era constituída pelos descendentes carnais; a que veio a existir, isto é, os cristãos, era constituída pelos descendentes “espirituais”. O fato de os cristãos não serem descendentes carnais, mas, apenas, “espirituais”, não altera o fato de se perceberem como uma raça, uma nova raça, a “raça cristã”, porque, no mundo de Paulo, a “carne” e o “espírito” não eram vistos como antitéticos. O próprio “espírito” (o pneuma) era visto como uma entidade material transmitida de pai para filho.[2] Por mais paradoxal que pareça, ele fazia parte do corpo. Um herdeiro “espiritual” era também, nesse sentido, um herdeiro carnal e tinha, por essa razão, os mesmos direitos que este último.
Na medida em que os cristãos, eles próprios, podem ser considerados como o resultado de um alinhamento étnico estabelecido através da oferta de um ancestral comum para aqueles que ainda não dispunham de um, não é de todo surpreendente que o Cristianismo tenha, ele próprio, nas mais variadas circunstâncias históricas, estabelecido alinhamentos étnicos conectando a fé ao sangue de uma forma como nenhuma outra religião mundial o fez.
Com efeito, foi o Cristianismo católico que estabeleceu, pela primeira vez, alinhamentos étnicos na Espanha medieval. Como ensina o historiador Leon Poliakov, depois que os visigodos invadiram a Espanha, o Arcebispo Isidoro de Sevilha se encarregou de emparentar os iberos invadidos e os visigodos invasores. Ele o fez tornando os iberos descendentes de Tubal e os visigodos descendentes de Magog, ambos filhos de Jafé. Nosso bom arcebispo não deixava de conceder a superioridade à raça dos visigodos, mas, por meio dos “laços de sangue” agora estabelecidos, os conquistados puderam ser promovidos à dignidade de seus “primos”.[3] De forma semelhante, foi com a Reforma Protestante que se ofereceu aos alemães, pela primeira vez, um ancestral bíblico comum: Asquenaz, filho de Gômer, filho de Jafé, filho de Noé.[4] E, justamente na França racionalista do séc. XVII, na qual as “genealogias circunstanciadas” eram uma coisa do passado, “a nação e a humanidade se encontravam dissociadas”, e os teólogos e filósofos contentavam-se em “saudar com uma barretada, de passagem, Jafé, o antepassado comum da Europa”,[5] havia ainda congregações católicas que conservavam o interesse por genealogias bíblicas, pois é por meio delas que julgavam ser possível mostrar aos franceses seu “verdadeiro berço”. Assim, por volta do ano de 1700, o beneditino bretão Dom Pezron recorreu aos capítulos IX e X do Gênesis e aos escritos dos Padres da Igreja e de Flávio Josefo para mostrar aos franceses que eles eram na verdade gauleses, uma vez que descendiam todos de Gômer, filho de Jafé.[6]
Se, por um lado, o cristianismo conectou a fé ao sangue oferecendo, em circunstâncias históricas as mais variadas, uma ancestralidade bíblica aos mais diferentes povos, por outro ele o fez ao criar e implementar uma ideologia racial que grassou na Europa ibérica por três séculos, a saber, a ideologia da “pureza do sangue”. Com efeito, na época da “Reconquista cristã” (consumada com a queda de Granada, em 1492), os teólogos espanhóis desenvolveram a doutrina de que nem todo sangue é compatível com a fé cristã.[7] De acordo com esta doutrina, a rejeição de Cristo pelos judeus e mouros do passado era uma mácula de sangue que se transmitia hereditariamente. Essa mácula, ou “nota”, era tão devastadora que anulava o efeito regenerador do batismo. Dessa forma, seria inútil um judeu ou mouro se converter ao cristianismo pelo batismo porque sua “nota” o impedia de se tornar um verdadeiro cristão – como corolário, impedia também seus descendentes.[8] Assim, em 1391 teve início uma conversão em massa de judeus ao cristianismo na Espanha e, passados cem anos, os descendentes batizados desses judeus convertidos não podiam ser considerados verdadeiros cristãos porque eram portadores do “defeito de sangue”. Eram, então, chamados “conversos”. Dessa forma, uma conversão em massa, longe de conduzir a uma “fraternidade universal”, acabou por estabelecer duas etnias, os cristãos-velhos, de puro sangue, e os “conversos” (posteriormente chamados, em Portugal, de “cristãos-novos”), de sangue impuro.
Isso dito, é importante realçar que embora a ideologia da “pureza do sangue” tenha se originado na Espanha, ela foi institucionalizada pelo Vaticano. Um breve do papa Paulo IV (1555-59), de 1558, determinava que o ingresso na vida eclesiástica fosse condicionado à “pureza do sangue”, a ser averiguada mediante “diligências de gênere”. Quatro pontificados consecutivos - Gregório XIII (1572-85), Sisto V (1585-90), Clemente VIII (1592-1605) e Paulo V (1605-21) - confirmaram esta necessidade de “pureza do sangue”.[9] O papa Sisto V, por exemplo, ordenava, através do breve “Dudum Charissimi”, de 25 de janeiro de 1588, que nenhum cristão-novo fosse promovido em qualquer benefício eclesiástico.[10] Não há mérito em multiplicar exemplos. Importa, porém, salientar, que as “diligências de gênere” foram uma prática habitual por cerca de três séculos, as quais inicialmente limitaram-se a investigar os clérigos dos cabidos catedralícios (clérigos de “sangue impuro”, isto é, descendentes de judeus ou mouros, não poderiam ser aceitos na carreira eclesiástica) mas, com o passar do tempo, esta prática “estendeu-se celeremente ao clero regular e secular, às ordens militares, câmaras municipais, confrarias, irmandades, magistratura etc.”[11]
Na verdade, o fato de o Cristianismo ter promovido alinhamentos étnicos e uma ideologia racial, como também conferido a genealogias bíblicas uma assombrosa relevância social (a ponto de exumar corpos de conversos para queimá-los),[12] só é surpreendente na medida em que se pressupõe que o sentido do trabalho missionário do apóstolo Paulo era a abolição de barreiras étnicas de modo a imprimir no Cristianismo a marca indelével do universalismo. Se o Cristianismo pode mesmo, em nossos dias, ostentar essa marca, isso nada tem a ver com o trabalho missionário de Paulo. Curiosamente, enquanto os próprios teólogos cristãos têm crescentemente rejeitado a ideia de que o cristianismo nasceu para tornar diferenças étnicas socialmente irrelevantes, muitos sociólogos respeitáveis continuam subscrevendo essa ideia de forma acrítica, na esteira do pensamento seminal de Max Weber.
[2] Veja-se Caroline J. Hodge, If son, then heirs, A study of kinship and ethnicity
in the letters of Paul, Nova York:
Oxford University Press, 2007, pp. 74 a
76.
[3] L.
Poliakov, O Mito Ariano, São
Paulo:Perspectiva [1971]1974, p. 68.
[4]
Esta genealogia está em Gênesis 10:1-3.
[5] L.
Poliakov, op. cit., p. 15.
[6] Idem.ibid.
[7] É possível que esses
teólogos tenham se inspirado no Cânone 65, do IV Concílio de Toledo, realizado
em 633. De acordo com este cânone, redigido pelo já citado Arcebispo Isidoro de
Sevilha (560-636), reputado como o autor mais influente da Europa
pré-carolíngia, tanto os judeus quanto os cristãos de origem judaica deveriam
ser proibidos de exercer cargos públicos. Veja-se
Albert, Bat-Shelva, “Isidore of Seville: his attitude towards Judaism and his
impact on early medieval Canon Law”, The
Jewish Quarterly Review, LXXX, 3-4, p. 207-20, 1990.
[8]
L. Poliakov, O Mito Ariano, citado,
p. 5.
[9]
José Gonçalves Salvador, Cristãos-Novos -
Jesuítas e Inquisição, São Paulo:Livraria Pioneira Editora, 1969, p. 4.
[10]
Idem. p. 5
[11]
E. C. de Mello, O Nome e o Sangue,
citado, p. 28. Tanto no Brasil quanto em Portugal e na Espanha as “diligências
de gênere” se deram desta forma: no início restringiam-se ao clero e, depois,
se expandiram para outros setores.
[12]
Cabe registrar que em 1448, antes mesmo da implementação dos chamados “estatutos
da pureza de sangue”, nos três autos-de-fé ocorridos em Toledo, mais de cem
corpos de conversos foram exumados e queimados. Em um único dia, em 25 de Maio
de 1490, foram exumados e queimados os corpos de mais de quatrocentos
conversos. Veja-se J. Friedman,
“Jewish Conversion, the Spanish Pure Blood Laws and Reformation: A Revisionist
View of Racial and Religious Anti-Semitism”, Sixteenth Century Journal, 18(1):3-30, 1987.