"O Grito" - Edvard Munch, 1893. |
Por Simone Meucci (UFPR)
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal
são roucas e duras
irritadas, enérgicas
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
Carlos Drummond de Andrade, Nosso tempo, 1945 (In: A Rosa do Povo)
Nesse período de instabilidade institucional em que políticas públicas estão sob ataque, quando fazemos uso da palavra, ficamos, na melhor das hipóteses, entre a explosão e a análise. Na pior, não conseguimos explodir nem analisar. Sinceramente minha tendência, nos últimos tempos, é para a explosão e, no esforço de contê-la a fim de alcançar alguma análise, tive receio, ao preparar essa comunicação, de que tudo o que eu teria para dizer aqui figurasse como uma espécie de escavação arqueológica num passado muito recente que já está, no entanto, coberto por muitos escombros. O curioso é que os escombros da superfície são muito mais velhos do que toda a matéria que sufocam. Minha fala seria então uma espécie particular de trabalho arqueológico já que se trata de buscar o novo encoberto pelo antigo. Por vezes, tenho a sensação de que todo o peso da história do país está sob os nossos ombros na forma de um presente que é sempre interrompido por um passado que nunca quer terminar. A gerontocracia de Temer não nega o que meus sentidos me sugerem.
No entanto, pelo menos a rigor, o objeto desta mesa - qual seja, a Base Nacional Curricular Comum - não é ainda propriamente um pretérito. É um documento que está suspenso em sua forma mais conhecida e que, apresentado sob uma nova forma, terá centralidade na conformação futura do Ensino Médio. Trata-se então de um documento sem presente que já é futuro. A metáfora arqueológica encontra aí o seu limite, pois estamos diante de um objeto intangível posto que não tem sequer uma presença e um presente; ao passo que sua condição de passado e futuro não está também certa. Ora, não se pode escavar o intangível, o ausente, o imaginário; como também não se pode prever o futuro sem um presente.
Talvez nossa situação atual encontre um paralelo mais fiel com a de uma família que vê desaparecido um membro há muitos meses: a falta do cadáver não confirma a morte, ao mesmo tempo em que sua ausência, cada vez mais longa, não permite esperança.
As últimas notícias sobre a Base vêm da Câmara dos Deputados e do Ministério da Educação. São de alguns meses atrás. Algumas notas antigas dão conta de que haverá definição da versão final da Base em novembro (estamos a pouco dias disso). Nesse sentido, por enquanto, temos apenas notícias velhas nos sites oficiais o que é quase como ver os posts antigos no Facebook de um sequestrado.
Na Câmara, em maio, houve o seminário capitaneado pela Comissão de Educação que excluiu da sua programação os agentes responsáveis pela artesania do documento. No site do Ministério da Educação afirma-se, numa nota de junho, que a discussão sobre a Base Nacional Curricular Comum está numa nova fase, na qual seminários locais, organizados pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), sistematizam contribuições. Não obstante, a agenda pública de reuniões foi até 10 de agosto. Depois disso, um silêncio que apenas não foi absoluto devido à publicação da Medida Provisória 746 que reestrutura o Ensino Médio e que remete à Base desaparecida e aos estados alquebrados toda a ossatura curricular.
De qualquer modo, considerando que a Medida Provisória prescreve apenas a obrigatoriedade da Língua Portuguesa e da Matemática é certo que o documento sequestrado sofrerá mutilações. Aguardamos preocupados. Numa postagem recente, para estudantes do Ensino Médio, diz-se que a previsão é de que até abril de 2017 a Base seja encaminhada ao Conselho Nacional de Educação (CNE) para aprovação e que ciclos de debate e seminários envolvendo Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), escolas, professores e especialistas deverão ocorrer a partir de outubro deste ano.
Com efeito, a Medida Provisória é como se recebêssemos uma carta do sequestrador, acompanhada de alguns dedos e da orelha da vítima, anunciando seu retorno. O recado antecipou notícias de mutilações e apenas tornou mais eloquente o silêncio, mais desesperada a esperança.
Temos então uma tarefa muito difícil aqui que é a de debater um documento que foi subtraído do debate. Aliás, considerando que o documento era em si mesmo, um processo de discussão abrangente, podemos dizer que tivemos subtraído o próprio debate. Nesse caso já temos um cadáver para prantear e um morto para encantar. Vou então iniciar a elaboração do luto embora não pretenda me limitar a isso, pois quero também entender as causas da morte (não a causa do crime porque essa é impronunciável aqui - lembrando que eu optei pela análise e não pela explosão). Prometo então lidar com nosso morto e com a elaboração de sua morte de modo muito civilizado.
Como luto é também encantamento tomarei alguns poderes xamânicos da Ileizi Silva que, em artigo publicado em novembro de 2015 na Revista da Unisinos, nos diz que a Base foi, em que pese algumas dificuldades, produto e expressão de um aprendizado democrático que se manifestou através do amadurecimento da política curricular. Concordo com Ileizi: a Base foi um aprendizado maduro, que enfrentou e explicitou uma grande tensão entre a centralização e a autonomia dos currículos. Pretendeu ser um esforço de sistematização de documentos estaduais que, se externamente figurou como ação centralizadora, dentro do Ministério da Educação pretendeu enfrentar o protagonismo do INEP que induz nacionalmente conteúdos do Ensino Médio por meio do ENEM sem um consequente diálogo com a fortuna curricular dos estados.
Com efeito, o debate centralização/autonomia no Brasil é antigo e parece se explicitar de modo notável no campo educacional. Basta ver, para citar exemplos mais remotos, os dilemas dos educadores da República Velha em suas reformas estaduais impraticáveis, os debates parlamentares acerca da educação na Constituinte de 1934 e a longa jornada de discussões entre 1946 e 1961 para definição de uma lei de Diretrizes e Bases Nacional.
Essas tensões históricas no campo educacional entre a centralização e descentralização se articulam também a outros binômios, a saber: atraso/avanço e democracia/autoritarismo. Mas essa associação não se dá de modo fixo; ao contrário: a centralização é ora entendida como atraso e autoritarismo; ora como avanço e democracia em oposição a poderes regionais conservadores. Exemplos dessas associações móveis são muitos, mas vou me limitar a dois. Quem aqui não tomou a prova do ENEM de 2015 (com suas questões sobre gênero no bloco de humanas e sua redação com tema sobre violência contra a mulher) como uma resposta imperativa aos legisladores, que nos Planos de Educação municipais e estaduais, tinham recentemente abolido o termo “gênero”? Aqui o centralismo, que se expressa numa prova unificada, é visto como salvaguarda democrática contra o obscurantismo das lideranças locais. Em contrapartida, quem já não viu com certo mal-estar a política nacional de avaliação e distribuição de livros didáticos que não possibilita contemplar plenamente conteúdos regionais e que institui, através do Ministério, uma comissão de avaliadores supondo que isso não deve ser feito nas secretarias e nas escolas? Aqui, por sua vez, o centralismo pode ser visto como um obstáculo a certo ideal de democracia posto que não apenas limita a autonomia, mas também desconfia dela.
Observem que o dilema é complexo. A mobilidade dos sentidos na combinação desses binômios centralização/descentralização, atraso/avanço, democracia/autoritarismo se expressa não apenas numa pendulação histórica das soluções políticas no Brasil, mas nas nossas posições contraditórias já que a própria realidade o é. Não há, por isso, opções simples para esse dilema tão insolúvel quanto incontornável. Enfrentá-lo é, pois, tarefa dolorosa e necessária no campo educacional brasileiro.
Com efeito, nos últimos anos, vários esforços visaram a consolidação de um sistema educacional nacional com base em discussões sistemáticas com todos os setores da sociedade e entes da federação. Creio que o Plano Nacional da Educação é emblema disso, pois convocou gestores, profissionais da escola, estudantes e pais (além dos órgãos competentes) para a tarefa de elaboração de um sistema educacional capaz de superar alguns gargalos relativos à universalização e à qualificação do ensino em todos os níveis e modalidades (desde a pré-escola até a pós-graduação) - com especial atenção (nas metas 15 a 20) com a formação, carreira e remuneração dos docentes da Educação Básica. Apelou para a superação de uma visão fragmentada de gestão da própria rede, propondo um compromisso com uma concepção integrada, universalista e democrática, fazendo lembrar sobretudo dos compromissos com a Constituição de 1988. Infelizmente é bastante possível que o Plano Nacional de Educação desapareça num triângulo das bermudas formado pela PEC 241, pela MP 746 e pela PL 4567/16 que aprovou o fim da participação obrigatória da Petrobrás no pré-sal.
Nesse sentido, podemos dizer que os últimos governos federais tomaram para si a tarefa de organizar um pacto em direção a um Estado coordenador que também pressiona governos estaduais e municipais para suas obrigações constitucionais (claro que não foi tudo assim maravilhoso, mas me perdoem lembrando que o luto supõe esse encantamento).
A Base, como se sabe, é também parte desse contexto do PNE. Expressa, no nível do currículo escolar, os dilemas da relação entre os estados, municípios e a união. O Ministério da Educação assumiu, pois, a tarefa de propor uma definição de certos conteúdos comuns. Por isso, a Base é acusada de homogeneizadora, ainda que tenha pretendido um diálogo inédito com entes federados. Lembremos, nesse sentido, do notável esforço de examinar e incorporar o repertório curricular dos estados que resultou num impressionante banco de currículos que está disponível na plataforma online do Ministério.
Ocorre que esse esforço teve seu curso mais decisivo no momento mesmo em que o governo teve sua legitimidade solapada. Não sei se houve apenas uma infeliz sincronia entre o agravamento da crise política e o desenvolvimento dos trabalhos da Base ou se as tensões provocadas pelo governo aos estados no campo educacional, desde o PNE não é também ingrediente decisivo dessa crise. Por isso, muitas vezes, na mídia, a crítica à Base se confundiu com uma crítica ao PT, num debate social que frequentemente está embaralhando políticas de Estado e governo, ideologia e ciência, republicanismo com o que chamam de bolivarianismo. A Base, orientada por ideais republicanos, que nasce na crença do Estado coordenador e promotor da universalização, não tem condições de sustentação nesse ambiente, sobretudo depois que o Golpe se consumou.
Nesse sentido, podemos imaginar, numa nova metáfora, que a Base foi como um bebê (ainda que imperfeito, saudável e forte) que teve boa gestação, mas nasceu num momento em que o oxigênio estava escasso. Foi afastado dos pais e em coma, levado para alguma UTI obscura da qual, suspeitamos, sairá morto ou mutilado. As condições para artesania de uma política curricular baseada no debate e na pretensa universalidade do Estado se esgotaram. Isso se expressa num clima social orientado para a desqualificação generalizada da política e, na vertente religiosa, na condenação de tudo que não é a continuidade da família. A Base não enfrenta mais o debate da autonomia e descentralização, mas enfrenta agora inimigo maior que, na verdade, já estava à espreita: a vitória do privado sobre o público que se realiza através da usurpação do poder por determinados grupos para garantir o monopólio dos meios administrativos e legais.
A conciliação entre descentralização e centralização, entre poder central e poderes locais, assume então a sua pior forma no campo educacional. Tem agora a forma de um pacto apressado com governos estaduais para reforma do Ensino Médio na busca pela governabilidade ilegítima. Lembremos que o afastamento definitivo da Presidenta ocorreu em 31 de agosto e a medida foi apresentada menos de um mês depois, no dia 22 de setembro.
É assim que eu vejo a Medida Provisória: a farsa da flexibilidade que oculta a falta de opção e a privatização, a farsa da integralidade que, no entanto, oferece o mínimo de conteúdo, a farsa da formação profissional que não admite pensamento inteligente e, finalmente, a farsa da urgência pela “recuperação” da qualidade de ensino que esconde redução imediata de custos. Conforme nota do próprio MEC, uma vez aprovada a Medida Provisória, os estados poderão trabalhar a implementação da flexibilização dos currículos dos matriculados, já na segunda metade do ensino médio, a partir de 2017.
Nesse sentido, não há como não aguardar, numa nova versão da Base, descontinuidade com o desenho curricular que se consolidava pouco a pouco desde os anos de 2000 e que introduziu conteúdos inéditos no ambiente escolar, a saber...
em 2003 - História e cultura africana e afro-brasileira
em 2005 - Espanhol
e em 2008 - Sociologia e Filosofia, Musica, História e cultura afro-brasileira e indígena
Observemos que estas disciplinas e conteúdos introduziram, na escola, novas formas de expressão e interpretação do mundo. Os conteúdos escolares recentes, ao contemplar, por exemplo, a história e cultura indígena e afro brasileira, oferecem instrumentos através dos quais os estudantes negros e indígenas do ensino médio podem reconhecer a si próprios nas propriedades valorativas socialmente atuantes no currículo. Não por acaso, a área que mais sofreu mudanças foi a área de Humanas, além de Linguagens e Códigos. Foram áreas que se ampliaram notavelmente no momento mesmo em que o Ensino Médio foi considerado obrigação do Estado através da lei 12.061 de 2009. É, pois, essa abordagem inclusiva e plural que a Medida Provisória não assegura à escola.
A crítica à ampliação do repertório de linguagens, conhecimentos e valores dessa configuração curricular encontra seu argumento preferível na alegação de que há excesso de componentes curriculares que são a causa da baixa qualidade do ensino. Nesse sentido, cria-se a correlação espúria de que sociologia subtrai tempo da matemática, a filosofia de português, as artes das disciplinas técnicas-profissionais por exemplo. Quanto aos conteúdos propriamente ditos, a crítica tem a mesma lógica que não admite conciliação entre variedade de repertório e o aprendizado. No caso da história, isso foi notável logo após a publicação da primeira versão da Base, na celeuma entre a história clássica greco-romana e a dos povos ameríndios. Em muitos meios, o debate foi orientado na direção da crítica à ampliação do repertório que tem fundamentado os esforços de uma política curricular há muitos anos. Nesse sentido, a Base (tomada como epifenômeno da política curricular recente) foi, especialmente pelos setores que hoje se sentem representados nessa nova configuração de governo, condenada pela suas maiores virtudes.
Não há, portanto, muitas dúvidas de que a Medida Provisória e o sequestro da Base são, além do sepultamento do debate e do desrespeito ao protocolo democrático, uma modalidade de ataque aos direitos e às políticas públicas inclusivas. Um Estado mínimo corresponde a um currículo mínimo e a um reconhecimento mínimo.
E aí, diante desse quadro geral, eu me pergunto qual o lugar da sociologia numa política orientada nessa direção. Creio, sinceramente, que os pressupostos da sociologia não se acomodam aos princípios que norteiam esse projeto. E assim como eu acho que o ataque à política curricular recentemente consolidada é não apenas um ataque ao governo anterior, mas também ao Estado de Direito, creio que a desqualificação da sociologia em vários níveis no debate social é, rigorosamente, uma agressão à sociedade e a um certo pressuposto de humanismo. Então penso que estamos diante de dificuldades mais sérias do que a defesa desta ou daquela disciplina no Ensino Médio. Estamos vendo o assalto de um modelo societário ou, como diria Elias, estamos diante de um ciclo descivilizador que ocorre, ao meu ver, através de duas frentes que, apenas em princípio, parecem inconciliáveis: o liberalismo econômico e o fundamentalismo religioso (ambos têm o Estado como inimigo número um).
Se formos para o nível empírico e observarmos em particular o site da “Escola Sem Partido” (cuja capilaridade na sociedade e em partidos políticos da nova base de governo é ainda bastante perigosa - embora o parecer de inconstitucionalidade elaborado pelo STJ nos últimos dias nos tranquilize um pouco), vemos ali que três são os temas para o qual os delatores são mais sensíveis: a) a recusa do estatuto semelhante ao cristianismo às religiões afro-brasileiras; b) a negação da sexualidade (incluindo aí o tema do gênero) como um assunto escolar e c) a desqualificação da problematização da desigualdade social. Creio que, de certo modo (e vou a partir de agora argumentar nessa direção), a vigilância a esses três temas é uma amostra significativa das origens das dificuldades que a sociologia enfrenta na Escola Básica atualmente.
Observemos que os temas elencados manifestam, de um lado, a recusa a uma consciência objetiva da vida social e, de outro, o não reconhecimento de vínculos sociais que não aqueles que passam pela religião, pela determinação biológica e pelas trocas econômicas. Essa perspectiva não reconhece o ser humano senão numa tripla determinação: pelo deus cristão implacável, pela biologia e pelo mercado - que se apresentam como universais conciliados. Neste horizonte, não existe outra autoridade de base sobrenatural senão o cristianismo, não existe outro imperativo para a sexualidade senão o sexo biológico, não existe outro marcador social que não o mérito que atua como uma espécie de honra legítima estamentalmente distribuída. A família nuclear reconhecida por deus e forjada pelo sangue e o indivíduo orientado pelo trabalho e pelo interesse são os únicas unidades da vida social socialmente válidas. São porém anti-sociológicas: posto que são tão universais, não há alteridade nem desigualdade a ser inquirida e refletida.
Nesse sentido, o contraste entre essa perspectiva do mundo e o que vou chamar aqui de humanismo sociológico é gritante. Sabemos que a sociologia, desde seu início, sempre se confrontou com o pensamento religioso, com o determinismo biológico e com o pensamento liberal. A racionalização, a objetivação da vida social e o reconhecimento de que não há um indivíduo atômico são as operações intelectuais básicas da sociologia que, não raro, se expressaram também em compromissos com ideais republicanos. Para ficar apenas entre os fundadores, lembremos da empreitada de Durkheim para consolidação da III República na França ou da adesão de Weber ao projeto da recém fundada República de Weimar na Alemanha.
Não obstante, a base da sociologia é um humanismo difícil que não reconhece universais, que crê na responsabilidade humana ainda que acredite na incômoda objetividade do processo histórico que opõe criador e criatura. A sociologia admite essa complexidade acreditando, porém, que a consciência racional da vida social é um compromisso não apenas com o conhecimento, mas também com a preservação dos vínculos: as noções de exploração, racionalização e anomia dos clássicos me parecem ser expressão de uma preocupação engajada nesse aspecto. Por isso, entendo que a sociologia é uma reflexão a um só tempo tributária, crítica e compromissada com a modernidade.
Eu disse tudo isso para lembrar que no Brasil, a sociologia ressurgiu há 8 anos no currículo das escolas em meio ao processo de redemocratização, quando a Constituição Federal fazia 20 anos e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 12 anos. Ao longo da década de 1990, apareceu como disciplina optativa aqui e ali e depois se consolidou nacionalmente junto com a filosofia, evocando sobretudo seu vínculo para o preparo da cidadania. Há, com efeito, na sociologia em especial, mas não apenas nela, uma relação muito nítida entre ciência e democracia que o texto da Base reforça.
Perscrutando os conteúdos da Base, observamos que a sociologia pretende, na Educação Básica, auxiliar o jovem tanto na compreensão dos processos de integração social quanto de subjetivação fazendo reconhecer igualmente as formas de organização social e os mecanismos identitários, as estratégias e as formas de reconhecimento nos processos de interação. Para isso, propõem que se conheça os vínculos sociais, as representações simbólicas e as formas institucionais num consórcio entre a sociologia e os conhecimentos da antropologia e da ciência política.
É portanto uma ciência escolar muito nova no Brasil. Não tem precedente histórico porque no ensino secundário dos anos de 1930 era um conhecimento das elites que foi reclamada para atuar como um braço do Estado autoritário considerado qualificado para fundar a sociedade atomizada (uma espécie de repercussão prática da tese de Oliveira Viana). Daí que seu conteúdo foi orientado para ideais de civismo e civilidade. Atualmente, a sociologia encontra dificuldades para ser reconhecida em sua dimensão científica e republicana, cuja potência ela finalmente contém: ironicamente é agora considerada uma ideologia que atua como braço de um Estado desqualificado para dividir e desorganizar a vida social fundada em unidades anti-sociológicas.
Nesse sentido, creio que a condenação de um ideal de consciência racional do mundo é também a condenação de uma dos melhores fundamentos da modernidade: a reflexividade vigilante para o sentido da vida e da ação humana em meio a complexificação inexorável da vida social. Essa preocupação que a sociologia tem para oferecer e esse valor que ela pode compartilhar não podem, ao meu ver, ser negados à juventude.
Nesse sentido, finalmente, compreendo o que Bourdieu, nos anos de 1990, nos dizia: a sociologia é um esporte de combate. Admitindo isso, teremos como tarefa (a ser realizada com força e calma) restituir o valor da palavra e dizer que não defendemos a sociologia tão simplesmente, mas empenhamos nossos esforços em, através da sociologia, defender vínculos societários que não estão baseados na exclusão e no interesse. Um pugilismo urgente num mundo dividido entre indignos e indignados (como nos disse um dia Galeano).
Bairro dos Aflitos, Recife, 23 de outubro de 2016.
Texto apresentado na 40ª ANPOCS na mesa 16 - “O debate em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no contexto das políticas curriculares brasileiras” organizada pela Dr. Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins (USP) com a participação de Ileizi Luciana Fiorelli Silva (UEL) e Julia Polessa Maçaira (UFRJ).