sábado, 20 de outubro de 2007

A Aplicação do Método Hipotético-Dedutivo de Karl Popper às Ciências Sociais (Parte II)


Popper, nos anos 1990


Como eu sugeri no post anterior, a necessidade de reduzir termos abstratos a termos mais concretos (que podem ser empiricamente observados) fornece a base do individualismo metodológico de Popper. Mas isso só se sustenta porque ele parece presumir que os indivíduos são, em algum sentido não especificado, mais concretos, ou menos abstratos, do que as coletividades sociais. De acordo com ele, as coletividades sociais não são entidades naturais concretas, mas modelos abstratos construídos pelo pesquisador a fim de que se possa interpretar certas relações abstratas entre os indivíduos. Segundo esta visão, a sociedade não é nada além de um agregado de indivíduos e o que poderíamos chamar do “ambiente social” dos indivíduos constitui-se apenas de relações interpessoais (nada como estruturas macro-sociais, por exemplo). É isto que Popper quer dizer quando afirma que

a maioria dos objetos da ciência social, senão todos eles, são objetos abstratos; eles são construções teóricas. (Mesmo ‘a guerra’, ou ‘o exército’ são conceitos abstratos, não importa o quão estranho isto possa soar para alguns. O que é concreto são os muitos que são mortos; ou os homens e mulheres de uniforme etc). Esses objetos, essas construções teóricas utilizadas para interpretar nossa experiência, são o resultado da construção de certos modelos (especialmente de instituições), de forma a explicar certas experiências (....). [Por esta razão], a tarefa da teoria social é construir e analisar nossos modelos sociológicos cuidadosamente em termos descritivos ou nominalistas, isto é, em termos dos indivíduos, de suas atitudes, expectativas etc – um postulado que pode ser chamado de individualismo metodológico. (Popper, Karl (1960). The Poverty of Historicism. Londres: Routledge, p. 135-6).

O que parece estar implícito nesta regra metodológica é a idéia segundo a qual os termos disposicionais envolvidos no conceito de indivíduo apresentam um menor grau de generalidade e abstração do que aqueles envolvidos no conceito de sociedade. Parte do problema é que é difícil concordar com a idéia de que termos como “crenças”, “racionalidade”, “intenções” etc (todos ligados à noção de indivíduo) apresentam um menor grau de abstração do que, por exemplo, o conceito de instituição social. Apesar disso, Popper aponta para uma diferença importante entre as ciências naturais e as sociais que, de fato, justifica a incorporação das disposições individuais em nossos modelos explicativos: o fato de que, nas ciências sociais, nós já temos algum conhecimento intuitivo acerca da realidade social que pode ser utilizado para formularmos hipóteses acerca do comportamento das pessoas nas interações sociais. Essas disposições, para Popper, apresentam um elemento de racionalidade que permite a construção de modelos explicativos relativamente simples. O modelo que ele tem em mente quando escreve sobre as ciências sociais é a sua análise situacional.

O elemento central da análise situacional é aquilo que Popper chama de “princípio da racionalidade” ou “método da construção lógica ou racional” ou, ainda, “método zero”. Esses três termos distintos referem-se a um princípio lógico ou a priori que não pode ser empiricamente falsificado e afirma que os agentes sociais sempre agem de forma adequada ou apropriada em relação a uma situação dada. Embora o princípio, ele mesmo, não possa ser testado, já que se baseia no paradigma evolucionário de Popper, a análise situacional estabelecida a partir deste princípio pode (é, em outros termos, falsificável). Uma teoria da ação humana, como toda teoria científica, deve ser construída por meio de conjecturas e refutações e a importância do princípio de racionalidade para as teorias da ação é que ele aparece como uma tentativa de se resolver um problema. A análise situacional é, portanto, um tipo de explicação conjectural ou tentativa de alguma ação humana, a qual faz referência à situação na qual o agente se encontra. A ação é explicada por meio de uma reconstrução idealizada da situação problema na qual o agente se encontra e para cuja solução a ação desempenhada é considerada adequada, ou racional, dada a situação do agente.

Independentemente dos problemas relativos aos modelos da ação racional (em que medida ele permite uma descrição realista das ações humanas?), pode-se perceber que a análise situacional que deriva do individualismo metodológico, longe de ser apenas um modelo explicativo da realidade social é também, e principalmente, uma ontologia que nega a realidade de fenômenos coletivos como algo sui generis. E já que o critério para esta redução seria o caráter supostamente mais concreto dos indivíduos em relação às coletividades, isto sugere que Popper atribui uma importância muito maior à observação empírica do que pode parecer a princípio.
Cynthia Hamlin

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Lakmé


O poster original de Lakmé, de 1883


Um dia desses, Jonatas me disse que incluiria outro post sobre o proto-romantismo e, secretamente, nutri grandes esperanças que ele desistisse desse tal de Caspar David Friedrich para ilustrar o novo post. Tentei, de diversas maneiras, desviar sua atenção para a influência de Schiller na música: emprestei a nona de Beethoven, falei dos lieder de Schubert, tudo para ver se ele largava o tal do Caspar e ilustrava a estética romântica por outros meios, quiçá mais sublimes.

Resolvi radicalizar. Abandonei de vez a terra (e a língua) da filosofia e fui atrás de uma representação do romantismo desenvolvida no centro do Grande Império Britânico: mocinhas chinesas de olhinhos azuis (!) repuxados, sentadas em torno de um lago embrumado, afagando cãezinhos pequineses deitados nas dobras de seus vestidinhos de tafetá... Enfim, a promessa de redenção dos povos conquistados que, finalmente, sairão das trevas da ignorância e se unirão à Humanidade, com H maiúsculo. Mais kantiano, impossível! (Quanto a Schiller, essa eu deixo para Jonatas responder).

Mas e a figura? Não achei. Mas achei melhor! Um trecho da ópera Lakmé, o famoso Dueto das Flores (Vien, Mallika), do compositor romântico Leo Delibes (1836- 1891). E olha que coisa mais Iluminista: Orientalismo no melhor estilo Edward Said. O cenário é um jardim indiano, freqüentado por fiéis hindus, então proibidos de praticar sua religião livremente após a invasão britânica. Lakmé é a filha de um importante sacerdote brâmane que, para resumir uma longa história, se apaixona por um soldado britânico que invade o jardim. O pai de Lakmé fere o soldado e Lakmé o leva para um recanto afastado e cuida dele. Quando fica bom, um companheiro do exército de sua majestade aparece e o lembra de seus deveres para com o regimento e com o império. Lakmé nota a mudança que esta aparição tem sobre o seu amado e, ao perceber que o perdeu irremediavelmente para a rainha Vitória, come uma folha venenosa e morre a fim de preservar sua honra.

Desconforto em relação à cultura da razão e do controle? Ai, ai. Mas, falando sério, que Delibes dá de mil nesse tal de Caspar, isso dá! Ouve aí...
Cynthia Hamlin

O Proto-romantismo e a hermenêutica (parte 2 - Schiller e o Sturm und Drang)


"Um sonhador", de Caspar David Friedrich.

Estive conversando com a professora Hamlin acerca do Sturm und Drang, já falamos dele no post anterior, e mais pontualmente sobre como enquadrar Schiller dentro do movimento romântico alemão - eu queria falar sobre futebol e pagode, mas... Há muitos anos li o ensaio que ele escreveu sobre a estética kantiana, creio que se chama ‘Sobre o Belo e o Sublime’. Ora, Kant foi um pensador francamente moderno, iluminista e sua estética não escapa dessa tradição. Schiller, por outro lado, é uma das referências fundamentais do Sturm und Drang, cuja resistência ao universalismo, ao racionalismo, ao otimismo iluminista é bem conhecida. A conversa, então, me trouxe dividendos.
Permitam-me pensar em voz alta.
Se a palavra final que Kant dá na primeira parte da Crítica do Juízo, ou seja, quando ele está tratando de temas francamente estéticos, é dado na ‘Analítica do Sublime’, essa palavra não pode ser de fé em ideais tais como harmonia entre imaginação e entendimento, crença nos ideais gregos da proporção, equilíbrio formal. Já leram a Poética de Aristóteles? Leiam e veja se não corresponde ao que digo: a proporção, a temperança são valores éticos e estéticos na cultura grega - Foucault, entre muitos outros, trata bem disso no segundo volume da História da Sexualidade.
Antecipando a estética modernista, a 'Analítica do Sublime' fala de um sentimento de ansiedade, desacomodação, de uma incapacidade intrínseca ao ser humano de apresentar (como ele julga que os objetos se apresentam ao nosso entendimento, ou seja, aqui e agora) idéias que pertencem ao terreno da razão, tais como infinitude. A intuição (percepção aqui e agora) do infinito é impossível; tudo que a razão pode produzir aqui e agora é um conceito. O que seria do desassosego modernista com relação à forma, seus investimentos metaestéticos, sem essa constatação inicial do velho filósofo de Könisberg?
Algumas de nossas emoções estéticas mais importantes são dadas em sentimentos de inquietação profunda, como aquelas que experimentamos diante uma natureza desproporcionalmente poderosa com relação aos nossos poderes de controlá-la. Estar de frente de uma paisagem devastada por um maremoto seria uma dessas sensações. Schiller, entretanto, incialmente não está interessado no indizível, na experiência estética de um chamado da razão que vivenciamos diante do que é tremendo, colossal, incontrolável na natureza. O chamado que ele escuta ainda são relacionados às promessas de proporção e harmonia do belo - a natureza para ele é a possibilidade de um aprendizado moral: viver de acordo com os ditames de uma natureza pura, não artificalizada pela técnica. Baixei do Domínio Público do MEC (ver links ao lado) o livro Poesia Ingênua e Poesia Sentimental, da Graça e da Dignidade, de Schiller – há muitos outros do autor disponíveis no site. Recomendo que passem lá. Trata-se de um acervo valioso que certamente atenua a precariedade de nossas bibliotecas.

Pois bem, estou na metade do livro. Uma das inquietações mais constantes que ele expressa, até o momento, é saber em que medida a cultura pode promover uma aproximação entre o ser humano e a natureza.
“Con ansia dolorosa sentimos su nostalgia en cuanto comenzamos a experimentar los vejámenes de la cultura y oímos en las lejanas tierras del arte la aleccionante voz maternal. Mientras éramos simples hijos de la naturaleza, gozábamos de felicidad y perfección; llegamos a emanciparnos, y perdimos lo uno y lo otro. De aquí, nace un doble y muy desigual anhelo de naturaleza: un anhelo de su felicidad, otro de su perfección. La pérdida de la primera, la lamenta sólo el hombre sensible; la perdida de la otra sólo aflige al hombre moral”.

Trata-se de um libelo ("libelo" é brega de doer! mas deixa assim) contra o formalismo, o artificialismo da cultura clássica, um convite para mergulharmos numa estética que valorize a ingenuidade, a razão sensível e imediata dos povos primitivos e das crianças. Este mergulho na natureza, entretanto, nada tem de ameaçador. A poesia ingênua nos ofereceria a possibilidade de encontrar uma unidade perdida entre cultura e natureza – pois trata-se de uma união com uma “natureza pura – não bárbara”.

“Esa sensibilidad para la naturaleza se pone de manifesto con particular fuerza y de la manera más general ante objetos que, como los niños y los pueblos infantiles, están más estrechamente enlazados a nosotros y nos llevan tanto meor a reflexionar sobre nosotros mismos y sobre lo que tenemos de artificial”.
Embora Schiller cite em seu livro Kant e a 'Analítica do Sublime', as conclusões a que chega estão bem mais próximas de Rousseau, de sua idealização de uma natureza não corrompida, harmoniosa, uma natureza que é objeto de comunhão e não de dominação que a angústia (respeito) de que fala Kant quando confrontado com os poderes, dimensões colossais da natureza. Se a arte já não poderia estabelecer uma relação confortável entre sentir e pensar, a poesia ingênua torna-se então um ideal a ser perseguido pela estética romântica. “El poeta, he dicho, o es naturaleza o la buscará; de lo uno resulta el poeta ingenuo, de lo otro el sentimental”.

Nesse ponto do texto, no entanto, uma oposição entre modernos e antigos começa a ser estabelecida, uma oposição entre sensibilidade e razão, ou melhor, uma sensibilidade para o finito e outra para o infinito. E aqui podemos apreciar o coração ambíguo que dirige o Sturm und Drang para uma idealização da natureza, para uma valorização da ingenuidade e da antiguidade clássica.

“Si se llama poesía sólo a aquello que en todos los tiempos ha actuado uniformemente sobre la naturaleza sencilla, no se podrá menos de tener que discutir hasta el nombre de poetas a los modernos, justamente en su belleza más peculiar y más sublime, porque precisamente allí hablan solo al entendido en cosas de arte y nada tienen que decir a la naturaleza sencilla. A quien no tenga el ánimo ya preparado para ir, más allá de la realidad, al reino de las ideas, el más rico contenido le parecerá vacía apariencia, y el más alto vuelo poético. [...] El antiguo es, si se me permite expresarlo asir poderoso por el arte de la limitación; el moderno lo es por el arte de la infinitud. Y precisamente porque en la limitación reside la fuerza del artista antiguo (pues lo dicho aquí del poeta puede también extenderse, con las restricciones que de por sí resultan, a las bellas artes en general), se explica la gran ventaja que las artes plásticas de la antigüedad llevan a las de la época moderna, y toda esa desigual relación de valor en que la poesía moderna y la plástica moderna están con respecto a uno y otro arte en la antigüedad. Una obra para los ojos, sólo puede encontrar su perfección en lo limitado; una obra para la fantasía puede también alcanzarla por lo ilimitado. En las obras plásticas, pues, de poco le vale al moderno su superioridad em ideas; aquí está obligado a precisar lo más exactamente en el espacio la imagen de su fantasía y por lo tanto a medirse con el artista antiguo en aquella misma calidad en que éste tiene indiscutible ventaja. No así en las obras poéticas. Aunque también em ellas venzan los antiguos poetas en la sencillez de las formas y en lo que sea sensorialmente representable y corpóreo, el moderno puede a su vez dejarlos atrás por la riqueza de la materia, por todo lo que sea imposible de representar y expresar; en suma, por lo que en las obras de arte se llama espíritu”.
E é claro que chegamos aqui em um ponto fundamental para entender alguns valores imporantes que subjazem à crítica romântica da cultura iluminista, bem como da forma que esta influenciou uma atitude de desconforto com relação à cultura da razão e do controle. Mas a esse respeito falarei ainda. Esse post se conclui nesse estado de suspensão – e obviamente não por uma necessidade estrutural do texto, mas porque no momento enchi o saco mesmo. Depois tem mais. E você? Por que não vai a um show do Babado Novo, Paralamas do Sucesso, escutar o cd novo de Latino, assistir à última crônica televisiva de Arnaldo Jabor?...
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Jonatas Ferreira

sábado, 13 de outubro de 2007

A Aplicação do Método Hipotético-Dedutivo de Karl Popper às Ciências Sociais


Karl Popper, em 1939, aos 37 anos.

Embora a maioria dos estudantes de ciências sociais tenda a concordar que uma base metodológica sólida pode ajudar na compreensão de uma série de elementos relacionados à sua área, especialmente no que diz respeito à teoria social, grande parte acha a metodologia excessivamente abstrata e se pergunta como ela pode ser aplicada. A fim de ilustrar esta questão, apresentarei aqui algumas das principais idéias de Karl Popper, mostrando como sua concepção de conhecimento científico gera uma noção específica de sociedade (uma ontologia social), assim como da forma considerada adequada para explicá-la. Isto é um exercício interessante, especialmente porque Popper é um daqueles autores, a que me referi num post anterior, que acredita que as questões ontológicas são muito abstratas e não levam a lugar algum.

Do ponto de vista das ciências sociais, Popper defende uma perspectiva que se conhece como individualismo metodológico, isto é, que o método mais adequado para se explicar os fenômenos sociais é por meio das ações dos indivíduos que compõem um determinado sistema social. Embora ele (assim como outros individualistas metodológicos) insista que isto seja uma posição estritamente metodológica, e não ontológica, não é difícil perceber que este não é o caso. De fato, Popper tenta diferenciar seu individualismo metodológico de atomismo (ou a visão segundo a qual o mundo deve ser explicado a partir de seus elementos mais básicos, singulares) ao propor que os indivíduos (átomos da análise social, na linguagem de Weber), devem ser considerados a partir de sua inserção em seu ambiente social. Em outros termos, seu individualismo metodológico dá origem a um tipo específico de explicação, a “análise situacional”, segundo a qual os indivíduos não são átomos isolados, mas fazem parte de um contexto que deve ser considerado, caso se pretenda entender o que se passa em suas mentes e porque eles agem de uma forma e não de outra.

A análise situacional defendida por Popper deriva diretamente de sua tese da unidade do método científico, isto é, da visão de que o método hipotético-dedutivo é o único método adequado para se construir teorias científicas. Como o meu objetivo aqui não é o de descrever detalhadamente a filosofia da ciência de Popper, mas apenas estabelecer as bases de sua análise situacional, limitar-me-ei à introdução de alguns temas relativos ao método hipotético-dedutivo que permitam compreender a relação entre sua metodologia e o desenvolvimento de um modelo de explicação para as ciências sociais.

Grosso modo, o método defendido por Popper estabelece que as teorias científicas não são verdades comprovadas e definitivas, mas explicações tentativas (hipotéticas ou conjecturais) que podem ser consideradas mais ou menos plausíveis. Ao contrário do que afirmavam os empiristas lógicos do Círculo de Viena, as hipóteses e teorias científicas não poderiam ser verificadas porque, para Popper, não é possível um conhecimento por indução a partir da repetição de observações singulares. (A verificação pressupõe a observação de casos singulares e a indução desses casos singulares para casos mais gerais, como as leis). Ao contrário do argumento indutivo defendido pelos empiristas, Popper alinha-se com os racionalistas ao afirmar que a mente humana tem disposições inatas que são modificadas ao longo do tempo – e aquelas disposições para o conhecimento que não são inatas ou modificações posteriores daquelas que o são, derivam de um conhecimento objetivo, baseado na racionalidade, e não em experiências “impressas” na mente enquanto tais. Para Popper, as experiências são sempre, em alguma medida, selecionadas, interpretadas e modificadas (cf. Popper, Karl (1994). Knowledge and the Body/Mind Problem: In Defence of Interaction. Londres e Nova York: Routledge).

A distinção popperiana entre dedutivismo e indutivismo coincide em grande medida com a distinção clássica entre racionalismo e empirismo: enquanto o empirismo baseia-se na idéia de que a ciência procede por meio da coleção de observações singulares que são depois indutivamente generalizadas, o racionalismo apóia-se na noção de que existem alguns princípios auto-evidentes, baseados na razão, de acordo com os quais é possível deduzir certas proposições acerca do mundo. Mas o racionalismo de Popper assume um sabor bastante específico. Por um lado, deve ser distinguido da idéia de Kant de que esses princípios auto-evidentes são sintéticos e a priori: eles são, ao contrário, conjecturas ou hipóteses. Por outro lado, essas conjecturas ou hipóteses não são meros instrumentos ou definições que não podem ser submetidas a teste empírico. Nas palavras do próprio Popper, “elas são, portanto, sintéticas (e não analíticas); empíricas (e não a priori); informativas (e não puramente instrumentais)” (Popper, Karl (1960). The Poverty of Historicism. Londres: Routledge, p. 132).

É a possibilidade de se testar essas hipóteses que garante a possibilidade de se afirmar a realidade dos objetos da ciência. Em outros termos, quando as hipóteses não são falsificadas, elas provavelmente não podem ser reduzidas a meros instrumentos ou definições, mas dizem algo a respeito do mundo (seu caráter informativo). Esta é uma das diferenças fundamentais em relação a Thomas Kuhn, para quem as teorias e as hipóteses científicas seriam “instrumentos úteis”. Mas Popper não é um realista ingênuo, que acredita em uma correspondência direta entre conceito e realidade (ou entre teoria e realidade). De fato, ele combina seu realismo (científico) com a tese nominalista segundo a qual as hipóteses não descrevem a essência das coisas. Hipóteses ou teorias são modelos que podem ser falsificados, não podendo ser confundidas com objetos concretos. Isto gera a visão segundo a qual as teorias científicas podem ser verdadeiras ou falsas (ou, pelo menos, almejar à verdade), mas os termos teóricos que elas pressupõem não se referem a qualquer coisa realmente existente. Isto porque “mesmo proposições singulares são sempre interpretações dos ‘fatos’ à luz das teorias” (Popper, Karl (1968) The Logic of Scientific Discovery. Londres: Hutchinson, p 493; ênfases do autor). Isto é outra forma de dizer que todo termo teórico, todo “fato” (supostamente singular) descrito pela ciência contém universais. Esses universais são termos disposicionais, isto é, termos ou palavras que caracterizam o comportamento nórmico (em forma de leis) de determinadas coisas.

Neste sentido, para Popper, tanto as proposições universais (as leis científicas) quanto as proposições singulares (observações de fatos particulares) transcendem a experiência – o que desqualifica o empirismo e a indução como formas seguras de conhecimento. Por outro lado, Popper defende a idéia de que quanto mais abstrato o termo disposicional envolvido em um conceito teórico, mais ele transcende a experiência. A experiência não é algo que Popper deseje abandonar de todo, daí a regra nominalista de se reduzir termos abstratos a termos mais concretos. Para ele, quanto menos abstrato o conceito, menor o grau de universalidade de suas disposições (Ibid: 425). Quanto menos universal, mais informativo e, portanto, mais “próximo” da realidade. É esta combinação particular de realismo e nominalismo que tornará possível estabelecer as condições do conhecimento objetivo, por um lado, e o desenvolvimento de seu modelo de explicação com base no individualismo metodológico, por outro.

(continua)

Cynthia Hamlin

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Patos, Coelhos e Revoluções Científicas


O Pato-Coelho, conforme apareceu na revista Fliegende Blatter em 1892

O que você vê na figura acima? Um pato? Um coelho? O que muda quando percebemos a figura ora como um pato, ora como um coelho? O objeto? Nossa forma de organizar a percepção?

Este problema vem ocupando filósofos e psicólogos durante muito tempo. A figura do pato-coelho foi utilizada pela primeira vez no meio acadêmico por um psicólogo americano chamado Joseph Jastrow, em 1900, que dedicou boa parte de seu tempo a estudar ilusões de ótica a fim de demonstrar que a percepção é produto da atividade mental, isto é, que percebemos tanto com a mente quanto com os órgãos dos sentidos. Em 1947, Ludwig Wittgenstein pega emprestado o desenho apresentado por Jastrow (na verdade, ele aparece pela primeira vez em uma revista de humor alemã) para investigar o que muda na nossa visão de mundo quando percebemos algo de maneira diferente. Para Wittgenstein, diferentemente de Jastrow, perceber a figura como um coelho ou como um pato não é, portanto, parte da percepção, mas parte da forma de vida que informa nossa percepção do mundo.

Pouco menos de duas décadas mais tarde, o físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn retoma a figura do pato-coelho a fim de ilustrar como uma mudança na nossa visão de mundo pode alterar radicalmente a forma como percebemos um objeto. A esta visão de mundo Kuhn chamou paradigma.

O termo paradigma vem do grego e significa “exemplo” ou “padrão”. Mas a importância do conceito, conforme usado por Kuhn na filosofia da ciência, é que ele diz respeito ao conjunto de práticas, pressupostos, modos de fazer, questões pertinentes etc compartilhados por uma determinada comunidade de cientistas. Diz respeito, portanto, a um tipo de consenso que define a ciência normal, isto é, o trabalho de rotina desempenhado pelos cientistas em seus laboratórios. Durante este período de consenso e de trabalho rotineiro (daí o termo ciência normal), aqueles pressupostos, modos de fazer etc não são questionados, já que possibilitam resolver a maioria dos problemas levantados de forma satisfatória. No entanto, Kuhn reconhecia que mesmo a ciência normal tem suas anomalias: alguns problemas não podem ser resolvidos, sendo ou ignorados, ou tolerados. Mas à medida que a quantidade de problemas não resolvidos vai se acumulando, não se pode mais ignorá-los ou tolerá-los e a ciência entra em crise: uma crise paradigmática.

As crises paradigmáticas levam os cientistas a reformularem suas idéias, a tentarem novas formas de se resolver questões, a estabelecerem um novo paradigma. Esta nova visão de mundo vai paulatinamente ganhando novos adeptos até que se torne consensual (ou seja, que passe a ser parte da ciência normal). Esta passagem de um paradigma a outro é concebida por Kuhn como uma revolução científica, uma transformação radical em uma determinada área do conhecimento. Exemplos de revolução científica ou de mudança paradigmática são a passagem do modelo geocêntrico, defendido por Ptolomeu, para o modelo heliocêntrico defendido por Copérnico; a substituição do criacionismo na biologia pelo evolucionismo; da física newtoniana pela física relativista de Einstein. Cada um desses paradigmas é incompatível com o anterior ou, nos termos de Kuhn, os paradigmas são incomensuráveis (não comparáveis, não traduzíveis uns nos outros). Isto significa dizer que o conhecimento científico não se desenvolve por meio do acúmulo paulatino de conhecimento, mas por meio de revoluções científicas nas quais visões de mundo inteiras são substituídas por outras.


Cynthia Hamlin