domingo, 17 de abril de 2011

A sociologia reflexiva como ferramenta de autotransformação: Pierre Bourdieu e a política da vida


Por Gabriel Peters (IESP/UERJ)

Preâmbulo: o habitus e a estruturação das estruturas

A teoria da prática do saudoso Bourdieu carrega em seu núcleo uma hipótese comum a uma multiplicidade de perspectivas sociológicas e antropológicas contemporâneas. Trata-se da ideia de que as estruturas de personalidade de quaisquer agentes individuais são moldadas pela trajetória experiencial percorrida por estes agentes em contextos sociais específicos. Isto implica que o modo de “ser-no-mundo” (Heidegger) de qualquer ator traz necessariamente consigo as marcas das circunstâncias sócio-históricas no interior das quais se desenrola sua biografia. Tal moldagem social da subjetividade individual abarca tanto os seus aspectos volitivos – as vontades, intenções e desejos que os atores perseguem no curso de suas vidas – quanto recursivos – as habilidades cognitivas, expressivas e práticas que capacitam tais agentes a intervir sobre o mundo social.

A menção aos aspectos recursivos da subjetividade é fundamental para ressaltarmos que, na perspectiva de Bourdieu, a estruturação socializadora da personalidade individual não é apenas restritiva (i.e., uma fonte de proibições exteriores aos cursos de ação possíveis aos atores), mas também habilitadora, na medida em que fornece aos agentes um conjunto de recursos com os quais eles tornam-se aptos a contribuir para a reprodução ou transformação das formações sociais em que estão imersos. Esta ideia é centralíssima, por sua vez, para a tese de que a constituição dos indivíduos pela sociedade está dialeticamente articulada à constituição da sociedade pelos indivíduos. Na praxiologia estrutural bourdieusiana, uma versão retrabalhada da velha e venerável noção aristotélico-tomista de habitus desempenha precisamente este papel de mediação entre o individual e o social, designando uma “subjetividade socializada” (Bourdieu & Waquant, 1992: 126) que contribui, por sua vez, para constituir e reconstituir o próprio mundo social objetivo em que está imersa. A ênfase na circularidade do habitus perpassa toda a obra de Bourdieu, na qual o conceito retrata o princípio gerador, socialmente gerado, de práticas e representações; ou ainda, para citar um dos seus casos mais famosos (ou infames) de acrobacia estilística, como uma “estrutura estruturada predisposta a funcionar como estrutura estruturante” das mesmas estruturas que o estruturaram (Bourdieu, 1979: 72). Desse modo, a realidade social não é concebida por Bourdieu apenas como exterioridade (à maneira do Durkheim de As regras do método sociológico) ou interioridade (à maneira da sociologia fenomenológica de Schutz), mas simultaneamente como exterioridade objetiva e interioridade subjetiva; ou melhor – para tornar a pintura mais dinâmica e dialética, prestando de quebra uma homenagem a um estilo que rompe com todos os manuais jornalísticos de sanidade estilística -, como exterioridade objetiva subjetivamente interiorizada e interioridade subjetiva objetivamente exteriorizada.

O caráter tácito do habitus

Além de retratar a conduta individual como socialmente constituída e constituinte, a categoria do habitus aponta para o caráter predominantemente tácito ou infraconsciente dos motores subjetivos da ação humana. Através dela, Bourdieu sublinha o papel inventivo dos agentes na construção e reconstrução do universo social ao mesmo tempo em que sustenta, em conformidade com “o princípio da não consciência”, que o ator não possui um acesso consciente e reflexivo às “determinações internas e externas” que o levam “a agir como agiu, a pensar como pensou, a sentir como sentiu” (Lahire, 2004: 21-25). Com efeito, seria precisamente a “cumplicidade ontológica” entre estruturas objetivas e subjetivas o que tornaria possível que as diversas condutas fossem objetivamente orientadas para determinados fins sem que estes tivessem de ser explicitamente visados pelos indivíduos que as realizariam. Bastaria para isso que os mesmos atualizassem seus habitus (ou habiti, para latinistas ortodoxos) de maneira prático-intuitiva quando exigidos nas diferentes situações de sua existência social – daí a referência a um “senso prático”[1].

A insistência no modo pré-reflexivo e não discursivo de ajustamento criativo dos habitus às suas circunstâncias sociais de funcionamento implica uma rejeição vigorosa, na esteira de autores como Heidegger, Merleau-Ponty e Wittgenstein, dos retratos excessivamente intelectualistas das ações e motivações humanas. Seja no caso das teorias que concebem a conduta individual como movida pelo cálculo racional e consciente, seja no caso daquelas que a tomam como resultante da obediência explícita a normas de comportamento, o intelectualismo daria ensejo a modelos do agente humano que mais pareceriam “uma espécie de monstro com a cabeça do pensador pensando a sua prática de modo reflexivo e lógico montado sobre o corpo de um homem [sic, acrescentam as feministas] de ação engajado na ação” (Bourdieu & Wacquant, 1992: 123).

Habitus e reflexividade 1: o efeito de histerese

Diversos críticos de Bourdieu acentuam que não é preciso superestimar o grau de autotransparência motivacional dos atores leigos para chegar à conclusão de que sua ênfase sobre o funcionamento tácito do habitus, ainda que valiosa, leva-o a negligenciar o relativo controle reflexivo e consciente que aqueles atores podem exercer sobre suas próprias disposições práticas de conduta. Na maior parte de sua obra, Bourdieu permanece tremendamente cético quanto à possibilidade de que os próprios atores tematizem reflexivamente as propriedades de seus habitus e transformem-nas criativamente em certa medida. No entanto, ainda que ressalte ser o habitus o motor mais freqüente da ação humana, o autor não chega a negar a possibilidade de condutas causalmente eficazes motivadas por deliberações explicitamente articuladas na mente dos atores. Ele mantém, no entanto, que tal forma de comportamento dependeria de condições sócio-históricas específicas de possibilidade:
...o habitus é um princípio dentre outros de produção das práticas e, ainda que esteja indubitavelmente em jogo de maneira mais freqüente que quaisquer outros – ‘Somos empíricos’, disse Leibniz, ‘em três quartos das nossas ações’ –, não se pode descartar que ele possa ser substituído em certas circunstâncias – certamente em situações de crise que rompem o ajustamento imediato do habitus ao campo – por outros princípios, como a computação racional e consciente (Bourdieu, 1990b: 108).
As situações de crise de ajustamento a que o mestre se refere são por ele denominadas, sem medo de estranheza, “efeito de hysteresis”. As circunstâncias de histerese correspondem aos contextos de ruptura da cumplicidade ontológica entre habitus e campo, situações nas quais a ativação das disposições encarnadas no habitus é exigida em contextos diferentes daqueles que o produziram. Tais contextos sócio-históricos de desajuste entre as condições de produção e as condições de funcionamento do habitus constituem a fonte de mudança social mais discutida na obra de Bourdieu (como na sua análise do Maio de 68 em Homo Academicus). Do ponto de vista de suas concepções acerca das engrenagens que movem a conduta individual, essa análise também é elucidativa, pois a quebra da cumplicidade ontológica entre disposições subjetivas e condições objetivas do milieu societário abre espaço para que a conduta tacitamente motivada do habitus possa ser substituída por motivações reflexivas demandadas por aquela dissonância. Como um desafio prático colocado ao ator, esta última estimularia, assim, a recuperação discursiva e a crítica explícita do que até então tinham sido assunções “doxicamente” aceitas, a transmutação da praxis em logos, a passagem do senso prático à elaboração discursiva e à consideração consciente de alternativas de ação:

A crítica que traz o não-discutido à discussão, o não-formulado à formulação, tem como sua condição de possibilidade a crise objetiva, a qual, quebrando o laço imediato entre as estruturas subjetivas e as estruturas objetivas, destrói a auto-evidência no âmbito prático (Bourdieu, 1979: 169).

Habitus e reflexividade 2: a sociologia como ética e política da autotransformação

Mais importante para os propósitos deste texto, no entanto, é o fato de que, segundo o sociólogo francês, afora o descompasso histórico entre disposições subjetivas e circunstâncias objetivas, a tentativa de domínio reflexivo do próprio habitus também pode ser amparada pela própria sociologia quando esta é mobilizada como um ferramental de auto-análise:

... não apenas pode o habitus ser transformado praticamente (sempre dentro de fronteiras definidas) pelo efeito de uma trajetória social levando a condições de vida distintas daquelas iniciais, como também pode ser controlado por meio do despertar da consciência e pela socioanálise (1990b: 116).

O projeto de uma sociologia reflexiva, que Bourdieu considera como sua principal contribuição às ciências sociais, assenta precisamente na possibilidade de que disposições impensadas de pensamento e comportamento possam ser racionalmente controladas ao acederem ao nível da consciência. No âmbito epistemológico, trata-se de uma atualização sociológica da noção kantiana de crítica, originalmente concebida como a capacidade de reflexão do pensamento ou razão acerca de seus próprios pressupostos e limites. Tais pressupostos e limites são historicizados e sociologizados por Bourdieu, isto é, não mais pensados como propriedades inerentes a um sujeito “transcendental”, mas como resultantes da inserção do/a pesquisador/a em uma formação sócio-histórica que emoldura seu modus cognoscendi.

Ainda que, no mais das vezes, Bourdieu sustente a importância da reflexividade sobretudo como uma ferramenta metodológica indispensável ao trabalho sociocientífico, ele também veio a atribuir a esta um valioso papel ético-político. Trata-se precisamente de conscientizar os atores acerca dos determinismos sociais que pesam, externa e internamente, sobre suas condutas, abrindo aos mesmos “a possibilidade de uma emancipação fundada na consciência...dos condicionamentos por que se passou”; um conhecimento que poderia, ainda, dar ensejo ao cultivo reflexivo de novos habitus, isto é, de “novos condicionamentos duravelmente cunhados para contrabalançar...[os] efeitos” de uma socialização anterior (Bourdieu, 1999, p. 340).

Em virtude de suas óbvias intenções e implicações morais, o projeto sociocientífico de Bourdieu pode ser classificado como uma variante da “teoria crítica”, concebendo-se essa expressão no seu sentido mais abrangente, para além de sua redução à chamada Escola de Frankfurt. A noção de crítica suposta em sua versão de teoria crítica une o sentido kantiano de escavação sistemática de pressupostos do pensamento e da ação a um sentido mais afeito ao marxismo, associado ao desvendar de modalidades ideologicamente mascaradas de dominação e exploração. Isto porque as categorias de percepção e orientação da conduta que garantem a inteligibilidade do mundo social para os agentes são, na visão do sociólogo francês, as mesmas que os levam a naturalizar e essencializar as assimetrias duráveis de poder que perpassam esse mesmo mundo – precisamente o processo que ele batiza de “violência simbólica”, que forma com habitus e campo a Santíssima Trindade de conceitos da sociologia bourdivina.

Nesse sentido, a obra de Bourdieu pretende contribuir para a desnaturalização dessas relações de dominação, desnudadas como arbitrariedades históricas contingentes, falsamente travestidas como ordenamentos naturais das coisas para a (in)consciência comum. Com efeito, ainda que eu discorde, pelo menos a partir de uma mirada global sobre a sua obra, das tentativas de demonstrar que Bourdieu é um marxista em última instância (sic), a tentativa de expor como falso, porém ideologicamente funcional, o caráter de necessidade percebido em dadas circunstâncias sócio-históricas certamente aproxima-o de críticas marxistas da reificação, como aquelas levadas a cabo por Lukács e pelos frankfurtianos (Vandenberghe, 2009).

Seja como for, a diagnose sociológica das formas de dominação e violência simbólica, ao apontar para seus efeitos cognitivos, morais, emocionais e corpóreos nas próprias estruturas de personalidade (ou habitus) dos indivíduos, possui implicações inseparavelmente políticas e existenciais. No seu Esboço de auto-análise [2] , Bourdieu faz votos de que seus instrumentos sociológicos sejam utilizados como ferramentas de auto-reflexão e auto-ajuda, compreendendo-se essa última expressão, é claro, no sentido da tradição filosófica clássica de reflexão sobre os modos de aplacar o sofrimento e os caminhos da “boa vida” (Aristóteles), não daquela indústria bibliográfica contemporânea tão desprezada (não tão justamente, segundo Giddens [3]) por um contingente substancial de intelectuais:

nada me deixaria mais feliz do que lograr levar alguns dos meus leitores ou leitoras a reconhecer suas experiências, suas dificuldades, suas indagações, seus sofrimentos, etc. nos meus e a poder extrair dessa identificação realista, justo o oposto de uma projeção exaltada, meios de fazer e viver um pouco melhor aquilo que vivem e fazem (Bourdieu, 2005: 135)

A despeito da diferença de teses e métodos, a referência implícita à psicanálise na noção de socioanálise serve para manifestar o enraizamento comum no projeto socrático da autoconsciência como primeiro locus da liberdade, no propósito de expandir o nível da consciência humana para dimensões determinantes da sua conduta as quais, se deixadas intocadas por esse esforço reflexivo, permanecem escondidas, reprimidas, inconscientes, dissimuladas. No combate aos sofrimentos psíquicos derivados dessa condição, Freud havia erigido como princípio básico da terapia psicanalítica o imperativo “onde havia id, que passe a haver ego” (Wo Es war, soll Ich Werden). A premissa desse lema é: quanto menos conhecemos nossos impulsos inconscientes, mais somos escravos e joguetes dos mesmos, mais eles nos controlam sem que sequer saibamos disso. Nesse sentido, a primeira condição para o incremento da minha liberdade, concebida como capacidade de autodeterminação racional, consciente e deliberada, é precisamente o conhecimento das minhas disposições inconscientes de comportamento, dos móbeis que até então motivavam minhas ações e representações sem que a eles eu tivesse acesso consciente.

Sendo, como Freud, um racionalista ético tremendamente sensível aos obstáculos impensados à autodeterminação racional, Bourdieu persegue, no entanto, um inconsciente distinto daquele pensado pelo pai da psicanálise: a matriz socialmente interiorizada de onde florescem as ações que configuram nosso modo de ser no mundo, isto é, nosso habitus. Se, como afirma Durkheim, “o verdadeiro inconsciente é a história”, o auto-analista sociologicamente municiado pelo pensamento de Bourdieu conhece a si mesmo/a como “história feita corpo”, personalidade socialmente constituída, ser dotado de um habitus que, em princípio, o possui, mais do que é possuído por ele. A dimensão de desencanto dessa linha de análise é inescapável, dado que ela não nos pinta como seres irredutíveis ao mundo, mas mundanos, demasiado mundanos, moldados nos territórios mais íntimos de nossa personalidade por determinações sócio-históricas exteriores a nós, porém objetivadas na nossa subjetividade mesma.

Todas essas implicações podem possuir, entretanto, um caráter potencialmente emancipatório sob as lentes de Bourdieu, na medida em que esse esforço sociológico-reflexivo de “anamnese” (Platão) possibilita um trabalho de auto-reapropriação. Em uma esfera de realidade onde não estão em operação as leis trans-históricas da natureza, reconhecer as forças que agem sobre nós e, em particular, “dentro” ou “através” de nós, é adquirir uma ferramenta para fazer alguma coisa a respeito, agindo sobre ou contra tais forças. Trazendo a pretensão “clínica” ou “délfica” [4] para o campo das ciências sociais, Peter Berger viu nessa auto-reflexão potencialmente liberatória a própria razão de ser moral da Sociologia:

Voltemos mais uma vez à imagem do teatro de marionetes. Vemos as marionetes dançando no palco minúsculo, movendo-se de um lado para outro levadas pelos cordões, seguindo as marcações de seus pequeninos papéis. Aprendemos a compreender a lógica desse teatro e nos encontramos nele. Localizamo-nos na sociedade e assim reconhecemos nossa própria posição, determinada por fios sutis. Por um momento, vemo-nos realmente como fantoches. De repente, porém, percebemos uma diferença decisiva entre o teatro de bonecos e nosso próprio drama. Ao contrário dos bonecos, temos a possibilidade de interromper nossos movimentos, olhando para o alto e divisando o mecanismo que nos moveu. Este ato constitui o primeiro passo para a liberdade. E neste mesmo ato encontramos a justificação definitiva da sociologia como disciplina humanística (Berger, 1972: 194).

É inspirado pelo mesmo espírito que Bourdieu propõe a tese de que “a sociologia liberta libertando da ilusão de liberdade” (Bourdieu, 1990: 28). O verbo “libertando”, nesse caso, é tudo menos uma repetição pedante e desnecessária, pois comunica a idéia de que a possibilidade de liberdade oferecida pela objetivação dos condicionantes societários do pensamento e da conduta vai além do resignado e impotente “reconhecimento da necessidade” (Spinoza/Hegel). Sendo as “necessidades” operantes no mundo social historicamente constituídas e reproduzidas através das ações e representações dos atores humanos, o reconhecimento daquelas pode dar ensejo ao seu questionamento, combate ou destruição. Ao amplificar a consciência dos determinismos que coagem a conduta social, sobretudo daqueles interiorizados nos corpos e mentes dos agentes, Bourdieu pretende oferecer armas eficientes de contra-atuação sobre essas estruturas e mecanismos coativos, contribuindo, assim, com a consecução de uma margem de liberdade em relação aos mesmos. Em uma singular combinação entre “pessimismo do intelecto” e “otimismo da vontade”, Bourdieu poderia chegar a dizer que sua busca incansável dos modos de constituição social da subjetividade - isto é, o “determinismo” de seu enfoque teórico-sociológico - é precisamente o que pode fazer de sua sociologia uma ferramenta libertária de resistência à dominação e de autotransformação individual. É nesse sentido que o projeto de sua sociologia reflexiva torna-se relevante não apenas para a política da Cidade justa, mas também, e inseparavelmente, para a ética da boa vida.

Notas

[1] Também seria útil traduzir a noção de “sens pratique” por “sentido prático”, apontando para a tentativa bourdieusiana de avançar uma compreensão não dualista da relação mente/corpo, refletida na própria duplicidade da noção de “sentido”, simultaneamente referente ao aparato sensorial por meio do qual nossos corpos experienciam sua imersão na realidade social (“sentido sensório”) e aos instrumentos simbólico-interpretativos que imbuem essa experiência de significados subjetivos (“sentido significante”).

[2] Graças à epígrafe do livro, “Isto não é uma autobiografia” (2005: 36), Bourdieu conseguiu produzir um caso raro de autobiografia não autorizada.

[3] Em A transformação da intimidade, o sociólogo britânico afirma: “Um recurso que utilizei extensamente talvez necessite aqui de algum comentário: a literatura de auto-ajuda. Desprezada por muitos, para mim ela oferece insights de outro modo impossíveis, e eu me coloco deliberadamente tão próximo do gênero quanto possível, no desenvolvimento dos meus próprios argumentos” (Giddens, 1993: 7). Naturalmente, é possível rejeitar como insatisfatórias algumas ou até a maioria das obras de um gênero de reflexão e discurso sem que se precise estender esse juízo ao gênero em si. Pensada no sentido lato, como uma reflexão sobre a condição humana orientada para fornecer aos indivíduos ferramentas existenciais com as quais eles possam aplacar algumas das suas fontes de sofrimento e obter um pouco mais de felicidade, a literatura de “auto-ajuda” não nasceu com Lair Ribeiro, mas constitui um universo de discurso que engloba parte do que a filosofia ocidental produziu de melhor ao longo dos últimos vinte e tantos séculos. 


Bibliografia
ALEXANDER, Jeffrey. “O novo movimento teórico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.2, 1987.
BERGER, Peter. Perspectivas Sociológicas. Petrópolis, Vozes, 1972.
BOURDIEU, Pierre. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
______Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
______“Reply to some objections”. In: In other words. Stanford, Stanford University Press, 1990b.
______ “Scattered remarks”. In: European Journal of Social Theory, v.2, n.3, 1999.
______Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loic. An invitation to reflexive sociology. Chicago, Chicago University Press, 1992.
LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos. Porto Alegre, Artmed, 2004.
PETERS, Gabriel. “Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu”. Cadernos Sociofilo, 2011. Disponível em: http://sociofilo.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2011/03/Habitus-reflexividade-e-neo-objetivismo-Peters.pdf
VANDENBERGHE, Frédéric. A philosophical history of German sociology. London, Routledge, 2009.

19 comentários:

Jampa disse...

Acho que sou uma pessoa suspeita para comentar esse tipo de texto. Tenho uma relação com a obra de Bourdieu que é de assimilação e admiração. Por isso quando leio textos de veio mais teórico sobre ele, tendo a gostar sem aceitar os pressupostos da análise. O que termina sendo um defeito meu.
Achei o artigo muito bem escrito, situando bem o arcabouço teórico-filosófico de Bourdieu.
Algo, porém, sempre me inquieta em leituras como essa: o lugar do habitus propriamente sociológico que a própria teoria da prática induz a questionar, para só depois reivindicar o seu uso de caráter emancipatório. Aceitar a reflexividade sociológica como elemento emancipatório nos termos de Bourdieu significa, eu diria que sempre, numa postura de recusa em analisá-lo como teórico do social em sentido corrente. É preciso vê-lo necessariamente como sociólogo que produziu uma teoria social. As implicações dessa pequena mudança são enormes! Claro que uma visão filosófica bem feita da obra dele ajuda sempre a gente a entender melhor suas "acrobacias estilísticas". Mas o desenvolvimento conceitual de sua teoria social ganhou forma e consistência "dentro de um quadro prático do fazer sociológico". De uma ruptura de habitus, de modus operandi sociológico, consolidada institucionalmente com o tipo de trabalho produzido na revista Actes de la recherce... Revista que tinha como projeto ser uma espécie de crítica construtivista do obscurantismo dos trabalhos "perfeitinhos" que não mostram os caminhos percorridos (técnicas, erros, acertos, métodos, construção de objetos etc.) na realização dos trabalhos acadêmicos.
Se fizermos a pergunta, ainda que teórica, do que que é sociologia para Pierre Bourdieu(para a partir daí entender o seu papel social), não ficariamos surpresos se na resposta encontrassemos algo semelhante a uma eterna atualização crítica do habitus sociológico.

Tâmara disse...

Eu fico sempre feliz quando leio textos bem escritos sobre Bourdieu. Mas não conhecia o "bourdivino"...O perigo é que adversa'rios transformem em "bovino", querendo marcar o que eles consideram irremedia'vel na sociologia bourdieusiana, ou seja, determinismo sociolo'gico.

Não que eu concorde com eles mas, bom..., confesso que o conceito de habitus muitas vezes deixa-me cabreira: reconheço a motivação de Bourdieu no sentido de recuperar a atividade do sujeito no mundo social, mas acho que sua maneira de trabalhar empiricamente os habitus põe em cheque sua pro'pria motivação. E é por isso que adorei você ter citado Berger: sempre achei que A Construção Social da Realidade (Berger/Luckman) tinha as mesmas preocupações da sociologia reflexiva de Bourdieu, mas que seu conceito de realidade social subjetiva é mais convincente para com a atividade do sujeito do que o de habitus. Talvez porque Berger e Luckman têm mais afinidades com o interacionismo simbo'lico, enquanto Bourdieu talvez tenha Durkheim como espectro. Seja como for, vou recomendar seu texto para meus alunos. Abraço

Cynthia disse...

Tâmara, pois eu estou em dúvida se gostei mais do "bourdivino" ou da "autobiografia não autorizada"!

Jampa, não entendi isso que vc chama de "pequena mudança". O que significa uma "recusa em analisá-lo como teórico do social em sentido corrente"? Em que sentido qualquer teórico pode ser analisado sem referência à teoria social que produziu?

Tâmara disse...

Cynthia,
Veja bem: eu não disse que gostei do "bourdivino" mas que não conhecia e que até temia uma reapropriação infeliz pelos adversa'rios. E quando digo "adversa'rios", não quero dizer exatamente que me sinto ou ja' me senti bourdieusiana algum dia. Costumo dizer a nosso colega Péricles que eu tenho muita tristeza quando sinto o mundo parecido com a teoria social de Bourdieu. Mas ha' uma caracteri'stica no texto de Gabriel que me remeteu aos meus tempos de mestrado em João Pessoa: minha dissertação era sobre Durkheim e meu texto de qualificação era cheio de expressões muito pessoais, expressão involunta'ria da paixão que o velho Durka terminou por me inspirar; ele que era a besta-fera do positivismo durante minha graduação...Pois um dos membros da banca de qualificação foi curto e grosso: "muitos chatos esses seus termos de intimidade com Durkheim". Acho que senti uma identificação imediata com Gabriel por conta desse episo'dio. Quanto à "autobiografia não autorizada", realmente não entendi mas deixo que o autor se explique. Abraço

Cynthia disse...

Imagino que o termo é invenção do próprio Gabriel, Tâmara - sinal de sua ironia fina, presente também na ideia de uma autoanálise não autobiográfica. Perfeitos para um domingo modorrento.

Bjs

Gabriel Peters disse...

Jampa, Tâmara e Cynthia,

Antes de tudo, obrigado pelos elogios. As considerações críticas também são, é claro, bastante relevantes.
Jampa: embora eu creia ter capturado um veio dos escritos do Bourdieu, também é certo que meu texto consiste em uma apropriação pessoal da obra do sujeito, uma apropriação na qual projetei certas esperanças minhas quanto ao papel “existencial” da sociologia, em particular associando-a a uma tradição da filosofia como arte de viver (e.g., Pierre Hadot, inspiração do último Foucault e auto-ajuda de altíssimo nível).
Tâmara: gosto muito não apenas de “A construção da realidade social”, mas também de “Perspectivas Sociológicas”, livro despretensiosíssimo que tem momentos de extraordinária profundidade (por exemplo, o diálogo com Sartre e Heidegger no capítulo 6: “A sociedade como drama”). De fato, uma questão que não abordei em detalhe em função da preocupação com espaço é precisamente a ideia de que a própria proposta da sociologia como instrumento de reflexividade para o ator leigo só não se torna autoderrotista caso o último não seja visto como co-extensivo ao seu habitus, mas como alguém capaz de acessar aspectos deste por meio de deliberações reflexivas ou “conversações internas”.
Quanto ao “bourdivino” e à autobiografia não autorizada, são referências irônicas cuja função é precisamente a de desdivinizar o grande mestre. É claro que tenho uma paixão enorme pela obra do cara e não acho que isso exclua uma atitude crítica. A bem da verdade, diante da polarização entre bourdiofobia e bourdiolatria, meu ideal é o de uma bourdiologia ao mesmo tempo crítica e respeitosa.
Cynthia, fiquei feliz em saber que contribuí para um domingo menos modorrento. E, falando em bourdivinidade, encontrei recentemente um hino para a igreja bourdivina numa musiquinha clássica de freiras: http://www.youtube.com/watch?v=UHhyyRByuJ0
Ou será que eu sou o único Dominique que ouve “Bourdieu” quando elas falam no “Bon Dieu”? Hahaha. Grande abraço

Cynthia disse...

Mon Dieu, o hino de Bourdieu!

Gabriel Peters disse...

Uma boa alma acaba de me apontar um erro que comprova, uma vez mais, os malefícios da escrita apressada: é claro que quis dizer "A construção social da realidade" (dos nossos queridos Berger e Luckmann) e não "A construção da realidade social" (um livro, na verdade, do filósofo analiticíssimo John Searle).
De resto, sabia que vc iria adorar o hino, Cynthia!

Jampa disse...

Peters,

não quis de maneira alguma desmerecer sua apropriação pessoal da obra de Bourdieu, muito pelo contrário. Achei, como dito, seu artigo muito bem feito naquilo que se propõe a fazer. E entendo que você se coloca muito bem como bourdiologista. Meu adendo, e o retomo para tentar responder a pergunta de Cynthia, diz respeito ao significado da crítica ao academicismo que em Bourdieu, parece-me, é uma defesa aguda das "lógicas práticas" como antídoto concreto ao que ele vai chamar de "postura escolástica" no Meditações Pascalinas. É isso que indica a diferença entre uma teoria social construída por uma sociologia empiricamente "avaliada" e uma teoria social sem fundamento em práticas sociológicas. Não é por acaso que o livro metodológico e de espistemologia de Bourdieu se chama Ofício de Sociólogo. A palavra metier (ofício) tem uma conotação toda especial na língua francesa(sugere uma relação prática com a atividade de pesquisa) e isso foi propositadamente utilizado no livro como estratégia para revalorizar práticas de pesquisa deixadas de lado pelas tradições teoricistas da sociologia francesa.
Nesse sentido, eu diria que entendê-lo como sociólogo, aceitando sua crítica ao academicismo, é perceber que a construção de sua teoria dentro de um projeto teórico, obedeceu o primado pragmático de uma sociologia empírica na qual a teoria social foi tributária de infindáveis enquetes sociológicas utilizadas para corrigir, refinar, atualizar o arsenal teórico de sua obra. Eu diria também, por isso, que a pergunta não é bem "Em que sentido qualquer teórico pode ser analisado sem referência à teoria social que produziu?" mas como teorizar sobre uma teoria que resiste em seu propósito crítico ao ideal de teorização de uma sociologia não empiricamente fundada? Na minha modesta opinião esse é um dos maiores legados críticos deixados por Bourdieu à sociologia. É isso na minha opinião o que ele nos ensina desde o A reprodução, passando pelo Hommo Academicus e chegando no impressionante La noblesse d'Etat (ainda não traduzido em português, não que eu saiba). Mas não sou bourdiologo. Digo isso tudo como alguém que é simpático a obra e usa de suas referências para fazer seus próprios trabalhos de pesquisa.

Cynthia disse...

Jampa, não sei se entendi muito bem o que vc quer dizer ao colocar em questão a possibilidade de crítica (ou teorização, como queira) "de uma teoria que resiste a uma sociologia não empiricamente fundada". Parece-me que Boudieu, em particular, justamente por ser adepto de uma teoria crítica - no sentido específico de que reflete sobre suas próprias práticas - só pode fazer isso a partir de critérios supraempíricos. O que, aliás, ele faz magistralmente em Ofício de Sociólogo.

Outra interpretação possível de sua afirmação seria a de que só se poderia analisar tais práticas (inclusive teóricas) como elementos empíricos, mas isso constituiria uma metodologia da pior espécie: daquelas que consideram os dados como simples dados.

Por fim, embora nada impeça uma crítica empírica de suas teorias, reduzir a crítica a isto seria negar um dos aspectos mais centrais de sua obra: seu "construtivismo" que, aliás, se baseia num conhecimento filosófico monumental.

Mas se o que vc quer dizer é que sua obra metodológica não pode ser analisada sem referência à sua obra substantiva (o que, obviamente, implica algum grau de conhecimento da realidade a que a teoria se refere), eu continuo achando que isso se aplica a qualquer teórico.

Abçs

Jampa disse...

Cynthia,é sempre bom debater com você. Penso que minha afirmativa deve ter um pouco de cada interpretação por você inventariada. Julgo, porém, que a última hipótese é a que mais perto chega do que traduziria a minha birra. A obra metodológica não pode ser analisada sem referência à obra substantiva. E acrescentaria, sem ironia, que isso se aplica a qualquer teórico que tenha uma obra substantiva. Considerando que a ideia de substância seria algo próximo da própria relação entre a teoria entendida de maneira larga (i.e relação formalmente coerente entre as palavras-conceito) e o mundo tido como referente (que oferece os "dados", o suporte ou substrato empírico aos quais as palavras-conceito se referem). Em Bourdieu a sociologia deve levar em conta essa relação como parte constituite do processo da produção do conhecimento, isso ele pega de Bachellard. Nem todos os teóricos da sociologia construíram suas teorias sociais a partir de um longo caminho de pesquisa. Veja, não estou dizendo que o caminho trilhado por Bourdieu é o único válido. Nem mesmo que é o mais correto. Estou apenas constatando que se quisermos levar em conta as consequências de sua crítica, crítica essa que o coloca em uma posição específica em relação a outras formas de conceber o raciocínio sociológico, é preciso avaliá-lo como sociólogo e não como teórico. Porque o que importa no que eu digo é que o foco do construtivismo que era o dele - você bem lembra que é elemento da obra embasado numa cultura filosófica monumental- não teria sido tão crítico ao academicismo (entendido como logicismo, mas também como falta de reflexividade histórica dos pressupostos do pensamento)se não fosse também uma defesa inconteste das práticas de pesquisa mais banais e banalizadas das ciências sociais.
Nesse sentido, acharia não muito válido comparar Bourdieu e Boudon, por exemplo, se a lógica que mune minha vontade de comparar duas obras for a de contrapor as "lógicas internas" que motivaram o processo produtivo de cada um deles. O único trabalho de veio empírico (veja, não digo trabalho sobre a empiria) que conheço de Boudon é aquele sobre a inflação dos títulos escolares. Muito bom por sinal. Pondero: acho que é injusto avaliar Boudon dentro da lógica mais apropriada para reter o valor característico da obra de Bourdieu. O inverso é também verdadeiro. Bourdieu nunca chegou a afirmar que o estudo do habitus conceberia uma nova "lógica". Mas as "razões práticas" guiam sim na avaliação que ele faz de seu próprio trabalho. E nela (na avaliação) aparece uma hierarquia a qual no topo da pirâmide dos trabalhos científicos estão aqueles os quais a teoria aparece de forma diluída de tal forma no corpo de uma análise empírica que nem a reconhecemos enquanto tal(a teoria). É claro, podemos recusar a crítica, não aceitá-la como válida e considerar que a relação que ele estabelece entre entre empiria e teoria não cria um vínculo espistêmico no qual o conhecimento sociológico seria o momento máximo da explicação a respeito do funcionamento do mundo social. Meu argumento defende apenas que ao aceitar seus preceitos, deve-se encarar sem temor as consequências do terremoto tsunamesco que eles causam na hierarquia acadêmica antes estabelecida por outros critérios valorativos. Sem querer entrar nos detalhes da formação do moço, mas é nítida a influência de Koyré (em sua história dos erros científicos de Galileu, por exemplo) e Bachellard (Formação do espírito científico, obra que Bourdieu julgava de valor inestimável). Bem, desculpem-me se escrevi demais para um comentário de blog. Mas o assunto é apaixonante.

Alyson Freire disse...

Gabriel Peters,

Muito bom seu artigo. De fato, o potencial emancipatório e de autotransformação individual da sociologia reflexiva e da socio-análise aventados por Bourdieu ao longo de sua obra são uma das temáticas menos usais e menos desenvolvidas quanto ao pensamento do sociólogo francês.

Gostaria apenas de destacar alguns pontos, se me permite, já que sua proposta em aproximar Bourdieu com às tradições filosóficas das "artes de viver" é bastante instigante. Penso, à primeira vista, que temos aí fontes de inspiração distintas e, em alguma medida, até mesmo antagônicos.

Ao apostar na Sociologia como instrumento reflexivo potencialmente emancipatório e autotransformador, em função da qual podemos reconhecer quais forças e estruturas sociais agem sobre nós, Bourdieu finca suas raízes na herança do Esclarecimento ou Iluminismo. Isto é, sua aposta para autodeterminação individual, para maioridade, por assim dizer, é uma aposta na Razão, ou melhor, nas consequencias pragmáticas do conhecimento metódico fundamentado em bases éticas emancipatórias e desmistificadoras.

Ao contrário de Bourdieu, alguns do seus compatriotas franceses, ligados as "artes de viver e éticas antigas" e/ou ao vitalismo de raiz nietzcheneana, como Foucault, Deleuze, Onfray, apostam em éticas fragmentárias cuja mediação da relação consigo e da relação com o exterior ocorrem antes no âmbito do aprendizado moral de certos principios,referências teóricas, valores e técnicas colhidas no campo da estética, em códigos morais aristocráticos, manuais do bem viver etc.. Nessa perspectiva, o trabalho sobre si não consiste tanto na reflexividade obtida mediante o uso de instrumentos analiticos e objetivadores dos mecanismos que modelam nossa personalidade e condutas. Mas, sobretudo, numa estilização das condutas produzida a partir do exercício e experimentação de técnicas ascéticas, meditativas com vista a formação reflexiva de um ethos singular.

Já me alonguei, por demais. Gostaria apenas de saber como você pensa em estabelecer essa aproximação sem atenuar os pontos de partida aparentemente antagônicos dos quais partem Bourdieu e os autores defensores da "vida filosófica" quanto à questão da autotransformação individual.

Cynthia disse...

Ótima questão, Alyson. Eu suspeito que a única saída seria considerar a reflexividade (moderna) como uma espécie de técnica de si, mas dado que Bourdieu não esclarece muito bem a relação entre habitus e subjetividade, a coisa fica meio complicada. Também gostaria de ver o que Gabriel pensa a respeito.

Jampa, eu acho que a crítica teórica se aplica da mesma forma a qualquer teórico. Não dá para considerar que um teórico deve ser analisado de uma forma e outro, de outra. No fundo, toda boa teoria sociológica é teoria social, e contém elementos supraempíricos que fundamentam a relação com a empiria. A questão é que esses elementos frequentemente se encontram de forma implícita nos trabalhos empíricos, de forma que a reflexão teórica (no sentido lato) é sempre necessária. Nisso eu acho que até Boudon e Bourdieu concordam.

Gabriel Peters disse...

Caro Alyson,
Ótimas considerações. Antes de tudo, vou retomar um tema que o Jampa expôs muito bem: o “racionalismo aplicado” que Bourdieu herdou de Bachelard está fundado na proposta de uma fertilização recíproca entre reflexão teórica e pesquisa empírica. Em função disso, Bourdieu advoga uma leitura “disposicional” do seu quadro teórico-metodológico de análise da vida social, pensado como um programa intelectual voltado à inculcação gradual de um habitus sociocientífico que guie o pesquisador de modo heuristicamente fecundo nas suas investigações de cenários sociais concretos. Tal como o imperativo da auto-objetivação reflexiva pode ser transposto do plano da metodologia sociológica para aquele de uma proposta ético-política de autoconsciência e autoconstrução, a leitura disposicional da praxiologia de Bourdieu pode ser frouxamente conectada a uma tradição que pensa o conhecimento (do) humano de modo entrelaçado à conduta da vida. As referências a Freud e o próprio vocabulário kantiano da autodeterminação racional demonstram que o projeto de uma anamnese sociológica emancipatória (obviamente despido de qualquer utopismo salvacionista em Bourdieu) finca seus pés numa tradição racionalista. Como Comte e Durkheim, Monsieur Pierre faz parte de uma linhagem de sociólogos que sempre pensaram o avanço de uma perspectiva genuinamente científica sobre o mundo social (e, no caso que nos interessa, sobre o ator individual) como o melhor recurso disponível para intervenções práticas motivadas por ideais éticos ou programas políticos.
Na medida em que o cultivo reflexivo de um novo habitus não se reduz à dimensão cognitiva da subjetividade, mas engaja a personalidade inteira, essa tarefa pode ser concebida como um “exercício espiritual” tal como outro Pierre, o Hadot, entende esta noção. Mencionei que Hadot havia sido a inspiração para o trabalho do terceiro Foucault apenas porque julguei didático vincular uma figura não tão conhecida a um superstar das humanidades (quem sabe até da humanidade). Embora Hadot trabalhe com uma multiplicidade de escolas helenísticas, portanto obvioululantemente pré-iluministas, creio ser justo dizer que ele é certamente bem mais racionalista do que Foucault – tendo também, aliás, sérias reservas quanto à interpretação que este último faz da ética estóica. A relação de Foucault com o racionalismo moderno é um tema sujeito a controvérsias – como indica a polêmica oitentista entre os amigos José Guilherme Merquior, que denunciava seu irracionalismo, e Sérgio Paulo Rouanet, que pensava seu trabalho como uma crítica racional da racionalidade e, portanto, uma contribuição a um Iluminismo autocrítico e esclarecido (algum espertinho já deve ter falado em Esclarecimento esclarecido). Existem, como você bem coloca, outras propostas da filosofia como prática de recriação de si que caminham em um sentido mais estético, relativista e pós-modernizante – um sentido, de fato, bastante estranho aos compromissos intelectuais de Bourdieu, que certamente não tinha lá muita simpatia por Gilles Deleuze ou, em um registro diferente, Richard Rorty. Eu também não havia pensado nessas figuras quando falei do vínculo com a tradição da “vida filosófica”, mas em Hadot e seus heróis: Sêneca, Epíteto, Marco Aurélio e tutti quanti. Mas, mesmo nesse caso, a associação é deliberada e orgulhosamente genérica.

Gabriel Peters disse...

De todo modo, como um argumento mais geral, acredito que o mero fato de duas ou mais perspectivas advirem de pontos de partida distintos e mesmo antagônicos não consiste, de modo algum, em um obstáculo insuperável a uma apropriação parcial das mesmas e à sua combinação criativa em quadro de referência novo. Com efeito, se há uma lição deixada pelo modus operandi de produção intelectual dos grandes artistas da síntese que estrelaram o “novo movimento teórico” (Alexander) dos anos 70 e 80, como Giddens, Habermas e o próprio Bourdieu, é a de que a diferença mesma entre os pontos de vista teóricos pode tornar heuristicamente poderosa a sua articulação em um quadro sintético qualitativamente distinto de qualquer dos seus ingredientes considerados isoladamente. Não se trata, é claro, de uma justaposição inconsistente, mas de um ecletismo metodologicamente disciplinado (se Foucault me permite essa palavra [rs]).
Agradeço de novo a tod@s vocês pelos excelentes comentários. Abração

Alyson Freire disse...

Cynthia,

Tratar a reflexividade moderna como uma técnica de si me parece ser uma via possivel e interessante. Interessante de um ponto de vista teórico mas sobretudo pragmático também se pensarmos a institucionalização dessa técnica em espaços pedagógicos de aprendizado. Acho que casa com a visão que Lahire tem da contribuição da introdução da Sociologia no ensino fundamental frânces; desenvolvimento de competências e disposições de pesquisa, leitura e explicação da realidade mediante a incorporação e experimentação de alguns técnicas e ferramentas intelectuais oriundos das Ciências Sociais.

Gabriel Peters,

Seguramente você tem razão quando afirma que a existência de pontos de partidas distintos ou antagônicos não significa que essas perspectivas não possam ser trabalhadas em um novo quadro de referência. Embora, a sintese realizada pelo "Novo Movimento Teórico" na Sociologia trabalhou em torno de oposições de uma mesma natureza, isto é, heurísticas, epistemológicas. Obviamente, essas oposições no campo do conhecimento redundam também, indiretamente, em oposições políticas, éticas etc..

No caso, da tradição da vida filosófica e, chamemos como Cynthia propôs, tradição da Reflexividade Moderna mais do que oposições teóricas e epistemológicas há distinções e oposições de outra natureza; ética, moral, o sentido do conhecimento para a vida e para a constituição/autoexploração do sujeito, entre outras. Enfim, me parece um empreendimento muito interessante de ser levado a cabo, pois sem dúvida está em jogo uma articulação que deve levar em conta boa parte da história do pensamento ocidental e questões que ultrapassam o âmbito do discurso, do lógos. No mais, agradeço a atenção e tem sido muito prazeroso e instrutivo discutir por aqui. Abraços,

Alyson Freire disse...

NOTA:

Não sei se vocês souberam que no último dia 21, Harold Garfinkel (1917-2011), figura das mais emblemáticas e controversas da Sociologia e da Teoria Sociológica, faleceu. Como se trata de um blog de teoria social, então achei que era apropriado divulgar por aqui.

Jampa disse...

Não sei a razão de eu ter grafado erradamente por duas vezes Bachelard duplicando o "l". Talvez tenha sido uma maneira inconsciente minha de reforçar já no nome dele o "racionalismo aplicado" que dobra (duplifica) o racionalismo cartesiano clássico, fazendo-o assimilar aspectos importantes do empirismo. Gostei muito, Gabriel Peters, dessa imagem que a ideia de "fertilização recíproca" produz. Como você diz melhor do que eu diria, a sociologia nada mais é para Bourdieu do que o incorporar de um habitus sociocientífico, um aparato disposicional que guia o pesquisador de modo heuristicamente fecundo "nas suas investigações de cenários sociais concretos". Não poderia em meu jeito de dizer as coisas fazer uma melhor descrição. Muito bom.
Penso que essa definição da sociologia ( necessariamente sociológica e histórica)continua a conduzir minha insistência, ela é o motivo de minha discordância com a afirmação de Cynthia: "eu acho que a crítica teórica se aplica da mesma forma a qualquer teórico. Não dá para considerar que um teórico deve ser analisado de uma forma e outro, de outra." Acho que existe um problema de enquadramento entre o ontológico(sociedade/teoria social) e o epistemológico (sociologia/teoria sociológica) que reforça nossa discordância.Lembro que esse debate só faz sentido se for o caso de aderir o propósito crítico contido na sociologia disposicional de Bourdieu.
Lembro também, para tentar me fazer claro, de um debate que tivemos sobre os argumentos de Lahire a respeito da introdução da sociologia no ensino médio. Eu defendia que para que aquela proposta fizesse sentido em nosso contexto, seria preciso uma reformulação na maneira de conceber a separação entre processo de assimilação/acumulação da cultura sociológica e o processo correspondente (mas de forma nenhuma idêntico) de produção de conhecimento sociológico. Isso nos termos de qualquer terminologia disposicional significa que o elemento definidor da sociologia é a incorporação não apenas de um quardo conceitual adquirido através de técnicas de leitura, mas de treinamento das práticas de pesquisas (sempre passíveis de reelaboração criativa)tradicionalmente associadas às ciências sociais. Mais uma vez, daí toda a novidade à epoca de uma revista como Actes de la Recherches. Os atos dizem mais do que os resultados da pesquisa. Dizer através de certas "demarches" é mais importante do que dizer o mesmo não se servindo delas. Vale a pena "peder tempo" recolhendo dados, fazendo etnografia, analisando dados estatísticos, etc. Mais do que isso, deixar as marcas das dificuldades práticas encontradas no percurso da pesquisa concreta é talvez a única maneira palpável de aferir o valor específico do esforço científico realizado. São essas as mensagens de política academica, digamos assim, contidas na revista.Não preciso dizer que são essas "posturas" que referenciam "práticas intelectuais" que definem ou redefinem a sociologia nos termos bourdieusianos.
Ora, se aceito esses preceitos, como avaliar da mesma maneira uma obra que estimulou uma infinidade de trabalhos empíricos(claro, sempre teoricamente fundamentados) e uma que teve sua fecundidade associada a trabalhos teóricos e/ou espistemológicos no espectro de produção associado à sociologia? Falo do tipo de habitus que engendra tipos de trabalhos específicos em sociologia.Dificilmente entendemos com claraza a falta de paciência que Bourdieu declara ter para alguém do porte de Habermas (ver Esquisse d'autoanalise)se não temos em mente essas coisas.

Anônimo disse...

menino, tava estudando aqui pra prova, o tal do sociólogo é muito chique mesmo, espero que um dia eu entenda os termos e fale com tanta naturalidade.