quarta-feira, 24 de abril de 2013

Um meditabundo risonho sobre cousas metafísicas: nota sobre humorismo, pessimismo e a fortuna crítica de Machado de Assis



Por Gabriel Peters  (IESP-UERJ)


“Demócrito e Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a condição humana é vã e ridícula, apresentava-se sempre em público a rir e motejar. Heráclito, tomado de piedade por essa mesma humanidade, andava perfeitamente triste e de lágrimas nos olhos” (Montaigne, 1987: 333). 


Eis o contraponto entre leveza cômica e seriedade melancólica diante de um mesmo diagnóstico quanto à absurda condição de cada ser humano, jogado em um universo indiferente ao seu destino e que terminará por exterminá-lo. Para aplicar à relação do humano com sua situação cósmica o par de categorias sociológicas celebrizado por Norbert Elias, podemos dizer que a diferença entre as sensibilidades cômica e trágica está fundada sobre posturas existenciais de “alienação” e “envolvimento”. Assim como pode se descobrir “lançado” (Heidegger), sem qualquer chance de escolha prévia, em um mundo que irá matá-lo, sem que seu pavor a respeito disso possa fazer qualquer coisa para evitar esse destino último, o ser humano tem a singular capacidade de se desengajar, ao menos parcialmente, do palco dessa tragédia e do papel que ele próprio desempenha nela para poder rir de sua desimportância. Sob esse ângulo, comédia e tragédia aparecem não tanto como categorias distintas de eventos, mas como pontos de vista ou atitudes espirituais distintas em face de uma mesma realidade. Como viu Henri Bergson, um sujeito que desse “à simpatia a mais irrestrita expressão” sentiria “uma coloração grave” incidir “sobre todas as coisas”, ao passo que a substituição de uma atitude empática pela postura de um espectador indiferente ao destino dos personagens observados, como que submetido a “uma anestesia momentânea do coração”, fará com que ele veja, de repente, “muitos dramas transformarem-se em comédia” (Bergson, 2007: 4).

A forma mais comum da contraposição entre “envolvimento trágico” e “alienação cômica” não é autodirigida, mas ditada pela simples diferença de condições entre atores interessados apenas no seu próprio umbigo. Como disse Mel Brooks: “Tragédia é quando EU corto meu dedo. Comédia é quando VOCÊ cai num esgoto a céu aberto e morre”. Nessas circunstâncias, a insensibilidade do coração anestesiado pode até mesmo descambar para o regozijo aberto diante das desventuras e aflições de outros, designado pelo que os alemães chamam de Schadenfreude.

O riso sádico que expressa prazer diante da dor alheia não esgota, no entanto, o conjunto das instrumentalizações possíveis do sofrimento pela comicidade. Com efeito, o foco do presente texto recai sobre perspectivas que mobilizam um diagnóstico existencial da absurdidade da situação humana no universo em favor de um humor autodirigido e dotado de um papel emocionalmente anestésico. O último advérbio indica que a auto-anestesia aqui referida não consistiria em um sacrifício da lucidez intelectual, mas, ao contrário, em uma intensificação dessa última pela via da “alienação” existencial cômica, com vistas à neutralização dos afetos de horror e tristeza que adviriam de uma visão completamente “envolvida” naquela condição absurda.

O procedimento de tomar a si próprio como objeto de comicidade, de assumir que o homo ridens é, ele próprio, homo risibilis, poderia assim adquirir a dignidade de um “exercício espiritual” análogo ao que os estoicos (admitidamente, uma turma bastante séria) chamavam a “visão do alto”. Tal exercício convida o indivíduo perturbado por aflições, tais como arrependimentos quanto ao passado ou ansiedade quanto ao futuro, a sair imaginativamente de si próprio, lançando-se ao alto - bem no meio da via láctea, segundo o sonho de Cipião narrado por Cícero em Da República - para, de lá, observar a pequenez dos assuntos humanos. Desde aquele ponto de vista, as intrigas, guerras, rituais, disputas materiais, jogos de prestígio e todas as demais atividades nas quais os seres humanos despendem tanto tempo e energia adquirem, subitamente, um sabor ridículo. Para alguém cujas aflições derivam da atribuição de uma magna importância a tais atividades, o exercício é emocionalmente libertador, revelando o que até então pareciam dramas da maior significação como cosmicamente insignificantes e, portanto, indignos de uma dor de cabeça.

Freud explica

Vários dos maiores pensadores da condição humana mostraram-se aptos a conceber e a vivenciar a tragicidade e a comicidade do bípede implume simultaneamente, explorando a delicada tensão entre as duas atitudes sem absolutizar qualquer delas em detrimento da outra (quanto à caracterização “bípede implume”, aliás, o cínico Diógenes já havia sublinhado há tempos que ela vale para o ser humano assim como para um frango depenado). Freud, por exemplo, reservava a noção de humor, em contraponto aos seus conceitos particulares de “chiste” e do “cômico”, para designar precisamente esta espécie de ironia alquímico-afetiva em que circunstâncias que normalmente evocariam afetos negativos como temor, tristeza ou ressentimento são vistas sob uma perspectiva que as torna risíveis:
Alguns minutos antes da execução do prisioneiro condenado, o carrasco oferece a ele um último cigarro, ao que o prisioneiro responde:

- Não, obrigado, estou tentando parar.
O pai da psicanálise sublinhou que o tipo de libertação adquirida através do humor possuía um halo de “grandeza e elevação” ausente nas satisfações agressivas ou eróticas presentes nos “chistes” e que derivaria da...
...afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer (Freud, 1974: 190).

Como um recurso psíquico que os indivíduos mobilizam para lidar com condições existenciais de tensão e desconforto sem serem assoberbados por esses sentimentos, o humor poderia ser elencado entre os mecanismos de defesa da psique, “a extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que começa com a neurose e culmina com a loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase” (op.cit: 191). Freud atribui ao humor, entretanto, a dignidade especial de neutralizar afetos angustiantes e perturbadores, bem como afirmar o princípio do prazer contra as frustrações exigidas pela realidade, de uma forma que não ultrapassa “os limites da saúde mental” (idem).

O médico vienense se debruçou sobre uma modalidade de comicidade praticada por vários de seus predecessores, de Demócrito a Machado de Assis (falo dele em um minuto). No entanto, Freud estava bem aparelhado para trazer algo de novo à análise desse fenômeno, a saber, a analogia entre a postura do humorista que ri da angústia insensata e a posição de uma figura paterna que “sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes” a uma criança. Tal como os pais consolam risonhamente a criança em seu berreiro desesperado diante de aflições que consideram minúsculas (e.g. um pirulito não comprado), o humor é lido por Freud como um fenômeno em que o superego, afinal a instância psíquica que interiorizou o papel das figuras paternas, intervém para confortar um ego ansioso e aflito afirmando que o mundo que este julga ser tão perigoso “não passa de um jogo de crianças” (Freud, 1974: 194). Para a turma interessada em psicanalices (lacanagens etc.), o textículo de Freud sobre o humor, de 1928 (escrito, portanto, mais de vinte anos após seu trabalho sobre Os chistes e sua relação com o inconsciente [1905]), possui um interesse mais geral por nuançar a caracterização do superego, o qual aparecia, na maior parte dos seus escritos, como um senhor duro e punitivo a vigiar implacavelmente os movimentos do ego.

Galhofa e melancolia

Em poucos documentos de cultura a junção tensa entre humorismo e pessimismo foi tão persistentemente patenteada quanto na fase pós-romântica do nosso Machado de Assis, inaugurada com a famosíssima mistura entre “a pena da galhofa” e “a tinta da melancolia” nas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1971 [1880]). Em magníficas páginas que dedicou à “prosa impressionista” de Machado de Assis na sua Breve História da Literatura Brasileira (1977: 150), José Guilherme Merquior mostrou como a intensidade desse ambíguo entrelaçamento entre a ironia humorística e o pessimismo metafísico foi obscurecida nas interpretações do opus machadianum avançadas tanto por seus coetâneos (e.g. José Veríssimo) quanto pela geração posterior de leitores banhados no entusiasmo modernista. Os primeiros teriam respeitosamente trivializado a aspereza e o poder corrosivo do pessimismo cosmológico de Machado ao tomá-lo como uma espécie de ornamento intelectual de superfície, colocado a serviço do desiderato mais importante que era a elegância escrupulosa da sua escrita. A correção dessa perspectiva ficaria a cargo de críticos literários da geração seguinte, embebidos do “ânimo eufórico, futurista, do modernismo de combate” (Merquior, 1977: 186) que contrastava desconfortavelmente com a ironia amarga legada pelo consagrado prosador – Mário de Andrade não disfarçava sua antipatia, e Manuel Bandeira chamou-o de “monstro”. Foi precisamente essa estranheza ou mesmo choque entre os ânimos literários de um e dos outros que proveio a intérpretes como Augusto Meyer (1958), por exemplo, a sensibilidade necessária para intuir a autenticidade, a profundidade e o alcance do sentimento trágico da vida na obra de Machado.

Se tal redescoberta representou, por um lado, um ganho interpretativo frente às leituras anteriores que ignoravam o fato de que suas “rabugens de pessimismo” eram algo mais do que um exercício desapegado de estilo, esses críticos, por seu turno, teriam forçado demais a mão ao fazer do humor machadiano uma fachada epidérmica que mal escondia, na expressão de Afrânio Coutinho, um “ódio radical da vida e dos homens” (Coutinho, 1959: 95), ódio cujas raízes poderiam ser supostamente explicadas pelo recurso aos traços mais vultosos da sua biografia, como suas “moléstias” físicas e psicológicas (e.g. epilepsia) ou um alegado “ressentimento” remontável às origens sociais humildes do neto de escravos.

Ora, nem tanto à comédia, nem tanto à tragédia. Ou, melhor ainda, um generoso bocado a ambas. Segundo Merquior (1977: 186), além de reivindicar a primazia de especulações psicobiográficas sobre o terreno empírico mais seguro da obra literária, aquele tipo de leitura dissolvia o balanço dialético entre humorismo e pessimismo na prosa machadiana ao menosprezar como seu uso livre da ironia cômica modulava a intuição existencial da tragédia, pintando-a sob o aspecto do grotesco. Em passagem com sabor tipicamente hegeliano, o crítico literário brasileiro assevera que a galhofa fantasista[i] de Machado não “nega”, mas conserva e “supera” o que o próprio escritor havia chamado, no prólogo à quarta edição do seu livro, de “um sentimento amargo e áspero” (Assis, 1971: 512) – orientação espiritual em que ele admitidamente destoava dos modelos inspiradores de sua prosa viajante e digressiva (Lawrence Sterne, Xavier de Maistre, Almeida Garret). Se o humorismo machadiano possui um efeito de contrabalanço em relação à sua visão trágica da vida, a caracterização desse equilíbrio em termos de uma “transcendência” (Aufhebung) hegeliana deixa entrever, ao mesmo tempo, que o “momento” pessimista de fato precede o recurso ao humor, o qual pode muito bem representar, aqui, um estratagema para a diluição ou neutralização do pathos grave da tragédia. Embora seja temerário projetar essas coisas (digo, “cousas”) na dinâmica psíquica do próprio Machado, postulando que ele defendeu-se do próprio pessimismo fazendo uso escudado da ironia, o fato é que esse próprio percurso está dramatizado na que é, talvez, a passagem mais filosófica de toda a sua obra: o delírio de Brás Cubas.

Um hipopótamo leva Brás à “origem dos séculos”, onde o narrador encontra o imenso vulto feminino da Natureza ou Pandora, cuja gigantesca face mostrava-se sepulcralmente indiferente. Lembrando ao pobre mortal que “a voluptuosidade do nada” o esperava inapelavelmente, e permanecendo impassível diante de sua súplica por mais alguns anos, ela o leva subsequentemente para o alto de uma montanha onde ele pode vislumbrar a trajetória do mundo e do humano:
“Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. (...) Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que se passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Ai vinha a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão” (1971: 522-523).

Finalmente:

...ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.

- Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, - talvez monótona – mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me (idem).

Primeiro, o berro angustiado; depois, um estalo risonho que anuncia uma mudança de gestalt, imbuída do sentimento de que, vista do alto qua espetáculo, toda aquela calamidade parece cômica. A passagem de protagonista envolvido a espectador indiferente do destino humano representa alegoricamente a transmutação filosófica do trágico em absurdo, uma espécie de forma-chave que engloba uma série de variações. Poder-se-ia mencionar, por exemplo, a passagem do metafísico ao prosaico, um tipo de humor em que Woody Allen se tornou especialista:

E se tudo for uma ilusão e nada existir? Nesse caso, não há dúvida de que paguei demais por aquele carpete novo.

Não apenas Deus não existe, como tente encontrar um encanador num fim de semana.

Fui reprovado no exame de Metafísica. O professor me acusou de estar olhando para a alma do rapaz sentado ao meu lado.

Espinafrando Afrânio

Voltemos a Machado – ou melhor, aos seus intérpretes, sem temores de cair no deplorável gênero de crítica literária da crítica literária. O título da presente seção tem uma razão de ser (além, é claro, da tentativa de impressionar Arnaldo Antunes): a transmutação machadiana do trágico em grotesco foi bem notada por Sérgio Buarque (1944) em um pequeno ensaio que fustigava a interpretação hiperpascaliana que Afrânio Coutinho (1959) oferecera da filosofia corporificada na obra do Bruxo do Cosme Velho. Malgrado reconhecesse en passant que a influência do agoniado pensador francês sobre Machado, de resto assinalada pelo próprio em uma famosa carta a Joaquim Nabuco, era certamente temperada por outras paixões de escriba, como o Eclesiastes, Montaigne e Schopenhauer, Coutinho forçou tanto a mão nos paralelismos com Pascal que mesmo as demais referências machadianas por ele citadas terminaram exageradamente amoldadas a essa influência-mestra.

Com efeito, um leitor que desconhecesse a obra de Machado de Assis, ao ler as considerações de Coutinho acerca de sua “formação filosófica” e “atitude espiritual” (1959: 59-96), dificilmente sairia dali com a impressão de que os textos do escritor carioca, sem deixarem de ser de densa problematização filosófica (psicológica, sociológica etc.), podem ser extraordinariamente divertidos – e sabemos nós o que Pascal pensava da diversão. Sobre o nexo Pascal-Machado de Assis, afirma Sérgio Buarque de Holanda:
Um estudo dos dois autores pode levar a descobrir sob semelhanças superficiais e epidérmicas a diferença profunda, vital, que na realidade os separa. Para por em relevo essa diferença seria o bastante, talvez, assinalar que Machado não era uma natureza religiosa (1944: 48).
Fazendo justiça a Afrânio Coutinho, devemos lembrar que o grande crítico literário escreveu um parágrafo em que reconheceu, de passagem, a radicalidade da distinção e colocou rapidamente em questionamento sua própria tese fundamental quanto à influência maciça de Pascal sobre Machado:
É o caso de se perguntar mesmo, se houve essa influência tão grande de Pascal sobre ele, por que teria permanecido insensível ao estupendo elan religioso que se desprende das Pensées...? (...) De feito, a inspiração cristã, a intenção apologética, o sentimento religioso das Pensées, não o tocaram, o que é realmente espantoso (1959: 93).
O espanto de Coutinho deixa transparecer indiretamente, além (talvez) das suas próprias inclinações espirituais, a dimensão excessiva a que ele levou a aproximação entre os dois autores. A quase-absolutização da influência de Pascal sobre a Weltanschauung machadiana tem seu paralelo na tese insistentemente martelada de que o escritor carioca teria um profundo “ódio à vida”, expressão que sacrifica precisamente o modo como o seu recurso ao humor irônico, de caráter radical e não simplesmente epidérmico, transformava intimamente as feições de seu pessimismo. Como diz o pai de Chico em seu comentário ao livro de Coutinho:
Em cinco páginas (162 a 167) aparecem seis vezes repetidas as palavras sinistras: ‘ódio à vida’. Ainda aqui há pelo menos uma simplificação excessiva e traidora, que o exame da obra de Machado não autoriza a endossar. No simples ódio há uma ausência de complexidade e de nuances, uma limpidez, que dificilmente poderia explicar qualquer reação de Machado diante da vida (1945: 49).
Se a atitude espiritual que salta das páginas do Machado pós-romântico não chega a estar embebida da mesma leveza e serenidade que dão sabor aos Ensaios de Montaigne, de quem Machado (como o próprio Pascal) era frequentador assíduo, Miguel Reale tem razão em dizer que ele “compartilhou do sorriso compreensivo e profundamente humano com que o analista dos Essais envolveu os homens e as coisas” (1982: 10) – à maneira das figuras paternas do superego que recorrem ao humor para mitigar as angústias infantis do ego. A leitora interessada em perseguir mais a fundo a investigação sobre as fontes filosóficas da literatura de Machado de Assis fará bem em ler o volume A filosofia na obra de Machado de Assis (1982), em que Reale oferece, além de uma primorosa introdução, uma antologia de passagens machadianas para os meditabundos sobre cousas metafísicas.

Conclusão

Esta breve visita à obra de Machado, guiada pelas mãos bem informadas de finos intérpretes literários brasileiros (é triste pensar que todos eles são menos lidos do que Harold Bloom), não teve a pretensão de oferecer qualquer coisa nova em termos da exegese de temas filosóficos no seu trabalho, mas simplesmente aproveitá-la como uma fonte riquíssima de ensinamentos sobre as atitudes cômica, trágica e tragicômica diante do absurdo da vida. Sua aproximação com o Demócrito descrito na epígrafe de Montaigne[ii] talvez sirva ao menos para colocar na pauta desse texto o valor do humor como terapia da alma para aqueles impregnados de perplexidade face à sua (nossa) condição. Se “filosofar é aprender a morrer”, como disse Platão[iii] no Fédon pela boca de Sócrates, pode-se concluir, deixando implícita a segunda premissa do argumento, que filosofar também envolve aprender a rir, sobretudo de si próprio.

Notas

[i] Com efeito, o conceito que Merquior julga mais adequado para classificar o gênero literário a que pertence Memórias Póstumas de Brás Cubas é o do “cômico-fantástico”, estilo de literatura previamente esposado por uma galeria ilustre de autores, situados em um arco que vai desde o satirista Luciano de Samosata no século II até Leopardi no século de novecentos, cuja influência decisiva sobre Machado foi recuperada por Otto Maria Carpeaux (1999:477-480). Além da combinação entre seriedade e gracejo, manifesta sobretudo no trato humorístico das questões mais graves da existência humana (o sentido da vida, a relação com a morte etc.), a literatura cômico-fantástica também apresenta pelo menos outros dois caracteres mais distintivos: a) a suspensão de qualquer neutralidade ou distância moral do narrador em relação aos personagens por ele retratados, suspensão que, em Machado, toma a forma sobretudo do desvelo das motivações mesquinhas que invariavelmente subjazem aos atos mais nobres ou, pelo menos, inocentes dos seres humanos; b) a oscilação livre entre o veraz e o onírico ou fantasmático, com a presença desse último se casando a uma predileção por experiências psicológicas aberrantes, como o famoso delírio de Brás Cubas (Merquior, 1977: 167).

[ii] A exiguidade do espaço impede qualquer esforço de fornecimento das mediações e contextualizações necessárias em termos de história das ideias. Embora o próprio Machado jamais tenha mencionado o filósofo risonho de Abdera, o escritor brasileiro provavelmente banhou-se de motivos do materialismo democrítico através de sua profunda intimidade literária com o enciclopedista francês Diderot, de quem Machado gostava que se enroscava (Gianetti, 2010: 93).

[iii] Platão, por um acaso, era um tantinho crítico em relação à filosofia de Demócrito, a julgar pelo relato histórico de que ele teria expressado o intuito de mandar queimar todas as obras do atomista que pudesse reunir, intenção da qual acabou sendo dissuadido por dois interlocutores que o convenceram da inutilidade do gesto incendiário (Brunschwig, 2001: 259; ver também o já citado Gianetti).


Referências

Bergson, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
Brunschwig, Jacques. Demócrito. In: Huisman, Denis (Org.). Dicionário de filósofos. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
Carpeaux, Otto Maria. Ensaios reunidos. Vol.1. Rio de Janeiro, Topbooks/UniverCidade, 1999.
Coutinho, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959.
Gianetti, Eduardo. A ilusão da alma: biografia de uma ideia fixa. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
Holanda, Sérgio Buarque de. Cobra de vidro. São Paulo, Martins, 1944.
Merquior, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
Meyer, Augusto. Machado de Assis: 1935-1958. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1958.
Montaigne, Michel Eyquem de. Ensaios. Vol.1. Brasília, UnB, 1987.
Reale, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis & Antologia filosófica de Machado de Assis. 1982.



sexta-feira, 19 de abril de 2013

Sujeitos extáticos em Gadamer e Glenn Gould: um exercício em interpretação (quase) selvagem. (Parte 3)



Por Cynthia Hamlin

O conceitos de êxtase e de jogo representam, na obra de Gadamer, uma tentativa de evitar não apenas a centralidade conferida ao sujeito na interpretação das obras de arte, mas a própria distinção sujeito-objeto como base para a compreensão. Embora seja possível estabelecer um paralelo entre o processo de alienação a que Gould se refere no concerto moderno e a concepção (moderna) de estética segundo a qual o objeto de arte é percebido como algo autônomo, separado de um contexto ético e político mais amplo - e a criação dos museus no século XIX aparece em Verdade e Método como exemplar dessa separação -,  talvez não seja de todo absurdo afirmar que essa é uma preocupação secundária para Gadamer. Sua preocupação principal é estabelecer a experiência da obra de arte como paradigmática da experiência hermenêutica, ou seja, de uma experiência que gera conhecimento, embora distinto daquele gerado pelo método (apoiado na distinção sujeito-objeto). É, portanto, neste sentido que sua crítica ao subjetivismo deve ser compreendida. Em que medida ela constitui uma ruptura absoluta com a metafísica do sujeito é uma questão contenciosa, e o próprio Gadamer parece reconhecer isso quando afirma, em um debate com Derrida em 1981, que
desde meu confronto com a continuação francesa do pensamento Heideggeriano [Derrida] dei-me conta de que meus esforços para ‘traduzir’ Heidegger testemunham meus próprios limites e, especialmente, indicam o quão enraizado estou na tradição romântica das humanidades e em sua herança humanística. Mas essa mesma tradição do historicismo que me sustentou e me levou adiante é o que eu tentei criticar. (Gadamer, 2007: 161).
A base desta crítica está justamente na estética de Kant e dos românticos que, ao focar nas experiências emocionais subjetivas e imediatas que uma obra de arte pode suscitar, exclui os fenômenos estéticos da esfera do conhecimento (e portanto, da razão), ignorando o seu objeto ou, nos termos de Gadamer (2006), a coisa a que elas se referem (die Sache). Um dos conceitos principais de Gadamer para se referir a essa tradição é o de “consciência estética”, algo que resume a forma como ela relaciona a estética ao reino puro da liberdade e da indeterminação que se baseia inteiramente nos sujeitos que efetuam o julgamento. Assim, um julgamento do tipo “x é belo” não diria respeito às propriedades do objeto, mas à mera sensação e ao sentimento de prazer desinteressado, e constituiria a base do que Kant chamou de julgamento estético puro (Gjsedal, 2009). Mas é também nesta tradição que aparece a possibilidade de se conceber a arte como algo que expressa os ideais da razão com base em uma racionalidade dialógica (mais próxima à ideia de fronese)  e não científica (a partir da subsunção de casos particulares a leis gerais).

Em A Relevância do Belo, Gadamer (1986) estabelece a importância de Kant para se pensar a ideia de conhecimento e de verdade a partir de um tipo de experiência, a experiência do belo, que, por ser compartilhada, não expressa simplesmente uma reação subjetiva de gosto. Embora esse tipo de compartilhamento não diga respeito a uma universalidade comparável às leis da natureza (razão teórica) nem à ideia de finalidade ou propósito (razão prática), ele diz respeito a algo que tem validade mais do que subjetiva: o senso comum, conforme representado na tradição. A experiência da obra de arte, portanto, diz respeito a significados compartilhados que podem ser comunicados, e seria a necessidade de compreensão desses significados compartilhados que justificaria se refletir sobre esse tipo de experiência a partir da hermenêutica.

 Ao relacionar a estética à hermenêutica, a experiência da obra de arte assume um caráter exemplar ao nos possibilitar perceber que a compreensão dos produtos culturais, isto é, “aquilo que a mente humana produziu”(Gadamer, 2007: 160), nunca é simplesmente uma relação subjetiva com um dado objeto, mas ocorre por meio de um encontro com a tradição e de seu veículo, a linguagem. Esse encontro é concebido como um evento, como algo que nos endereça e que nos afeta: a obra de arte nos diz algo, e nos diz de uma forma que não pode ser exaustivamente expresso por conceitos. Sua exemplaridade deriva ainda do fato de que, dado sua capacidade de gerar choque ou surpresa, a obra de arte, que é muitas vezes produzida em outra época ou em outra cultura, estabelece uma relação entre o que nos é familiar e o que nos é estranho (a negatividade da experiência hermenêutica a que me referi anteriormente), forçando-nos a refletir sobre o que a obra nos diz: “aquilo que é estrangeiro nos afetará de forma estranha. Mas precisamente, um efeito de estranhamento é capaz de detonar seu próprio poder de atração, que leva à apropriação por parte do espectador” (Gadamer, 2007: 199). É esse poder de atração e de apropriação que é expresso na ideia de êxtase.

Ao contrário de Gould, para quem a ideia de êxtase constitui o cerne de sua estética, em Gadamer, salvo engano, ela aparece apenas em duas pequenas passagens de Verdade e Método, cujo objetivo é justamente salientar a importância da noção de jogo como uma metáfora fundamental para compreendermos a “base antropológica de nossa experiência da arte” (Gadamer, 1986: 22). Referindo-se particularmente à presença do espectador na apresentação da obra de arte, Gadamer (2006: 122) afirma que
considerada como uma realização subjetiva na conduta humana, estar presente tem a característica de estar fora de si. No Fedro, Platão já havia descrito o tropeço daqueles que ... tendem a confundir a condição extática de estar fora de si, percebendo-a como uma mera negação do estar em possessão de si mesmo e, portanto, como uma forma de loucura. De fato, estar fora de si é a possibilidade positiva de se estar totalmente com outra coisa. Esse tipo de estar presente é um auto-esquecimento, e ser um espectador consiste em dar-se em auto-esquecimento ao que se está assistindo. Aqui o auto-esquecimento pode ser tudo, menos uma condição privada, pois ela decorre da completa devoção da atenção ao assunto em questão, e isto é uma realização positiva do próprio espectador.

Ao propor o êxtase como uma negação da subjetividade presente no conceito de consciência estética, Gadamer quer chamar atenção para a participação do espectador como algo passivo (pathos) e não ativo. Por outro lado, é importante notar que essa passividade não é simplesmente negativa, pois o êxtase envolve justamente o contrário da apatia na medida em que diz respeito a um “interessar-se por”, um dirigir a atenção que possibilita o envolvimento completo com a coisa em questão.  Mas se essa ideia de uma “passividade positiva” como uma “realização subjetiva da conduta humana” pode sugerir uma relação de continuidade com o esquema sujeito-objeto Husserliano por meio da intencionalidade - um “dirigir a atenção” concebido como a forma como a consciência individual reflete sobre um objeto distante e simplesmente dado em sua “presentidade” (Vorhandenheit) - o conceito de jogo estabelece a forma como essa intencionalidade se manifesta, rompendo o esquema husserliano.

O que está em questão na noção de jogo  (Spiel) é precisamente uma não separação entre sujeito e objeto a partir da concepção de uma estrutura ou um padrão que se renova em uma constante repetição, mas por um impulso livre (no sentido de não relacionado a nenhum fim externo ao próprio jogo) e espontâneo (no sentido de não determinado). Quando falamos de jogo, nos diz Gadamer (1986: 22), a primeira coisa que está implicada é
o vai e vem de um movimento constantemente repetido – apenas precisamos pensar em certas expressões como ‘o jogo da luz’, ‘o jogo das ondas’, onde temos um constante ir e vir, para frente e para trás, um movimento que não é relacionado a nenhum objetivo. Claramente, o que caracteriza esse movimento para frente e para trás é que nenhum polo do movimento representa o objetivo no qual o movimento cessaria. [...] O jogo aparece como um auto-movimento que não busca nenhum fim ou propósito que não o movimento enquanto movimento.
Embora inicialmente utilizado por Kant e pela tradição romântica, Gadamer se apropria do conceito, mas com o propósito de liberá-lo “do sentido subjetivo que ele tem em Kant e em Schiller e que domina toda a estética moderna e a filosofia do homem” (Gadamer, 2006: 102). Que sentido subjetivo seria esse? Justamente a ideia de liberdade relativa ao que Gadamer chama de “consciência estética” a que me referi anteriormente e que está intimamente relacionada a uma estética do gênio. Em parte, esta ideia deriva de uma concepção de natureza não-teleológica e autopoiética. Dada a ênfase do romantismo na unidade entre os seres humanos e a natureza, o mesmo tipo de indeterminação ou de liberdade é associado a estes, particularmente à figura do gênio, considerado como portador de um poder natural. Kant, numa formulação tipicamente romântica, “descreveu o gênio como um ‘favorito da natureza’ que, por essa razão, como a natureza, cria algo que parece ter sido feito de acordo com regras, embora sem atenção consciente a elas” (Gadamer, 1986: 21). De fato, uma característica (de uma das concepções) do sujeito romântico é que ele não é mais definido simplesmente em termos de um controle racional desengajado, mas de um poder relacionado à sua imaginação criativa e à sua auto-articulação expressiva. Mas esse expressivismo também significa uma radicalização do subjetivismo e do sentido de profundidade de um sujeito que, embora esteja fundamentalmente ligado à natureza, só tem verdadeiro acesso a ela por meio do autoexame de sua interioridade (Taylor, 1989). É essa ideia que está por trás da categoria de jogo de Schiller, uma categoria estética que estabelece um contraste marcante com a “seriedade” da ciência teórica e da ação prática:
No jogo, o sujeito estaria envolvido apenas com si mesmo e, por assim dizer, livre das pressões que o acometem na ciência e na ética. Para Schiller, a autonomia da estética estava fundamentada nesse livre jogo do sujeito dentro de si mesmo. Apenas no estético o sujeito estava realmente livre, i.e., livre das regras do conhecimento e da ação (Grodin, 2001: 43).
O que Gadamer se opõe é justamente a essa ideia de um sujeito restrito a si mesmo e livre de seus horizontes cognitivos e práticos. Para ele, como para Heidegger antes dele, o contrário do jogo não é a seriedade da ciência e da ética a que Schiller se refere, mas o não-participar, o não se envolver. E, para Gadamer, esse envolver-se não está restrito àquele que joga, mas também diz respeito ao espectador. O jogo é uma atividade comunicativa e, como tal, não reconhece uma separação entre aquele que joga e aquele que observa: “o espectador é manifestamente mais do que um observador que observa o que está acontecendo em sua frente, mas alguém que faz parte [do jogo] na medida em que literalmente ‘participa’.” (Gadamer, 1986: 24).

Gadamer (Ibid.) define a participação (participatio) em termos de um “compartilhamento interior” do movimento do jogo. Esse compartilhamento interior assume a forma de intencionalidade, no sentido de que algo (a repetição do movimento, por exemplo) é visado ou intencionado enquanto algo (uma repetição). Mas o que se intenciona no jogo não é, como no caso dos “objetos”, algo conceitual, útil, ou que apresenta um propósito externo ao próprio jogo – e neste sentido, Gadamer chega a falar de uma intencionalidade do próprio jogo (Ibid.), do jogar como um “ser jogado” e até que o sujeito do jogo não é o jogador, mas o próprio jogo (Gadamer 2006: 106). De um ponto de vista “subjetivo” a intencionalidade aparece meramente como um interesse “desinteressado”, no sentido que Kant teria atribuído ao termo “desinteresse”: algo que adquire significância para nós (o oposto da apatia), mas não algo do que tentamos nos apropriar de forma a dispor e controlar ou que tenha uma utilidade ou um propósito. Gadamer percebe essa forma de intencionalidade como envolvendo um tipo de racionalidade, embora não uma racionalidade orientada para fins. Diferentemente do que se afirma quando se fala do “jogo das ondas” ou do “jogo das luzes”, a característica distintivamente humana no jogar humano é
a autodisciplina e a ordem que impomos aos nossos movimentos quando jogamos, como se fins particulares estivessem envolvidos – como quando uma criança, por exemplo, conta quantas vezes pode bater a bola contra o solo antes de perder o controle sobre ela. Nesta forma de atividade, não orientada para fins, é a razão quem estabelece as regras (Gadamer, 1986: 23).
 Mas se essa intencionalidade representa uma “realização do próprio espectador” – o jogador escolhe jogar, e escolhe um jogo dentre outros - ela não é suficiente para a compreensão da obra de arte. O que Gadamer pretende enfatizar com as noções de êxtase e de jogo é simplesmente o envolvimento característico da experiência hermenêutica e que se diferencia completamente da relação de separação e distanciamento implicada no conceito de intencionalidade da fenomenologia husserliana. O êxtase, em particular, na medida em que representa uma forma extrema de envolvimento, aponta para um tipo de conhecimento que não pode ser adquirido como uma posse, como algo que se pode controlar, mas algo do qual se participa ao se deixar levar. Em lugar de possuí-lo, somos possuídos por ele (Palmer, 1969: 169) ou, nos termos de Gadamer, “todo jogar é um ser jogado”.

A ideia é, mais uma vez, retirar o foco da subjetividade, caracterizando uma espécie de “realismo hermenêutico” (Davey, 2006) de acordo com o qual o significado da obra está na própria obra, ainda que só se manifeste por meio de sua apresentação: “quando falamos do jogo em relação à obra de arte, isso não significa nem a orientação, ou mesmo o estado mental do criador ou daqueles admirando a obra de arte, nem a liberdade de uma subjetividade engajada no jogo, mas o modo de existência da obra de arte em si” (Gadamer, 2006: 102). Este modo de existência, caracterizado como “representação” (Darstellung), em Verdade e Método, e como “execução” (Vollzug) em obras mais recentes (Grodin, 2001), indica não apenas uma imbricação constitutiva entre a obra e seus intérpretes (seja no sentido daquele que a executa, seja no sentido de uma audiência), mas também aponta para o fato de que a obra só existe enquanto tal - naquilo que Gadamer (2006: 116) chama seu “ser total” - no momento de sua execução, que nunca é idêntica a si mesma, ainda que, de alguma forma, preserve sua unidade ou identidade. Isso é particularmente evidente no caso das artes temporais, como a música, o teatro e a dança (a música que não é tocada não é música).

Mas se a concepção de êxtase como fruto de um simples “auto-esquecimento” não parece apresentar maiores problemas em relação à audiência, a questão se torna um pouco mais complicada quando o intérprete em questão é aquele que executa a obra. Isso porque seu papel na apresentação da obra de arte é muito menos “passivo”, requerendo um esforço interpretativo muito maior. Pensemos, a este respeito, no significado de uma experiência extática como a que um Glenn Gould experiencia ao se deixar levar por uma interpretação executada por ele mesmo. Isso envolve não apenas uma dimensão prática em sua relação com o piano (o que ele chama de tactília), que requer um conhecimento prévio e incorporado que possibilite um “auto-esquecimento”, isto é, que ele não pense nos movimentos a serem executados, mas, sobretudo, numa leitura prévia da partitura por meio da qual ele extrai a unidade da obra ou o que Gadamer chama de “transformação em estrutura” que caracteriza a obra de arte. O que faz um grande intérprete não é simplesmente sua técnica, mas a forma como ele estabelece determinadas relações entre as frases musicais, que elementos da obra ele enfatiza e que elementos ele deixa, por assim dizer, em segundo plano. 

 Em tese, isso não é um problema para Gadamer, que afirma que em toda interpretação existe um esforço de síntese no qual as várias facetas ou aspectos de uma mesma coisa precisam ser relacionados – e isso se aplicaria tanto à audiência quanto ao performer. De fato, ele vai mais além quando afirma que a própria “identidade hermenêutica” da obra consiste em algo a ser compreendido, que a obra coloca uma demanda que deve ser respondida por alguém que aceita seu desafio: “ela requer uma resposta – uma resposta que só pode ser dada por alguém que aceita o desafio. E essa resposta deve ser dada por esta pessoa, e dada ativamente. [...] [S]empre há uma realização reflexiva e intelectual envolvida [...]. O desafio da obra traz a realização construtiva para o jogo” (Gadamer, 1986: 26 e 28).

Essa estrutura de um jogo que se manifesta sob a forma de pergunta e resposta aponta para uma das mais conhecidas definições de compreensão de Gadamer, a compreensão como uma fusão dos horizontes do intérprete e da obra. Mas o que ela não deixa claro é quem é o agente que efetua esta fusão. Se a noção de jogo parece sugerir que a (auto)compreensão é muito mais o efeito de “um destino inevitável do que nosso próprio fazer” (Kusch, 1989: 231), por outro, o caráter dialógico dessa estrutura sugere uma manutenção (embora modificada) do esquema sujeito-objeto na qual o intérprete reflete sobre a questão que lhe foi colocada pela obra, que aparece como um Tu que fala a um Eu. É esta tensão que pretendo investigar em um próximo post ao explorar o conceito de “consciência historicamente afetada” como o elemento de mediação entre o auto-esquecimento do êxtase e a compreensão da obra de arte como uma experiência que gera auto-compreensão.