Por Cynthia Hamlin
O conceitos de êxtase e de jogo
representam, na obra de Gadamer, uma tentativa de evitar não apenas a
centralidade conferida ao sujeito na interpretação das obras de arte, mas a
própria distinção sujeito-objeto como base para a compreensão. Embora seja
possível estabelecer um paralelo entre o processo de alienação a que Gould se refere
no concerto moderno e a concepção (moderna) de estética segundo a qual o objeto
de arte é percebido como algo autônomo, separado de um contexto ético e
político mais amplo - e a criação dos museus no século XIX aparece em Verdade e
Método como exemplar dessa separação -, talvez
não seja de todo absurdo afirmar que essa é uma preocupação secundária para
Gadamer. Sua preocupação principal é estabelecer a experiência da obra de arte
como paradigmática da experiência hermenêutica, ou seja, de uma experiência que
gera conhecimento, embora distinto daquele gerado pelo método (apoiado na
distinção sujeito-objeto). É, portanto, neste sentido que sua crítica ao
subjetivismo deve ser compreendida. Em que medida ela constitui uma ruptura
absoluta com a metafísica do sujeito é uma questão contenciosa, e o próprio
Gadamer parece reconhecer isso quando afirma, em um debate com Derrida em 1981,
que
desde meu confronto com a continuação francesa do pensamento Heideggeriano [Derrida] dei-me conta de que meus esforços para ‘traduzir’ Heidegger testemunham meus próprios limites e, especialmente, indicam o quão enraizado estou na tradição romântica das humanidades e em sua herança humanística. Mas essa mesma tradição do historicismo que me sustentou e me levou adiante é o que eu tentei criticar. (Gadamer, 2007: 161).
A base desta crítica está
justamente na estética de Kant e dos românticos que, ao focar nas experiências
emocionais subjetivas e imediatas que uma obra de arte pode suscitar, exclui os
fenômenos estéticos da esfera do conhecimento (e portanto, da razão), ignorando
o seu objeto ou, nos termos de Gadamer (2006), a coisa a que elas se referem (die Sache). Um dos conceitos principais de
Gadamer para se referir a essa tradição é o de “consciência estética”, algo que
resume a forma como ela relaciona a estética ao reino puro da liberdade e da
indeterminação que se baseia inteiramente nos sujeitos que efetuam o julgamento.
Assim, um julgamento do tipo “x é belo” não diria respeito às propriedades do
objeto, mas à mera sensação e ao sentimento de prazer desinteressado, e
constituiria a base do que Kant chamou de julgamento estético puro (Gjsedal,
2009). Mas é também nesta tradição que aparece a possibilidade de se conceber a
arte como algo que expressa os ideais da razão com base em uma racionalidade
dialógica (mais próxima à ideia de fronese) e não científica (a partir da subsunção de
casos particulares a leis gerais).
Em A Relevância do Belo, Gadamer (1986)
estabelece a importância de Kant para se pensar a ideia de conhecimento e de
verdade a partir de um tipo de experiência, a experiência do belo, que, por ser
compartilhada, não expressa simplesmente uma reação subjetiva de gosto. Embora
esse tipo de compartilhamento não diga respeito a uma universalidade comparável
às leis da natureza (razão teórica) nem à ideia de finalidade ou propósito
(razão prática), ele diz respeito a algo que tem validade mais do que
subjetiva: o senso comum, conforme representado na tradição. A experiência da
obra de arte, portanto, diz respeito a significados compartilhados que podem
ser comunicados, e seria a necessidade de compreensão desses significados
compartilhados que justificaria se refletir sobre esse tipo de experiência a
partir da hermenêutica.
Ao relacionar a estética à hermenêutica, a
experiência da obra de arte assume um caráter exemplar ao nos possibilitar
perceber que a compreensão dos produtos culturais, isto é, “aquilo que a mente
humana produziu”(Gadamer, 2007: 160), nunca é simplesmente uma relação subjetiva
com um dado objeto, mas ocorre por meio de um encontro com a tradição e de seu
veículo, a linguagem. Esse encontro é concebido como um evento, como algo que
nos endereça e que nos afeta: a obra de arte nos diz algo, e nos diz de uma
forma que não pode ser exaustivamente expresso por conceitos. Sua exemplaridade
deriva ainda do fato de que, dado sua capacidade de gerar choque ou surpresa, a
obra de arte, que é muitas vezes produzida em outra época ou em outra cultura, estabelece
uma relação entre o que nos é familiar e o que nos é estranho (a negatividade
da experiência hermenêutica a que me referi anteriormente), forçando-nos a
refletir sobre o que a obra nos diz: “aquilo que é estrangeiro nos afetará de
forma estranha. Mas precisamente, um efeito de estranhamento é capaz de detonar
seu próprio poder de atração, que leva à apropriação por parte do espectador”
(Gadamer, 2007: 199). É esse poder de atração e de apropriação que é expresso
na ideia de êxtase.
Ao contrário de Gould, para quem a
ideia de êxtase constitui o cerne de sua estética, em Gadamer, salvo engano, ela
aparece apenas em duas pequenas passagens de Verdade e Método, cujo objetivo é
justamente salientar a importância da noção de jogo como uma metáfora
fundamental para compreendermos a “base antropológica de nossa experiência da
arte” (Gadamer, 1986: 22). Referindo-se particularmente à presença do
espectador na apresentação da obra de arte, Gadamer (2006: 122) afirma que
considerada como uma realização subjetiva na conduta humana, estar presente tem a característica de estar fora de si. No Fedro, Platão já havia descrito o tropeço daqueles que ... tendem a confundir a condição extática de estar fora de si, percebendo-a como uma mera negação do estar em possessão de si mesmo e, portanto, como uma forma de loucura. De fato, estar fora de si é a possibilidade positiva de se estar totalmente com outra coisa. Esse tipo de estar presente é um auto-esquecimento, e ser um espectador consiste em dar-se em auto-esquecimento ao que se está assistindo. Aqui o auto-esquecimento pode ser tudo, menos uma condição privada, pois ela decorre da completa devoção da atenção ao assunto em questão, e isto é uma realização positiva do próprio espectador.
Ao propor o êxtase como uma negação
da subjetividade presente no conceito de consciência estética, Gadamer quer
chamar atenção para a participação do espectador como algo passivo (pathos) e não ativo. Por outro lado, é
importante notar que essa passividade não é simplesmente negativa, pois o
êxtase envolve justamente o contrário da apatia na medida em que diz respeito a
um “interessar-se por”, um dirigir a atenção que possibilita o envolvimento
completo com a coisa em questão. Mas se
essa ideia de uma “passividade positiva” como uma “realização subjetiva da
conduta humana” pode sugerir uma relação de continuidade com o esquema
sujeito-objeto Husserliano por meio da intencionalidade - um “dirigir a
atenção” concebido como a forma como a consciência individual reflete sobre um
objeto distante e simplesmente dado em sua “presentidade” (Vorhandenheit) - o conceito de jogo
estabelece a forma como essa intencionalidade se manifesta, rompendo o esquema
husserliano.
O que está em questão na noção de
jogo (Spiel) é precisamente uma não separação entre sujeito e objeto a partir
da concepção de uma estrutura ou um padrão que se renova em uma constante
repetição, mas por um impulso livre (no sentido de não relacionado a nenhum fim
externo ao próprio jogo) e espontâneo (no sentido de não determinado). Quando
falamos de jogo, nos diz Gadamer (1986: 22), a primeira coisa que está
implicada é
o vai e vem de um movimento constantemente repetido – apenas precisamos pensar em certas expressões como ‘o jogo da luz’, ‘o jogo das ondas’, onde temos um constante ir e vir, para frente e para trás, um movimento que não é relacionado a nenhum objetivo. Claramente, o que caracteriza esse movimento para frente e para trás é que nenhum polo do movimento representa o objetivo no qual o movimento cessaria. [...] O jogo aparece como um auto-movimento que não busca nenhum fim ou propósito que não o movimento enquanto movimento.
Embora inicialmente utilizado por
Kant e pela tradição romântica, Gadamer se apropria do conceito, mas com o
propósito de liberá-lo “do sentido subjetivo que ele tem em Kant e em Schiller
e que domina toda a estética moderna e a filosofia do homem” (Gadamer, 2006:
102). Que sentido subjetivo seria esse? Justamente a ideia de liberdade relativa
ao que Gadamer chama de “consciência estética” a que me referi anteriormente e que
está intimamente relacionada a uma estética do gênio. Em parte, esta ideia deriva
de uma concepção de natureza não-teleológica e autopoiética. Dada a ênfase do
romantismo na unidade entre os seres humanos e a natureza, o mesmo tipo de indeterminação
ou de liberdade é associado a estes, particularmente à figura do gênio,
considerado como portador de um poder natural. Kant, numa formulação
tipicamente romântica, “descreveu o gênio como um ‘favorito da natureza’ que,
por essa razão, como a natureza, cria algo que parece ter sido feito de acordo
com regras, embora sem atenção consciente a elas” (Gadamer, 1986: 21). De fato,
uma característica (de uma das concepções) do sujeito romântico é que ele não é
mais definido simplesmente em termos de um controle racional desengajado, mas
de um poder relacionado à sua imaginação criativa e à sua auto-articulação
expressiva. Mas esse expressivismo também significa uma radicalização do
subjetivismo e do sentido de profundidade de um sujeito que, embora esteja
fundamentalmente ligado à natureza, só tem verdadeiro acesso a ela por meio do
autoexame de sua interioridade (Taylor, 1989). É essa ideia que está por trás
da categoria de jogo de Schiller, uma categoria estética que estabelece um contraste
marcante com a “seriedade” da ciência teórica e da ação prática:
No jogo, o sujeito estaria envolvido apenas com si mesmo e, por assim dizer, livre das pressões que o acometem na ciência e na ética. Para Schiller, a autonomia da estética estava fundamentada nesse livre jogo do sujeito dentro de si mesmo. Apenas no estético o sujeito estava realmente livre, i.e., livre das regras do conhecimento e da ação (Grodin, 2001: 43).
O que Gadamer se opõe é justamente
a essa ideia de um sujeito restrito a si mesmo e livre de seus horizontes
cognitivos e práticos. Para ele, como para Heidegger antes dele, o contrário do
jogo não é a seriedade da ciência e da ética a que Schiller se refere, mas o
não-participar, o não se envolver. E, para Gadamer, esse envolver-se não está
restrito àquele que joga, mas também diz respeito ao espectador. O jogo é uma
atividade comunicativa e, como tal, não reconhece uma separação entre aquele
que joga e aquele que observa: “o espectador é manifestamente mais do que um
observador que observa o que está acontecendo em sua frente, mas alguém que faz
parte [do jogo] na medida em que literalmente ‘participa’.” (Gadamer, 1986: 24).
Gadamer (Ibid.) define
a participação (participatio) em
termos de um “compartilhamento interior” do movimento do jogo. Esse
compartilhamento interior assume a forma de intencionalidade, no sentido de que
algo (a repetição do movimento, por exemplo) é visado ou intencionado enquanto
algo (uma repetição). Mas o que se intenciona no jogo não é, como no caso dos
“objetos”, algo conceitual, útil, ou que apresenta um propósito externo ao
próprio jogo – e neste sentido, Gadamer chega a falar de uma intencionalidade
do próprio jogo (Ibid.), do jogar como um “ser jogado” e até que o sujeito do
jogo não é o jogador, mas o próprio jogo (Gadamer 2006: 106). De um ponto de
vista “subjetivo” a intencionalidade aparece meramente como um interesse “desinteressado”,
no sentido que Kant teria atribuído ao termo “desinteresse”: algo que adquire
significância para nós (o oposto da apatia), mas não algo do que tentamos nos
apropriar de forma a dispor e controlar ou que tenha uma utilidade ou um
propósito. Gadamer percebe essa forma de intencionalidade como envolvendo um
tipo de racionalidade, embora não uma racionalidade orientada para fins.
Diferentemente do que se afirma quando se fala do “jogo das ondas” ou do “jogo
das luzes”, a característica distintivamente humana no jogar humano é
a autodisciplina e a ordem que impomos aos nossos movimentos quando jogamos, como se fins particulares estivessem envolvidos – como quando uma criança, por exemplo, conta quantas vezes pode bater a bola contra o solo antes de perder o controle sobre ela. Nesta forma de atividade, não orientada para fins, é a razão quem estabelece as regras (Gadamer, 1986: 23).
A ideia é, mais uma vez, retirar o
foco da subjetividade, caracterizando uma espécie de “realismo hermenêutico”
(Davey, 2006) de acordo com o qual o significado da obra está na própria obra,
ainda que só se manifeste por meio de sua apresentação: “quando falamos do jogo
em relação à obra de arte, isso não significa nem a orientação, ou mesmo o
estado mental do criador ou daqueles admirando a obra de arte, nem a liberdade
de uma subjetividade engajada no jogo, mas o modo de existência da obra de arte
em si” (Gadamer, 2006: 102). Este modo de existência, caracterizado como “representação”
(Darstellung), em Verdade e Método, e
como “execução” (Vollzug) em obras
mais recentes (Grodin, 2001), indica não apenas uma imbricação constitutiva
entre a obra e seus intérpretes (seja no sentido daquele que a executa, seja no
sentido de uma audiência), mas também aponta para o fato de que a obra só
existe enquanto tal - naquilo que Gadamer (2006: 116) chama seu “ser total” - no
momento de sua execução, que nunca é idêntica a si mesma, ainda que, de alguma
forma, preserve sua unidade ou identidade. Isso é particularmente evidente no
caso das artes temporais, como a música, o teatro e a dança (a música que não é
tocada não é música).
Mas se a concepção de êxtase como fruto
de um simples “auto-esquecimento” não parece apresentar maiores problemas em
relação à audiência, a questão se torna um pouco mais complicada quando o
intérprete em questão é aquele que executa a obra. Isso porque seu papel na
apresentação da obra de arte é muito menos “passivo”, requerendo um esforço
interpretativo muito maior. Pensemos, a este respeito, no significado de uma
experiência extática como a que um Glenn Gould experiencia ao se deixar levar
por uma interpretação executada por ele mesmo. Isso envolve não apenas uma
dimensão prática em sua relação com o piano (o que ele chama de tactília), que
requer um conhecimento prévio e incorporado que possibilite um
“auto-esquecimento”, isto é, que ele não pense nos movimentos a serem
executados, mas, sobretudo, numa leitura prévia da partitura por meio da qual
ele extrai a unidade da obra ou o que Gadamer chama de “transformação em
estrutura” que caracteriza a obra de arte. O que faz um grande intérprete não é
simplesmente sua técnica, mas a forma como ele estabelece determinadas relações
entre as frases musicais, que elementos da obra ele enfatiza e que elementos
ele deixa, por assim dizer, em segundo plano.
Em tese, isso não é um problema para Gadamer,
que afirma que em toda interpretação existe um esforço de síntese no qual as
várias facetas ou aspectos de uma mesma coisa precisam ser relacionados – e
isso se aplicaria tanto à audiência quanto ao performer. De fato, ele vai mais
além quando afirma que a própria “identidade hermenêutica” da obra consiste em
algo a ser compreendido, que a obra coloca uma demanda que deve ser respondida
por alguém que aceita seu desafio: “ela requer uma resposta – uma resposta que
só pode ser dada por alguém que aceita o desafio. E essa resposta deve ser dada
por esta pessoa, e dada ativamente. [...] [S]empre há uma realização reflexiva
e intelectual envolvida [...]. O desafio da obra traz a realização construtiva
para o jogo” (Gadamer, 1986: 26 e 28).
Essa estrutura de um jogo que se
manifesta sob a forma de pergunta e resposta aponta para uma das mais
conhecidas definições de compreensão de Gadamer, a compreensão como uma fusão
dos horizontes do intérprete e da obra. Mas o que ela não deixa claro é quem é
o agente que efetua esta fusão. Se a noção de jogo parece sugerir que a (auto)compreensão
é muito mais o efeito de “um destino inevitável do que nosso próprio fazer”
(Kusch, 1989: 231), por outro, o caráter dialógico dessa estrutura sugere uma
manutenção (embora modificada) do esquema sujeito-objeto na qual o intérprete
reflete sobre a questão que lhe foi colocada pela obra, que aparece como um Tu
que fala a um Eu. É esta tensão que pretendo investigar em um próximo post ao
explorar o conceito de “consciência historicamente afetada” como o elemento de
mediação entre o auto-esquecimento do êxtase e a compreensão da obra de arte
como uma experiência que gera auto-compreensão.
4 comentários:
pedestremente, o eco kantiano mais bonito e preciso que conheço, é o verso de rilke, "todo anjo é terrível".
Caros, devo estar meio perdido quanto a disposição do blog, mas não consigo acessar as referências bibliográficas. Igor
Olá, Denise,
Rilke era um dos poetas preferidos de Gadamer e também de Max Weber. Tentei encontrar um verso que Gadamer utiliza para ilustrar o poder da obra de arte na autocompreensão, mas vou ficar te devendo. Devo tropeçar nele por esses dias...
Abraço e obrigada pela visita
Oi, Igor,
Se as referências das quais vc fala são as dessa série sobre Gadamer & Gould, deixei para listá-las na última postagem, que deve ser a próxima.
Abraço
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