sexta-feira, 19 de abril de 2013

Sujeitos extáticos em Gadamer e Glenn Gould: um exercício em interpretação (quase) selvagem. (Parte 3)



Por Cynthia Hamlin

O conceitos de êxtase e de jogo representam, na obra de Gadamer, uma tentativa de evitar não apenas a centralidade conferida ao sujeito na interpretação das obras de arte, mas a própria distinção sujeito-objeto como base para a compreensão. Embora seja possível estabelecer um paralelo entre o processo de alienação a que Gould se refere no concerto moderno e a concepção (moderna) de estética segundo a qual o objeto de arte é percebido como algo autônomo, separado de um contexto ético e político mais amplo - e a criação dos museus no século XIX aparece em Verdade e Método como exemplar dessa separação -,  talvez não seja de todo absurdo afirmar que essa é uma preocupação secundária para Gadamer. Sua preocupação principal é estabelecer a experiência da obra de arte como paradigmática da experiência hermenêutica, ou seja, de uma experiência que gera conhecimento, embora distinto daquele gerado pelo método (apoiado na distinção sujeito-objeto). É, portanto, neste sentido que sua crítica ao subjetivismo deve ser compreendida. Em que medida ela constitui uma ruptura absoluta com a metafísica do sujeito é uma questão contenciosa, e o próprio Gadamer parece reconhecer isso quando afirma, em um debate com Derrida em 1981, que
desde meu confronto com a continuação francesa do pensamento Heideggeriano [Derrida] dei-me conta de que meus esforços para ‘traduzir’ Heidegger testemunham meus próprios limites e, especialmente, indicam o quão enraizado estou na tradição romântica das humanidades e em sua herança humanística. Mas essa mesma tradição do historicismo que me sustentou e me levou adiante é o que eu tentei criticar. (Gadamer, 2007: 161).
A base desta crítica está justamente na estética de Kant e dos românticos que, ao focar nas experiências emocionais subjetivas e imediatas que uma obra de arte pode suscitar, exclui os fenômenos estéticos da esfera do conhecimento (e portanto, da razão), ignorando o seu objeto ou, nos termos de Gadamer (2006), a coisa a que elas se referem (die Sache). Um dos conceitos principais de Gadamer para se referir a essa tradição é o de “consciência estética”, algo que resume a forma como ela relaciona a estética ao reino puro da liberdade e da indeterminação que se baseia inteiramente nos sujeitos que efetuam o julgamento. Assim, um julgamento do tipo “x é belo” não diria respeito às propriedades do objeto, mas à mera sensação e ao sentimento de prazer desinteressado, e constituiria a base do que Kant chamou de julgamento estético puro (Gjsedal, 2009). Mas é também nesta tradição que aparece a possibilidade de se conceber a arte como algo que expressa os ideais da razão com base em uma racionalidade dialógica (mais próxima à ideia de fronese)  e não científica (a partir da subsunção de casos particulares a leis gerais).

Em A Relevância do Belo, Gadamer (1986) estabelece a importância de Kant para se pensar a ideia de conhecimento e de verdade a partir de um tipo de experiência, a experiência do belo, que, por ser compartilhada, não expressa simplesmente uma reação subjetiva de gosto. Embora esse tipo de compartilhamento não diga respeito a uma universalidade comparável às leis da natureza (razão teórica) nem à ideia de finalidade ou propósito (razão prática), ele diz respeito a algo que tem validade mais do que subjetiva: o senso comum, conforme representado na tradição. A experiência da obra de arte, portanto, diz respeito a significados compartilhados que podem ser comunicados, e seria a necessidade de compreensão desses significados compartilhados que justificaria se refletir sobre esse tipo de experiência a partir da hermenêutica.

 Ao relacionar a estética à hermenêutica, a experiência da obra de arte assume um caráter exemplar ao nos possibilitar perceber que a compreensão dos produtos culturais, isto é, “aquilo que a mente humana produziu”(Gadamer, 2007: 160), nunca é simplesmente uma relação subjetiva com um dado objeto, mas ocorre por meio de um encontro com a tradição e de seu veículo, a linguagem. Esse encontro é concebido como um evento, como algo que nos endereça e que nos afeta: a obra de arte nos diz algo, e nos diz de uma forma que não pode ser exaustivamente expresso por conceitos. Sua exemplaridade deriva ainda do fato de que, dado sua capacidade de gerar choque ou surpresa, a obra de arte, que é muitas vezes produzida em outra época ou em outra cultura, estabelece uma relação entre o que nos é familiar e o que nos é estranho (a negatividade da experiência hermenêutica a que me referi anteriormente), forçando-nos a refletir sobre o que a obra nos diz: “aquilo que é estrangeiro nos afetará de forma estranha. Mas precisamente, um efeito de estranhamento é capaz de detonar seu próprio poder de atração, que leva à apropriação por parte do espectador” (Gadamer, 2007: 199). É esse poder de atração e de apropriação que é expresso na ideia de êxtase.

Ao contrário de Gould, para quem a ideia de êxtase constitui o cerne de sua estética, em Gadamer, salvo engano, ela aparece apenas em duas pequenas passagens de Verdade e Método, cujo objetivo é justamente salientar a importância da noção de jogo como uma metáfora fundamental para compreendermos a “base antropológica de nossa experiência da arte” (Gadamer, 1986: 22). Referindo-se particularmente à presença do espectador na apresentação da obra de arte, Gadamer (2006: 122) afirma que
considerada como uma realização subjetiva na conduta humana, estar presente tem a característica de estar fora de si. No Fedro, Platão já havia descrito o tropeço daqueles que ... tendem a confundir a condição extática de estar fora de si, percebendo-a como uma mera negação do estar em possessão de si mesmo e, portanto, como uma forma de loucura. De fato, estar fora de si é a possibilidade positiva de se estar totalmente com outra coisa. Esse tipo de estar presente é um auto-esquecimento, e ser um espectador consiste em dar-se em auto-esquecimento ao que se está assistindo. Aqui o auto-esquecimento pode ser tudo, menos uma condição privada, pois ela decorre da completa devoção da atenção ao assunto em questão, e isto é uma realização positiva do próprio espectador.

Ao propor o êxtase como uma negação da subjetividade presente no conceito de consciência estética, Gadamer quer chamar atenção para a participação do espectador como algo passivo (pathos) e não ativo. Por outro lado, é importante notar que essa passividade não é simplesmente negativa, pois o êxtase envolve justamente o contrário da apatia na medida em que diz respeito a um “interessar-se por”, um dirigir a atenção que possibilita o envolvimento completo com a coisa em questão.  Mas se essa ideia de uma “passividade positiva” como uma “realização subjetiva da conduta humana” pode sugerir uma relação de continuidade com o esquema sujeito-objeto Husserliano por meio da intencionalidade - um “dirigir a atenção” concebido como a forma como a consciência individual reflete sobre um objeto distante e simplesmente dado em sua “presentidade” (Vorhandenheit) - o conceito de jogo estabelece a forma como essa intencionalidade se manifesta, rompendo o esquema husserliano.

O que está em questão na noção de jogo  (Spiel) é precisamente uma não separação entre sujeito e objeto a partir da concepção de uma estrutura ou um padrão que se renova em uma constante repetição, mas por um impulso livre (no sentido de não relacionado a nenhum fim externo ao próprio jogo) e espontâneo (no sentido de não determinado). Quando falamos de jogo, nos diz Gadamer (1986: 22), a primeira coisa que está implicada é
o vai e vem de um movimento constantemente repetido – apenas precisamos pensar em certas expressões como ‘o jogo da luz’, ‘o jogo das ondas’, onde temos um constante ir e vir, para frente e para trás, um movimento que não é relacionado a nenhum objetivo. Claramente, o que caracteriza esse movimento para frente e para trás é que nenhum polo do movimento representa o objetivo no qual o movimento cessaria. [...] O jogo aparece como um auto-movimento que não busca nenhum fim ou propósito que não o movimento enquanto movimento.
Embora inicialmente utilizado por Kant e pela tradição romântica, Gadamer se apropria do conceito, mas com o propósito de liberá-lo “do sentido subjetivo que ele tem em Kant e em Schiller e que domina toda a estética moderna e a filosofia do homem” (Gadamer, 2006: 102). Que sentido subjetivo seria esse? Justamente a ideia de liberdade relativa ao que Gadamer chama de “consciência estética” a que me referi anteriormente e que está intimamente relacionada a uma estética do gênio. Em parte, esta ideia deriva de uma concepção de natureza não-teleológica e autopoiética. Dada a ênfase do romantismo na unidade entre os seres humanos e a natureza, o mesmo tipo de indeterminação ou de liberdade é associado a estes, particularmente à figura do gênio, considerado como portador de um poder natural. Kant, numa formulação tipicamente romântica, “descreveu o gênio como um ‘favorito da natureza’ que, por essa razão, como a natureza, cria algo que parece ter sido feito de acordo com regras, embora sem atenção consciente a elas” (Gadamer, 1986: 21). De fato, uma característica (de uma das concepções) do sujeito romântico é que ele não é mais definido simplesmente em termos de um controle racional desengajado, mas de um poder relacionado à sua imaginação criativa e à sua auto-articulação expressiva. Mas esse expressivismo também significa uma radicalização do subjetivismo e do sentido de profundidade de um sujeito que, embora esteja fundamentalmente ligado à natureza, só tem verdadeiro acesso a ela por meio do autoexame de sua interioridade (Taylor, 1989). É essa ideia que está por trás da categoria de jogo de Schiller, uma categoria estética que estabelece um contraste marcante com a “seriedade” da ciência teórica e da ação prática:
No jogo, o sujeito estaria envolvido apenas com si mesmo e, por assim dizer, livre das pressões que o acometem na ciência e na ética. Para Schiller, a autonomia da estética estava fundamentada nesse livre jogo do sujeito dentro de si mesmo. Apenas no estético o sujeito estava realmente livre, i.e., livre das regras do conhecimento e da ação (Grodin, 2001: 43).
O que Gadamer se opõe é justamente a essa ideia de um sujeito restrito a si mesmo e livre de seus horizontes cognitivos e práticos. Para ele, como para Heidegger antes dele, o contrário do jogo não é a seriedade da ciência e da ética a que Schiller se refere, mas o não-participar, o não se envolver. E, para Gadamer, esse envolver-se não está restrito àquele que joga, mas também diz respeito ao espectador. O jogo é uma atividade comunicativa e, como tal, não reconhece uma separação entre aquele que joga e aquele que observa: “o espectador é manifestamente mais do que um observador que observa o que está acontecendo em sua frente, mas alguém que faz parte [do jogo] na medida em que literalmente ‘participa’.” (Gadamer, 1986: 24).

Gadamer (Ibid.) define a participação (participatio) em termos de um “compartilhamento interior” do movimento do jogo. Esse compartilhamento interior assume a forma de intencionalidade, no sentido de que algo (a repetição do movimento, por exemplo) é visado ou intencionado enquanto algo (uma repetição). Mas o que se intenciona no jogo não é, como no caso dos “objetos”, algo conceitual, útil, ou que apresenta um propósito externo ao próprio jogo – e neste sentido, Gadamer chega a falar de uma intencionalidade do próprio jogo (Ibid.), do jogar como um “ser jogado” e até que o sujeito do jogo não é o jogador, mas o próprio jogo (Gadamer 2006: 106). De um ponto de vista “subjetivo” a intencionalidade aparece meramente como um interesse “desinteressado”, no sentido que Kant teria atribuído ao termo “desinteresse”: algo que adquire significância para nós (o oposto da apatia), mas não algo do que tentamos nos apropriar de forma a dispor e controlar ou que tenha uma utilidade ou um propósito. Gadamer percebe essa forma de intencionalidade como envolvendo um tipo de racionalidade, embora não uma racionalidade orientada para fins. Diferentemente do que se afirma quando se fala do “jogo das ondas” ou do “jogo das luzes”, a característica distintivamente humana no jogar humano é
a autodisciplina e a ordem que impomos aos nossos movimentos quando jogamos, como se fins particulares estivessem envolvidos – como quando uma criança, por exemplo, conta quantas vezes pode bater a bola contra o solo antes de perder o controle sobre ela. Nesta forma de atividade, não orientada para fins, é a razão quem estabelece as regras (Gadamer, 1986: 23).
 Mas se essa intencionalidade representa uma “realização do próprio espectador” – o jogador escolhe jogar, e escolhe um jogo dentre outros - ela não é suficiente para a compreensão da obra de arte. O que Gadamer pretende enfatizar com as noções de êxtase e de jogo é simplesmente o envolvimento característico da experiência hermenêutica e que se diferencia completamente da relação de separação e distanciamento implicada no conceito de intencionalidade da fenomenologia husserliana. O êxtase, em particular, na medida em que representa uma forma extrema de envolvimento, aponta para um tipo de conhecimento que não pode ser adquirido como uma posse, como algo que se pode controlar, mas algo do qual se participa ao se deixar levar. Em lugar de possuí-lo, somos possuídos por ele (Palmer, 1969: 169) ou, nos termos de Gadamer, “todo jogar é um ser jogado”.

A ideia é, mais uma vez, retirar o foco da subjetividade, caracterizando uma espécie de “realismo hermenêutico” (Davey, 2006) de acordo com o qual o significado da obra está na própria obra, ainda que só se manifeste por meio de sua apresentação: “quando falamos do jogo em relação à obra de arte, isso não significa nem a orientação, ou mesmo o estado mental do criador ou daqueles admirando a obra de arte, nem a liberdade de uma subjetividade engajada no jogo, mas o modo de existência da obra de arte em si” (Gadamer, 2006: 102). Este modo de existência, caracterizado como “representação” (Darstellung), em Verdade e Método, e como “execução” (Vollzug) em obras mais recentes (Grodin, 2001), indica não apenas uma imbricação constitutiva entre a obra e seus intérpretes (seja no sentido daquele que a executa, seja no sentido de uma audiência), mas também aponta para o fato de que a obra só existe enquanto tal - naquilo que Gadamer (2006: 116) chama seu “ser total” - no momento de sua execução, que nunca é idêntica a si mesma, ainda que, de alguma forma, preserve sua unidade ou identidade. Isso é particularmente evidente no caso das artes temporais, como a música, o teatro e a dança (a música que não é tocada não é música).

Mas se a concepção de êxtase como fruto de um simples “auto-esquecimento” não parece apresentar maiores problemas em relação à audiência, a questão se torna um pouco mais complicada quando o intérprete em questão é aquele que executa a obra. Isso porque seu papel na apresentação da obra de arte é muito menos “passivo”, requerendo um esforço interpretativo muito maior. Pensemos, a este respeito, no significado de uma experiência extática como a que um Glenn Gould experiencia ao se deixar levar por uma interpretação executada por ele mesmo. Isso envolve não apenas uma dimensão prática em sua relação com o piano (o que ele chama de tactília), que requer um conhecimento prévio e incorporado que possibilite um “auto-esquecimento”, isto é, que ele não pense nos movimentos a serem executados, mas, sobretudo, numa leitura prévia da partitura por meio da qual ele extrai a unidade da obra ou o que Gadamer chama de “transformação em estrutura” que caracteriza a obra de arte. O que faz um grande intérprete não é simplesmente sua técnica, mas a forma como ele estabelece determinadas relações entre as frases musicais, que elementos da obra ele enfatiza e que elementos ele deixa, por assim dizer, em segundo plano. 

 Em tese, isso não é um problema para Gadamer, que afirma que em toda interpretação existe um esforço de síntese no qual as várias facetas ou aspectos de uma mesma coisa precisam ser relacionados – e isso se aplicaria tanto à audiência quanto ao performer. De fato, ele vai mais além quando afirma que a própria “identidade hermenêutica” da obra consiste em algo a ser compreendido, que a obra coloca uma demanda que deve ser respondida por alguém que aceita seu desafio: “ela requer uma resposta – uma resposta que só pode ser dada por alguém que aceita o desafio. E essa resposta deve ser dada por esta pessoa, e dada ativamente. [...] [S]empre há uma realização reflexiva e intelectual envolvida [...]. O desafio da obra traz a realização construtiva para o jogo” (Gadamer, 1986: 26 e 28).

Essa estrutura de um jogo que se manifesta sob a forma de pergunta e resposta aponta para uma das mais conhecidas definições de compreensão de Gadamer, a compreensão como uma fusão dos horizontes do intérprete e da obra. Mas o que ela não deixa claro é quem é o agente que efetua esta fusão. Se a noção de jogo parece sugerir que a (auto)compreensão é muito mais o efeito de “um destino inevitável do que nosso próprio fazer” (Kusch, 1989: 231), por outro, o caráter dialógico dessa estrutura sugere uma manutenção (embora modificada) do esquema sujeito-objeto na qual o intérprete reflete sobre a questão que lhe foi colocada pela obra, que aparece como um Tu que fala a um Eu. É esta tensão que pretendo investigar em um próximo post ao explorar o conceito de “consciência historicamente afetada” como o elemento de mediação entre o auto-esquecimento do êxtase e a compreensão da obra de arte como uma experiência que gera auto-compreensão. 

4 comentários:

denise bottmann disse...

pedestremente, o eco kantiano mais bonito e preciso que conheço, é o verso de rilke, "todo anjo é terrível".

Igor Peres disse...

Caros, devo estar meio perdido quanto a disposição do blog, mas não consigo acessar as referências bibliográficas. Igor

Cynthia disse...

Olá, Denise,

Rilke era um dos poetas preferidos de Gadamer e também de Max Weber. Tentei encontrar um verso que Gadamer utiliza para ilustrar o poder da obra de arte na autocompreensão, mas vou ficar te devendo. Devo tropeçar nele por esses dias...

Abraço e obrigada pela visita

Le Cazzo disse...

Oi, Igor,

Se as referências das quais vc fala são as dessa série sobre Gadamer & Gould, deixei para listá-las na última postagem, que deve ser a próxima.

Abraço