"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sábado, 19 de abril de 2008
Profissionalização, autoformação e pesquisa: sociologia dialógica versus ideologia de boteco II
A sociologia profissional seria instrumental na medida em que se refere à resolução de problemas estabelecidos como “relevantes” pela comunidade sociológica. Em outros termos, refere-se a programas de pesquisa, a um tipo de atividade que diz respeito a métodos testados; a um corpo de conhecimento acumulado; a perguntas que orientam a pesquisa; e a quadros conceituais compartilhados. Longe de ser um programa único e homogêneo, entretanto, a sociologia profissional consiste em “programas (...) múltiplos que se intersectam, cada um com seus pressupostos, exemplares, questões definidoras, aparatos conceituais e teorias” (Ibid.: 10).
Esta peculiaridade da sociologia imediatamente põe em relevo o caráter ideal-típico, no sentido weberiano, da tipologia de Burawoy: a fim de que não degenere em visões estanque e incomensuráveis da realidade, existe uma dimensão crítica que é mobilizada sempre que se faz necessário o questionamento de seus pressupostos e da sociedade mais ampla. É ao considerar que os tipos construídos por Burawoy não se apresentam de forma pura na realidade que se torna possível caracterizar o ensino da sociologia nas escolas como uma espécie de sociologia pública. Vejamos.
De acordo com o autor, a sociologia pública estabelece uma conversação entre a sociologia e diversos tipos de público. Um público deve ser entendido como pessoas envolvidas em uma conversação, e o principal desafio que se coloca a uma sociologia deste tipo é o de engajar múltiplos públicos, de múltiplas formas. A sociologia torna-se, assim, o veículo de uma discussão pública acerca da natureza da sociedade. Quais as implicações de se considerar os alunos do ensino médio como um tipo de público? Para Burawoy, ao se referir aos estudantes universitários como um dos públicos dos sociólogos profissionais (Ibid.: 9), considerá-los como uma espécie de público:
“não significa tratá-los como recipientes vazios nos quais introduzimos nosso conhecimento profundo. Em vez disso, devemos pensar acerca deles como portadores de uma rica experiência vivida que nós transformamos em um auto-entendimento mais profundo a partir dos contextos históricos e sociais que os tornaram quem são”.
Mas para que a sociologia no ensino médio possa ser caracterizada como uma série de diálogos estabelecidos no terreno da sociologia, há que se relativizar o próprio tipo ideal de sociologia pública definido por Burawoy. No caso específico do ensino médio, acredito que, diferentemente de sua dimensão reflexiva, é sua dimensão instrumental que deve ser priorizada (ainda que não de forma exclusiva). Isto significa relacioná-la firmemente aos fins estabelecidos nos currículos escolares. A ênfase, portanto, é deslocada do aspecto reflexivo ao instrumental, ainda que o primeiro esteja dado de forma implícita ao se considerar que o conhecimento sociológico tem um aspecto crítico e emancipatório, já que está intrinsecamente ligado à idéia da formação de uma consciência crítica e relacionado a elementos como cidadania e democracia. Acredito que esta visão é compatível com as Orientações Curriculares estabelecidas pelo Ministério da Educação.
Enfatizar o aspecto instrumental da sociologia pública aplicada ao ensino médio implica também aproximar o professor deste nível de ensino do sociólogo profissional, cujo fim é o desenvolvimento ou a aplicação de programas de pesquisa. Em outros termos, significa socializá-lo a partir de uma sociologia profissional, o que envolve não apenas o domínio de esquemas conceituais compartilhados, mas também de métodos e técnicas de pesquisa. Apenas desta forma o professor do ensino médio será capaz de traduzir e adaptar um corpo de conhecimento gerado na academia, valorizando aquelas práticas específicas à sua atividade de trabalho, ao mesmo tempo em que evita a degeneração de tais práticas em simples produção e reprodução de ideologias.
Encarar a atividade do professor de ensino médio desta forma implica ainda considerar que o tipo de legitimação de sua atividade é diferente da do sociólogo profissional: enquanto que o primeiro deve se guiar pela relevância de sua atividade para a transmissão dos conteúdos curriculares, o segundo justifica sua atividade por meio de normas de produção científica que incluem elementos como o uso controlado de métodos e técnicas de pesquisa e a publicação de seus trabalhos visando o escrutínio público por parte de seus pares. Sendo assim, acreditar que o professor de ensino médio tem como objetivo a pesquisa sociológica nas escolas é desvirtuar não apenas o seu trabalho, mas também a própria atividade de pesquisa, que é regida por critérios específicos de legitimação, voltados para a minimização de uma produção ideológica no sentido convencional do termo, e que não podem ser aplicados no ambiente das escolas.
Isto significa que o professor do ensino médio não produz conhecimento? Certamente que não. Apenas que o conhecimento que ele produz é diferente do conhecimento produzido pelos sociólogos profissionais. Longe de representar uma desvalorização do trabalho do professor, acredito que considerá-lo como uma espécie de sociólogo público é estender o poder da sociologia para além dos muros acadêmicos, uma das principais limitações da sociologia profissional, conforme ela vem sendo desenvolvida no Brasil. Além disso, significa tornar visíveis questões que não estão diretamente acessíveis aos sociólogos profissionais. Neste sentido, uma divisão do trabalho como a proposta aqui possibilita que a educação venha a se tornar “uma série de diálogos no campo da sociologia” (Burawoy, 2005:9): um diálogo entre os sociólogos profissionais e os professores do ensino médio; entre os professores e seus alunos; entre os próprios alunos e, por fim, e não menos importante, entre os alunos e outros públicos que se encontram além dos muros das escolas.
Referências Bibliográficas
BOUDON, Raymond (1981[1974]). A Desigualdade das Oportunidades. Brasília: Ed. UnB.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, J. C. (1970) La Reproduction: Éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris, Éd. de Minuit.
BURAWOY, Michael (2005). For Public Sociology. Presidential Address. American Sociological Review, vol 70, fev, p. 4-28.
CHOMBART DE LAUWE, Paul-Henry (1976). Argument (I). In: Chombart de Lauwe (org.) Transformations de L’Environnement, des Aspirations et des Valeurs. Paris, Éditions du CNRS.
DURKHEIM, Émile (1981). As Regras do Método Sociológico. Lisboa, Presença.
FERNANDES, Florestan (1977). A Sociologia no Brasil: Contribuição para o Estudo de sua Formação e Desenvolvimento. Petrópolis, Vozes.
LEWIS, Richard; SMITH, David (1980). American sociology and pragmatism: Mead, chicago sociology, and symbolic interaction. Chicago: University of Chicago Press.
OELKERS, Jürgen (2008). Some Historical Notes on George Herbert Mead’s Theory of Education. In: Michael Taylor, Helmut Schreier e Paulo Ghiraldelli Jr. (eds). Pragmatism, Education, and Children: International Philosophical Perspectives. Amsterdam e Nova York: Rodopi. Disponível em: https://www.uzh.ch/paed/ap/downloads/oelkers/english_lectures/Meadtranslationfirst.pdf
WEBER, Silke (1976). Modèle Dominant en Éducation. In: P. H. Chombart de Lauwe (org.) Transformations de L’Environnement, des Aspirations et des Valeurs. Paris, Éditions du CNRS.
YOUNG, Michael (2007). Para que Servem as Escolas? Educação e Sociedade, Campinas, vol 28, no. 101, set./dez, p. 1287-1302. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v28n101/a0228101.pdf
Obrigada a Silke Weber e a Bruno França pelos diálogos que tornaram essas reflexões possíveis.
(A ser editado)
Cynthia Hamlin
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
ééééé, nenhum problema em parecer feminista =)
E era mesmo pra você dizer o que significa feminismo! ^^ Faz isso lá, por favor. Sem medo de ser feliz =)
A idéia era fazer um post mais racional, que tratasse das dificuldades de se entender o que é feminismo e tal, fazendo uma crítica as pseudos que eu acabo encontrando por aí. Mas meu conhecimento sobre gênero é minúsculo e meu sangue ferve com radicalismos =P Aí já viu, né? ^^'''
Assim que puder respirar eu comento os textos aqui. ^^'
Ler Mead em espanhol tem tomado meu tempo =X
Um abraço!
Postar um comentário