Toc, toc... Tem alguém aí?! Silêncio, ninguém responde. Onde está o pessoal? Será que se jogaram do alto do CFCH? Serão, meus diletos amigos, suicidas? Intelectuais lemingues, quem sabe. Mas eu entenderia, pois não é fácil trabalhar naquele prédio horroroso. E dizem que as condições de trabalho no PPGS da UFPE são terríveis, e há boatos de trabalho escravo, coisa do gênero. E a vida, né, sem aumento, a inflação chegando, sei não...
Bem, já que desapareceram, aproveito e invado a seara de Cynthia. Estimulado pelo seu escrito sobre o ensino de sociologia no ensino médio, dei um rolé por alguns textos e parei num de Durkheim sobre educação. Claro, o tema tem uma relação um tanto distante com a discussão realizada pela nossa queridinha, mas, já que fui parar por aqui, bora em frente!
Durkheim, Emile - L'EDUCATION MORALE - Paris: Fabert, 2007
Pessoalmente, acho os textos de Emile relativos à educação um misto de ciência acadêmica com ideologia. Seu intervencionismo moral seria bastante visível. Numa outra obra (Educação e sociologia), Emile afirmou que a educação era a socialização metódica da nova geração. Tal conceito de educação gerou um aporte teórico fecundo que, inclusive, influenciou bastante Piaget. Assim, cada geração deve socializar-se a partir de modelos culturais transmitidos pela geração precedente. Contudo, ao contrário de Piaget, que percebe a socialização como uma construção, Emile apreende a socialização do ponto de vista de uma transmissão do espírito da disciplina. O texto analisado é, digamos assim, uma apologética da disciplina.
Durkheim tenta oferecer uma base "natural" à disciplina ao defender que o homem vive sob determinadas condições ambientais, limitando as suas possibilidades de ação. Para ele, o ser humano precisa adaptar tais limitações às suas necessidades, e isso requer um acordo disciplinar entre a natureza e o homem. Assim, a disciplina seria útil não somente no contexto dos interesses da sociedade e suas formas de cooperação, mas também para o bem-estar do próprio indivíduo. A disciplina é o controle voluntário dos desejos, e tal controle é fundamental para alcançar a felicidade. A formação da personalidade teria como base justamente o controle de si e a disciplina.
Nesse escrito, Durkheim redefiniu a natureza da coerção moral, diminuindo, digamos assim, sua "externalidade". Relacionou a moral à obrigação e ao dever. A coerção moral seria um jogo entre a obediência e a adesão voluntária a um dever. Convenhamos, uma conceituação de coerção bem mais interessante do que aquela encontrada na Da Divisão do Trabalho Social. Aqui, considerando a obediência e a adesão voluntária, pode-se conectar o poder restritivo das normas com a "autonomia" da ação subjetiva. Creio que o cabra tenha, de fato, realizado tal conexão com uso da noção de ritual (um uso ainda repleto de defeitos, vale dizer) na sua obra As formas elementares da vida religiosa.
Emile é um defensor das chamadas liberdades positivas: a liberdade só pode ser viabilizada, se enquadrada nas leis. Por isso, o indivíduo só pode ser livre através da disciplina moral. Nesse sentido, ele seria contra o utilitarismo (Bentham) e as visões anarquistas da liberdade (apologia da liberdade negativa). Sem regras, não há moral, e, como a moral é o campo da liberdade, para usar uma visão kantiana, a liberdade precisa estar formatada por normas de conduta. A moral é fundamental à coesão social, e a educação é o demiurgo da moral. Emile justifica a racionalidade da disciplina, defendendo sua relação com a emancipação e a liberdade humanas: a disciplina é o meio pelo qual o homem realiza sua natureza — aqui, Emile é um sintoma de toda a querela disciplinar, tão bem analisada por Foucault. Contudo, sendo histórica a constituição da natureza humana, a disciplina muda quando muda a constituição do homem, transformando-se também os modos pelos quais a disciplina é introjetada no ser humano — por exemplo: a solidariedade mecânica envolve um modo disciplinar diferente da solidariedade orgânica.
E, claro, disciplina sem autoridade é uma contradição flagrante. Por isso, as regras morais precisam ser investidas de autoridade. Não há subversão nesse mundo disciplinar? Sim, quando há a necessidade de substituir-se velhas regras caducas por outras — Jesus e Sócrates representariam uma quebra de regras, mas não no sentido da anomia e sim de um novo modo disciplinar. O mundo moral de Durkheim, de fato, requer a disciplina. Ora, na sua época, o controle do corpo passa pelo controle da "alma". Um mundo aonde a tradição vai aos poucos perdendo sua força normativa, dissolvendo-se no "desencanto do mundo".
Qual seria o paradigma emocional da disciplina? Repressão sexual, conflito e culpabilidade. A disciplina moral exige a culpa, pois a culpabilidade lembra sempre o vínculo com o passado, e o passado é a lembrança de regras e normas de conduta; exige o conflito, pois sem ele como tomar consciência da tentação? É o mundo da histeria, psicopatologia-mor da época de Emile. A política pedagógica baseada na disciplina criou personalidades fortes, mas também uma clientela assídua para Freud.
Durkheim ficaria horrorizado com o nosso mundo. Se leu realmente Nietzsche, deve ter ficado preocupado. Nosso tempo é a época do indivíduo sem disciplina! O duo permissão-proibição escafedeu-se: é proibido-proibir! O individualismo radicalizou-se, e a disciplina foi trocada pela decisão e pela iniciativa pessoais. A pessoa não age mais conformada a uma ordem externa; age utilizando seus próprios recursos, suas competências e aptidões cognitivas. Não vai ter mais medo da culpa, pois ficará apavorada com o fracasso. O nosso mundo significou o deslocamento normativo da culpa para a responsabilidade. O indivíduo começou a sentir o peso da liberdade e da soberania da individualidade. Estamos em plena radicalização da modernidade; estamos na pós-modernidade. Estamos no mundo da depressão!
Enfim, Emile iria mandar pastar todos os construtivistas da pedagogia...
Artur Perrusi
Pessoalmente, acho os textos de Emile relativos à educação um misto de ciência acadêmica com ideologia. Seu intervencionismo moral seria bastante visível. Numa outra obra (Educação e sociologia), Emile afirmou que a educação era a socialização metódica da nova geração. Tal conceito de educação gerou um aporte teórico fecundo que, inclusive, influenciou bastante Piaget. Assim, cada geração deve socializar-se a partir de modelos culturais transmitidos pela geração precedente. Contudo, ao contrário de Piaget, que percebe a socialização como uma construção, Emile apreende a socialização do ponto de vista de uma transmissão do espírito da disciplina. O texto analisado é, digamos assim, uma apologética da disciplina.
Durkheim tenta oferecer uma base "natural" à disciplina ao defender que o homem vive sob determinadas condições ambientais, limitando as suas possibilidades de ação. Para ele, o ser humano precisa adaptar tais limitações às suas necessidades, e isso requer um acordo disciplinar entre a natureza e o homem. Assim, a disciplina seria útil não somente no contexto dos interesses da sociedade e suas formas de cooperação, mas também para o bem-estar do próprio indivíduo. A disciplina é o controle voluntário dos desejos, e tal controle é fundamental para alcançar a felicidade. A formação da personalidade teria como base justamente o controle de si e a disciplina.
Nesse escrito, Durkheim redefiniu a natureza da coerção moral, diminuindo, digamos assim, sua "externalidade". Relacionou a moral à obrigação e ao dever. A coerção moral seria um jogo entre a obediência e a adesão voluntária a um dever. Convenhamos, uma conceituação de coerção bem mais interessante do que aquela encontrada na Da Divisão do Trabalho Social. Aqui, considerando a obediência e a adesão voluntária, pode-se conectar o poder restritivo das normas com a "autonomia" da ação subjetiva. Creio que o cabra tenha, de fato, realizado tal conexão com uso da noção de ritual (um uso ainda repleto de defeitos, vale dizer) na sua obra As formas elementares da vida religiosa.
Emile é um defensor das chamadas liberdades positivas: a liberdade só pode ser viabilizada, se enquadrada nas leis. Por isso, o indivíduo só pode ser livre através da disciplina moral. Nesse sentido, ele seria contra o utilitarismo (Bentham) e as visões anarquistas da liberdade (apologia da liberdade negativa). Sem regras, não há moral, e, como a moral é o campo da liberdade, para usar uma visão kantiana, a liberdade precisa estar formatada por normas de conduta. A moral é fundamental à coesão social, e a educação é o demiurgo da moral. Emile justifica a racionalidade da disciplina, defendendo sua relação com a emancipação e a liberdade humanas: a disciplina é o meio pelo qual o homem realiza sua natureza — aqui, Emile é um sintoma de toda a querela disciplinar, tão bem analisada por Foucault. Contudo, sendo histórica a constituição da natureza humana, a disciplina muda quando muda a constituição do homem, transformando-se também os modos pelos quais a disciplina é introjetada no ser humano — por exemplo: a solidariedade mecânica envolve um modo disciplinar diferente da solidariedade orgânica.
E, claro, disciplina sem autoridade é uma contradição flagrante. Por isso, as regras morais precisam ser investidas de autoridade. Não há subversão nesse mundo disciplinar? Sim, quando há a necessidade de substituir-se velhas regras caducas por outras — Jesus e Sócrates representariam uma quebra de regras, mas não no sentido da anomia e sim de um novo modo disciplinar. O mundo moral de Durkheim, de fato, requer a disciplina. Ora, na sua época, o controle do corpo passa pelo controle da "alma". Um mundo aonde a tradição vai aos poucos perdendo sua força normativa, dissolvendo-se no "desencanto do mundo".
Qual seria o paradigma emocional da disciplina? Repressão sexual, conflito e culpabilidade. A disciplina moral exige a culpa, pois a culpabilidade lembra sempre o vínculo com o passado, e o passado é a lembrança de regras e normas de conduta; exige o conflito, pois sem ele como tomar consciência da tentação? É o mundo da histeria, psicopatologia-mor da época de Emile. A política pedagógica baseada na disciplina criou personalidades fortes, mas também uma clientela assídua para Freud.
Durkheim ficaria horrorizado com o nosso mundo. Se leu realmente Nietzsche, deve ter ficado preocupado. Nosso tempo é a época do indivíduo sem disciplina! O duo permissão-proibição escafedeu-se: é proibido-proibir! O individualismo radicalizou-se, e a disciplina foi trocada pela decisão e pela iniciativa pessoais. A pessoa não age mais conformada a uma ordem externa; age utilizando seus próprios recursos, suas competências e aptidões cognitivas. Não vai ter mais medo da culpa, pois ficará apavorada com o fracasso. O nosso mundo significou o deslocamento normativo da culpa para a responsabilidade. O indivíduo começou a sentir o peso da liberdade e da soberania da individualidade. Estamos em plena radicalização da modernidade; estamos na pós-modernidade. Estamos no mundo da depressão!
Enfim, Emile iria mandar pastar todos os construtivistas da pedagogia...
Artur Perrusi
6 comentários:
Afoito! Invade a seara da colega Hamlin, insulta o prédio do CFCH (cuja beleza exótica, estranha, é algo indiscutível) e ainda chama Durkheim pelo primeiro nome... O que resta esse moço desrespeitar? Jonatas
Aaah, vosmecê está vivo! Ufa! De repente, sentia eremofobia sem a presença dos meus colegas.
Aqui, na UFPB, tudo é excessivamente plano e linear. Imagine, nenhum lugar para um suicídio. Como produzir conhecimento sem estimular a pulsão de morte? Comer rubacão?
Por motivos misteriosos, sempre achei engraçado uma figura vetusta, ainda mais com um nome como "Durkheim", tivesse como primeiro nome... Émile
Invade a minha seara? E eu tenho seara?
Basta a gente passar uns dias viajando que o caos se instala neste Cazzo. Jonfer, você esqueceu de falar das mulheres. O danado fala mal do CFCH, do PPGS, chama Durkheim de Émile e ainda exclui as mulheres.
A palavra de ordem para você é jejuvy, Arture: um método de suicídio usado pelos guarani-kaiowá, especialmente concebido para o enforcamento em lugares baixos. Depois te mando as instruções, só para estimular sua produção intelectual.
Mais tarde, comento o artigo. E aproveito para mudar o foco dessa discussão mórbida que tem se apoderado do Cazzo. The horror, the horror!
Aaah, vc também está viva. Sinto-me melhor agora. Espero ansiosamente os detalhes do método "jejuvy" dos guarani-kaiowá. Acho que, com isso, volto a discutir Habermas, embora ache que discuti-lo leve ao suicídio ou a morte cerebral sem muito esforço, convenhamos.
E Jonfer (meu esófago quase se rompe de tanto rir) não falou das mulheres...
Por falar em mulheres, tenho uma entrevista com Gayle Rubin feita por Judith Butler. Caso tenha tempo, tento resenhá-la (ela é longa). É bem interessante.
abraço e beijo aos vivos!
O entendimento de "liberdade negativa", como está no texto, é exatamente o oposto da definição dada por Isaiah Berlin. Ou interpreto mal?
Abs,
Eduardo.
Eduardo, vc tem toda razão. Fui agora olhar o "dois conceitos de liberdade" de Berlin; a liberdade positiva é aquela que é enquadrada pela lei -- liberdade para; enquanto a liberdade negativa é a liberdade contra.
Valeu! Farei a modificação.
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