terça-feira, 13 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não civilizados (terceira parte)


Perfis de Criminosos, segundo Lombroso

A circulação de Corpos Negros

Na história da teratologia, Ambroise Paré é considerado um divisor de águas entre o pensamento medieval e a cultura renascentista. Janis Pallister, tradutor para o inglês do célebre Des monstres et prodiges, chegou a afirmar que o empirismo de Paré, no que concerne ao surgimento de monstruosidades, sua ênfase nas causas, no fenômeno da reprodução, torná-lo-iam um “moderno” na Querela dos Antigos e Modernos - o que, a meu ver, é um claro exagero. Paré é um homem dividido entre o compromisso de produzir manuais para seus pares cirurgiões em língua laica, de difundir, compartilhar conhecimento, e mesmo de definir critérios empíricos para qualificá-lo, e, por outro lado, concessões à autoridade da tradição - quer essa autoridade venha de Aristóteles, Hipócrates, Plínio ou de um digno funcionário do Conde Fulano de Tal. A lógica que orienta a escrita de Monstros e Prodígios é classificatória. Todos e qualquer monstro pertenceria a um de quatro domínios: terra, água, ar ou fogo (Pallister in Paré, 1983, p. xxvi).

Quanto à sua causa, os monstros seriam de vários tipos, entre os quais, destacamos: “determinados pela glória de Deus”, “por sua cólera”, “pela quantidade de sêmen” (demasiada ou escassa), “pela imaginação” (feminina, sempre), “postura indecente da mãe”, “hereditariedade”, pelo ardil de Demônios ou Diabos, “pelo artifício de mendigos”. Esse último caso merece uma nota especial, visto que segundo uma lógica classificatória que estivesse mais próxima do conhecimento científico moderno ele seria desprezado. Ora alguém que finge lepra ou ter três braços, ou seja, alguém que consegue esse efeito por fraude, dificilmente seria classificado como monstro, mas apenas como impostor. Paré não vê aqui uma contradição: trata-se de um impostor, mas ao mesmo tempo precisa ser classificado no rol dos monstros por aparecer diante de todos como tal. Ao nos depararmos com o princípio de organização de Monstros e Prodígios, difícil não lembrar de As Palavras e as Coisas, daquilo que Foucault julga como um passo na direção de uma episteme moderna, ou seja a preocupação com a taxonomia, de classificar os seres a partir de suas similitudes. Difícil também deixar de citar o delicioso texto de Borges com o qual Foucault abre aquele livro.

“Esse texto cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde será escrito que ‘os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas” (Foucault, 2002, p.x)


Assim, podemos dizer a respeito de Monstros e prodígios que, em meio às explicações do demonólogo, do católico convicto, do moralista, é possível perceber a tentativa de explicação que pretende ser objetiva. Ora, como veremos, a preocupação com objetividade, com o teste empírico, não é antídoto para a violência requerida pela própria prática científica. Objeto de conhecimento obtido metódica e empiricamente ou legitimado pela autoridade da tradição, a mulher tem sempre um papel central na reprodução da monstruosidade, embora, diferentemente da visão que predomina no final da Idade Média, Paré não acredita que o monstro seja sempre fruto do pecado (Ver Kappler, 1994, 360).

“Os antigos também observaram através de longas experiências que a mulher que concebeu durante suas regras engendrará aqueles propensos à lepra, escorbuto, gota, escrófula, e mais, ou sujeitos a mil doenças diferentes: tanto mais porque a criança concebida durante o fluxo menstrual nutre-se e cresce – estando no ventre de sua mãe – do sangue contaminado, sujo, e corrupto [...]”. (Paré, 1983, p. 5)


Em um post anterior, afirmamos que, com o declínio do feudalismo, diante da evidência da circulação de corpos considerados negros, monstruososos, corpos estrangeiros transformados em mercadoria, a vontade classificatória, ou seja, de poder perceber o lugar preciso em que cada coisa pertence, é em princípio reforçada, mas termina por se enfraquecer - e esse enfraquecimento significa a consolidação do pensamento científico moderno e sua inserção nas estratégias de poder do capitalismo. O argumento é: o pleno desenvolvimento do capitalismo não pode operar confortavelmente a partir da noção de um lugar próprio para todos os seres, mas a partir da plena circulação dos corpos, ou seja, a partir da idéia de um espaço vazio em que tudo possa ser trocado. Evidentemente, as pressões desse tipo de circulação demandam formas de controle político bastante específicas. A taxonomia pode ser entendida a partir dessa necessidade.

Em A Mind of its Own. A cultural history of the penis, David Friedman nos conta da reação dos primeiros aventureiros ingleses ao pisar solo africano diante de uma natureza exuberante, dificilmente comparável aos padrões estéticos europeus. Uma parte da natureza do continente africano chama particularmente a atenção de aventureiros como Richard Jobson. Em 1623 ele reconta de sua experiência de exploração do Rio Gâmbia, na África ocidental. “Os olhos desse cavalheiro quase saltaram de suas órbitas anglo-saxãs quando seu barco foi abalroado por um hipopótamo, e Jobson ficou igualmente perplexo diante da visão de um formigueiro mais alto que a maioria das casas de Londres”. Tudo isso, de fato, parecia suficientemente surpreendente.

“Mas foi uma outra exibição de vida selvagem local que abriram ainda mais seus olhos. ‘Os Senhores Negros desse país, Jobson escreveu dos nativos da tribo Mandingo que ele encontrou dos dois lados do rio, ‘são dotados de membros tão colossais que se tornam um estorvo para eles’” (Friedman, 2001, p. 103).


Um certo Dr. Jacobus Surtor, algumas décadas depois de Lord Jobson teve a oportunidade de encontrar nos sudaneses exemplos de uma máquina ainda mais “aterrorizante”, mais próxima do pênis de um “jumento” que de um “ser humano”. O pênis do africano foi objeto de curiosidade não apenas de exploradores, mas da investigação “de cada uma das escolas de anatomia de Londres” (Ibid, p. 105).

O negro circula pela Europa como escravo, como mercadoria, e como possuidor de perigosas máquinas de reprodução. E essa circulação significa, por vezes, literalmente castração, ou seja, a circulação de membros amputados como curiosidade científica. A ciência constrói canais através dos quais esses objetos de medo e admiração, de horror e de fascinação, circulariam de modo seguro: em jarras próprias à observação. Além disso, ela constrói um discurso que pavimenta esse trânsito. O anatomista Edward D. Cope escreve no século dezenove que “o cérebro maior do caucasiano prova sua superioridade intelectual e status civilizado, mas o maior pênis do negro prova sua inferioridade intelectual e selvageria inata” (Friedman, 2001, p. 106). Esse tipo de discurso será repetido à exaustão no século XIX por cientistas como Gobineau, Lombroso, Galton.

Bem antes, no entanto, na History of Jamaica, de 1774, um certo Edward Long observa: “Eu não penso que um marido oragotango desonre uma fêmea hotentote” (Ibid, p. 112). Em tom menos sisudo, por essa época, encontramos o seguinte depoimento de Bocage, fascinado por um certo e bem dotado negro Ribeiro:

“Ações famosas do fodaz Ribeiro,
Preto na cara, enorme no mangalho,
Eu pretendo cantar em tom grosseiro,
Se a musa me ajudar neste trabalho:
Pasme absorto escutando o mundo inteiro
A porca descrição do horrendo malho,
Que entre as pernas alberga o negro bruto
No lascivo apetite dissoluto.
............................................
Em Tróia, de Setúbal bairro inculto,
Mora o preto castiço, de quem falo;
Cujo nervo é de sorte, e tem tal vulto,
Que excede o longo espeto de um cavalo:
Sem querer nos calções estar oculto,
Quando se entesa o túmido badalo,
Ora arranca os botões com fúria rija,
Ora arromba as paredes, quando mija”.

O fodaz Ribeiro é tosco, sujo, descomunal, pura potência sexual. O que aqui surge como grotesco, não deixa de denotar fascinação e inveja. Foi necessário muita explicação científica para que esses sentimentos fossem anestesiados pela objetividade científica: a um ser mais próximo da natureza, ou seja, mais próprio de um animal, um jumento, um orangotango, cai bem tamanha enormidade entre as pernas; a um ser da razão, a um ser evoluído, seria mais adequado um pênis mais modesto e um crânio mais desenvolvido. Nossas ciências sociais nascentes não podem deixar de depor a esse respeito. Assim, as considerações de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala acerca da aptidão civilizadora proativa do branco envolvem observações acerca do tamanho de seu pênis em relação ao do escravo índio – nesse caso, todavia, com desvantagem para os segundos. No contexto, fica claro o sentido da observação freyreana: a civilização nos trópicos exigiu a energia sexual do branco português; sem ela, a ocupação do litoral teria sido impossível.

"Segundo alguns observadores, entre certos grupos de gente de cor os órgãos genitais apresentam-se em geral menos desenvolvidos que entre os brancos; além do que, como já foi dito, os selvagens sentem necessidade de práticas saturnais ou orgiásticas para compensarem-se, pelo erotismo indireto, da dificuldade de atingirem a seco, sem o óleo afrodisíaco que é o suor das danças lascivas, ao estado de excitação e intumescência tão facilmente conseguido pelos civilizados. Estes estão sempre prontos para o coito; os selvagens, em geral, só o praticam picados pela fome sexual. Parece que os mais primitivos tinham até época para a união de machos e fêmeas". (Freyre, G. Casa Grande e Senzala, p. 102)



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(por editar)
Jonatas Ferreira

7 comentários:

Anônimo disse...

Não é interessante como um pênis grande pode se transformar em um signo de feminilidade? Ah, a ciência e sua lógica impecável...

Le Cazzo disse...

E agora a bola está com você... Próximo post a história de Sartjie Baartman? Jonatas

Anônimo disse...

yeah, yeah. Mas só depois que eu terminar de corrigir minhas provas. Senão, meus alunos comem o meu fígado.

A gente pode resolver o problema convocando Arture para o próximo post. Que tal? :)

Anônimo disse...

Jonfer,

Gilberto Freyre tem uma visão essencialmente contraditória da sexualidade do negro e que é compatível com a idéia de feminilidade que se encontra, por ex, nas diversas representações de Afrodite. Às vezes um amor "puro", "ideal", às vezes hiper-sexualizado. O homem africano, como o indiano, o chinês e o japonês são todos representados a partir desta ambiguidade tipicamente feminina no discurso colonialista.

Acredito que isto aponta para uma pista importante na passagem de uma noção de masculinidade (européia) típica do amor cortês (D. Quixote seria o representante máximo?) para o amor moderno, ligado ao corpo e ao sexo, mas que mantém a idéia de razão, de controle emocional etc.

Bjs

Le Cazzo disse...

E a tal referência??? Beijo, Jonatas

Anônimo disse...

Preciso pegar com Heraldo. Sei que ele tem o tal livro que faz uma sistematização da representação de negros, judeus e portugueses em G.F.

Bjs

Anônimo disse...

LIXO MENTIROSO E FASCISTA!!!