terça-feira, 20 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não-civilizados



A Vênus Hotentote (parte 2)

A primeira mirada na Vênus

Embora nos últimos anos Sara Baartman tenha se tornado objeto de um grande número de artigos, romances e até documentários, sabe-se pouco sobre ela. A maioria das informações vem de artigos de jornal, de relatórios “científicos” daqueles que a examinaram e de autos de um processo no qual esteve envolvida. Como enfatiza Anne Fausto-Sterling (1995: 28), isto aponta para a construção social de sua identidade a partir de “marcas históricas escritas da perspectiva de uma cultura dominante” e que não leva em conta a perspectiva da própria Baartman e de seu povo. As fontes diferem, por exemplo, em relação a sua data de nascimento e de sua morte. Diversos autores afirmam que ela nasceu em 1789 ou 1790 e que tinha entre 19 e 20 quando chegou à Inglaterra, em 1810 (ver Blackledge, 2003). Outros, ainda, entre eles o próprio Cuvier, afirmam que ela tinha 28 anos quando faleceu em Paris, no final de 1815, enquanto a inscrição da caixa em que ela foi exibida no Musée de L’Homme, que ela morreu aos 38 anos (Fausto-Sterling, 1995). O que é certo, no entanto, é que chegou à Inglaterra em 1810, trazida por Alexander Dunlop, médico de um navio inglês que exportava espécimes da fauna, flora e nativos das colônias inglesas. Como Baartman chegou às mãos de Dunlop já não é tão certo.

Acredita-se que Dunlop a tenha comprado de Peter Cezar, um fazendeiro holandês que habitava próximo à Cidade do Cabo, embora não existam evidências que comprovem que ela tenha sido vendida e não acompanhado Dunlop por livre e espontânea vontade. De fato, dada a subjugação sistemática a que seu povo foi submetido por holandeses e ingleses, não é impossível que ela tenha partido para a Europa voluntariamente, em busca de um futuro melhor e diante de promessas de dinheiro fácil. Baartman passou a trabalhar para Peter Cezar depois que seu pai, um pastor de animais, foi morto. Acredita-se, ainda, que ela tenha tido pelo menos um filho. Seu status de escrava não é comprovado, mas foi da família Cezar que recebeu o seu nome, cujo diminutivo Saartjie (pronuncia-se Sar-qui), “ou pequena Sara em africâner” (Gould, 2004: 272), era um tratamento comum dispensado aos escravos e aos negros em geral, ao atribuir a eles o status de crianças (Qureshi, 2004: 235).

A nação hotentote estava oficialmente sob a guarda do governador britânico no Cabo da Boa Esperança “em razão do seu estado de imbecilidade geral” (Kirby apud Fausto-Sterling, 1995: 29) e suspeita-se de que Dunlop tenha se aproveitado de seu status para conseguir autorização para sua exportação da mesma forma que conseguia autorização para a comercialização de plantas e animais exóticos (Qureshi, 2004). Segundo Stephen Jay Gould, no entanto (2004), foi Hendrick Cezar, irmão de Peter Cezar, que conseguiu a documentação necessária para levá-la à Inglaterra e a permissão foi concedida pelo Governador Geral da Província do Cabo, Lord Caledon, que arrependeu-se mais tarde, ao compreender plenamente os objetivos da viagem.

Com a autorização em mãos, Dunlop leva Baartman à Inglaterra, juntamente com um couro de girafa. Ao chegar lá, oferece-a a William Bullock, colecionador de produtos exóticos trazidos das colônias e, mais tarde, proprietário do Salão Egípcio, um museu localizado no número 225 da rua Piccadilly, Londres. Bullock recusa a oferta e Baartman é então oferecida ao mesmo Hendrick Cezar que Gould afirma ter conseguido a autorização para levá-la para a Europa. Pouco se sabe dele, mas alguns autores sugerem que era ele o showman responsável pela exibição pública de Baartman no próprio Salão Egípcio, dado que o nome é holandês e sabe-se que seu guardião falava com ela em holandês durante as apresentações (Kirby apud Qureshi, 2004).

A exibição de Sara Baartman não tinha nada de excepcional se considerarmos que a exibição de curiosidades humanas, objetos e animais exóticos era comum na Inglaterra. Anões, gigantes, mulheres barbadas, negros, indígenas, porcos falantes, animais monstruosos e raros compunham a estranha fauna. De fato, os shows de anomalias (chamados “freak shows”), zoológicos humanos e animais, museus, feiras e circos faziam parte das possibilidades de entretenimento oferecidas nas cidades européias. Alguns desses shows eram intinerantes e viajavam pelas pequenas cidades do interior. Estas formas de entretenimento tornaram-se um dos principais veículos para a criação de visões específicas acerca um mundo não-branco (Fausto-Sterling, 1995).

Foi neste contexto que, pouco depois de sua chegada, Baartman foi exibida no Salão Egípcio, onde o público poderia observá-la em grupos de no mínimo 12 pessoas, acompanhados por uma mulher, “se requerido”, ao preço de 2 xelins por cabeça. A propaganda para o show enfatizava ainda que ela possuía formas grandemente admiradas por seus compatriotas e que sua roupa, muito apertada e no tom de sua pele, dava a impressão de que ela estava nua. Além disso, usava contas e penas de avestruz, elementos associados à sua ancestralidade africana, e, ocasionalmente, tocava um instrumento de uma corda só. Baartman era exibida ao lado de outras curiosidades humanas: “o menino com pintas; o elegante anão, conde Boruwaski; o esqueleto humano; Daniel Lambert, um homem de 36 anos pesando mais de 50 stones [ou 300kg); a senhorita Crackham, uma jovem medindo apenas 22,5 polegadas [cerca de 57 cm], cujo nome artístico era ‘a Fada Siciliana’.” (Qureshi, 2004: 236-37).

O show do qual Baartman era atração estabelecia uma relação íntima e direta entre as noções da fêmea selvagem, por um lado, e de uma sexualidade perigosa e incontrolável, por outro. No início de sua apresentação, encenada em uma plataforma, ela era conduzida por um treinador ou carcereiro (possivelmente Hendrick Cezar) que a ordenava a sair e entrar em sua jaula, sentar-se e levantar-se. A imagem de sua natureza selvagem e perigosa era ainda enfatizada à medida que Baartman balançava-se para frente e para trás em sua jaula, como um animal selvagem (Fausto-Sterling, 1995). Um freqüentador da cena do entretenimento londrina, o comediante Charles Matthew (apud Qureshi, 2004: 236), afirmou após sua visita a Baartman:

[Ela estava] rodeada por muitas pessoas, algumas, mulheres! Uma a beliscou; um senhor a espetou com sua bengala; uma senhora se utilizou de sua sombrinha para ter certeza de que tudo era, como ela chamou, ‘natural’. A pobre criatura suportava esses ataques desumanos com uma indiferença solitária, exceto após algumas provocações, quando ela parecia inclinada a se ressentir da brutalidade... Nessas ocasiões, era necessária toda a autoridade do treinador para subjugar seu ressentimento.

O que tornou a exibição de Sara Baartman tão especial? Afinal de contas, ela era apenas mais uma das monstruosidades exibidas em Londres. Parte da explicação é que ela era mulher. Embora Londres tivesse uma população negra substancial para a época (estima-se em cerca de 20.000 o número de negros residentes em Londres em 1764 e o censo de 1801 registra uma população total de 958.863 habitantes naquela cidade), a grande maioria dos ex-escravos eram homens (Qureshi, 2004: 240-41). Mulheres, especialmente Khoisans, não eram comuns. Mas isso não explica a história toda. De fato, Baartman só se torna um sucesso de público quando uma questão política vem à tona e seu caso passa a ser percebido a partir de uma outra perspectiva: a do movimento abolicionista inglês.

A escravidão foi abolida na Inglaterra em 1807, isto é, meros 3 anos antes da chegada de Baartman, tendo perdurado até 1833 nas colônias inglesas. Os anos que se seguiram à abolição na Inglaterra correspondem ao período em que o movimento anti-escravagista estava reunindo forças para estender a abolição para as colônias (London Sugar & Slavery S/D) e uma de suas estratégias políticas consistia em criar uma imagem unitária do negro que apagava as diferenças entre os diversos povos (Qureshi, 2004: 241). Certamente que Baartman era diferente: sua caracterização como hotentote (o que, como vimos, aponta para um ethos específico, de acordo com a percepção dos ingleses do século XVIII), seu tamanho diminuto, sua esteatopigia e a forma de sua genitália (objeto de debate desde o século XVII) apontavam para características específicas que não eram compartilhadas pelos ex-escravos que habitavam as cidades inglesas. Não é, portanto, evidente que ela pudesse ser identificada como membro de um mesmo grupo (negros) apenas a partir da cor de sua pele. Mas foi justamente isso que aconteceu. Um membro de uma das diversas organizações abolicionistas que atuavam na Inglaterra do início do século XIX, a Associação Africana, assistiu uma das performances de Baartman, que descreveu da seguinte forma:

Ao receber a ordem do carcereiro, ela saiu... A hotentote foi apresentada como um animal selvagem, e foi-lhe ordenado que andasse para trás e para diante, e que saísse e entrasse na jaula, mais como um urso treinado do que como um ser humano. (citado em Gould, 2004: 273).

Em 12 de outubro de 1810, o jornal inglês Morning Chronicle publicou uma carta de denúncia enviada por “um cidadão inglês” que acreditava que a exibição de Baartman era “contrária a todo princípio de moralidade e ordem” na medida em que relacionava “ofensa à decência pública com a mais terrível das situações, a escravidão”. A resposta de Hendrick Cezar veio na forma de duas cartas, onde enfatizava que ela tinha o mesmo direito de se exibir para ganhar a vida que um “gigante irlandês ou um anão” (citado em Qureshi, 2004: 238). O caso acabou na justiça e os abolicionistas, que se auto-proclamaram protetores de Baartman, argumentaram no tribunal que a exibição era indecente e que ela estava presa contra sua vontade. Juntamente com a Associação Africana, os abolicionistas tentaram repatriar Baartman para sua terra natal. Questionada em holandês perante o tribunal, ela afirmou que não sofria abuso sexual, que foi para Londres por livre e espontânea vontade, que compreendia perfeitamente bem que haviam lhe prometido metade dos lucros e que tinha até dois negrinhos para servi-la, mas que gostaria de roupas mais quentes (Gould, 2004; Fausto-Sterling, 1995). Ao final, a corte decidiu em favor de Hendrick Cezar quando este apresentou um contrato (possivelmente forjado) entre Baartman e Alexander Dunlop (Qureshi, 2004).

Assim, o show continuou e foi exibido por outras cidades inglesas e irlandesas até cerca de 1814, quando Baartman deixou de ser uma novidade e foi para Paris, onde passou a ser exibida pelo criador de animais S. Réaux. Sua temporada em Paris, que dura até sua morte em 1815, constitui o que chamei de segunda mirada na Vênus e que será o tema do próximo post.

Cynthia Hamlin

6 comentários:

Le Cazzo disse...

Ôba! Aguardo ansioso. Beijos, Jonatas

mester disse...

eu tb!
bjus
Ester

Le Cazzo disse...

Ester! Seja bem-vinda!

Cynthia

asadebaratatorta disse...

Gente, esses textos de vcs estão altamente publicáveis. =P

Parabéns ^^

Anônimo disse...

obrigada prof.! na verdade já estou aqui há muito tempo...leio o cazzo semanalmente !:P
bjus
Ester

Anônimo disse...

Your blog keeps getting better and better! Your older articles are not as good as newer ones you have a lot more creativity and originality now keep it up!