quinta-feira, 15 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não civilizados (tem mais)



Mármore da Afrodite Calipígia, Museo Archeologico Nazionale, Nápoles

A Vênus Hotentote (parte 1)

Neste post, encomendado por Jonatas a facão, chantagem emocional e outros métodos academicamente pouco ortodoxos, farei um breve relato sobre Sara Baartman, mais conhecida como a Vênus Hotentote. A idéia é que ela pode representar um estudo de caso interessante para ilustrar a constituição de um discurso civilizador que atinge sua forma mais perfeita de justificação com a emergência das ciências biológicas. Aqui, vale um adendo. Embora reconheça uma dimensão ideológica no discurso científico, acredito que sua abertura intrínseca à crítica ainda o torna superior a outras formas de discurso que pretendem algum compromisso com o real. Neste aspecto, continuo ultra-Iluminista. Nada de identificações pós-modernas entre ciência, literatura, religião e bruxaria, portanto. Às vezes, acredito que esta visão é compartilhada por Jonatas e, neste sentido, pode ser que nossas reflexões se complementem.

Esses prolegômenos, confesso, fazem parte de um mecanismo de auto-convencimento que aciono sempre que sinto certo, como diria... pânico diante de uma tarefa que me é confiada. Jonatas escreve umas coisas difíceis que quase sempre acabam me convencendo contra a minha vontade. Tenho horror quando ele faz isso. Além do mais, dá um medo danado de que ele me arraste para o armário onde, vez por outra, veste sua fantasia de pós-moderno. Se alguém notar que ele está me arrastando para o armário, por favor, me socorram! Dito isto, vamos ao que interessa.

Quem foi Sara Baartman? Quando foi que esta mulher, uma negra de cerca de 1,37m de altura, saída das profundezas do que hoje corresponde ao território Sul-Africano, tornou-se objeto do olhar? Mais importante, como este olhar a constituiu como um ícone do colonialismo, do racismo, do sexismo? Uma pista importante nos é dada pelo próprio nome com que ficou conhecida: Vênus Hotentote. A junção dessas duas palavras poderia parecer um oxímoron, não fosse aquilo que Jonatas chamou em um post anterior de “a força ambígua do estereótipo”. Temos aí, na verdade, dois estereótipos em um só. Por um lado, a imagem da Vênus, a deusa do amor e da beleza (Afrodite, para os Gregos); por outro, uma concepção do que seria o povo mais selvagem, mais animalesco, mais aparentado com os orangotangos que povoava a imaginação dos europeus do século XIX. Uma piada de mau-gosto? Talvez. Mas como muitas piadas de mau-gosto revela repulsa e atração, fascinação e desprezo. Em suma, muito do que é necessário para capturar o olhar.

A riqueza da imagem de Afrodite reside em suas representações múltiplas do feminino. Em sua origem, era uma deusa da fertilidade e sua ação se estendia a toda a natureza, plantas, animais, seres humanos. Em seguida, torna-se a deusa do amor, de suas formas mais nobres às mais degradantes. A Afrodite Urânia (ou Celeste) representa o amor puro, ideal; a Afrodite Genetriz (ou Nínfia) presidia os partos; a Afrodite Hetaíra (ou Porné, ou Pandemós) era a deusa da lubricidade, do amor venal, patronesse das prostitutas (Guirand, 1935). Essas eram as principais formas em que era adorada na Grécia antiga. Mas existe uma representação particular da deusa que é especialmente intrigante: a Afrodite Kallipygus, ou Vênus Calipígia, a das belas nádegas ( de “kallos”, que quer dizer “beleza”, e “pyge”, nádegas). Adorada na Siracusa, na antiguidade clássica, tem sua representação mais famosa na forma de uma estátua de mármore romana (copiada de um original grego) e que se tornou conhecida ao ser adicionada ao Museu Real de Nápoles em 1802 (Baartman chega à Inglaterra em 1810). O catálogo do museu (http://www.sacred-texts.com/sex/rmn/rmn04.htm) nos dá uma idéia do poder de atração que a Vênus Calipígia tem exercido desde o século XIX, quando se encontrava no palácio Farnese, como propriedade do rei de Nápoles:

[A estátua] não é parte do gabinete de obras de arte privadas, mas é colocada em uma sala reservada, onde os curiosos só podem entrar sob o olhar vigilante de um guarda, embora nem mesmo esta precaução tenha evitado que as formas arredondadas que emprestaram à deusa o nome Calipígia tenham ficado cobertas com uma camada escura, que trai os beijos profanos que admiradores fanáticos imprimiam lá todos os dias. Nós mesmos conhecemos um jovem turista alemão tomado por uma paixão louca por este mármore voluptuoso; e a comiseração que o seu estado mental inspirou nos fez abandonar qualquer idéia de ridículo.

Como veremos mais adiante, uma das coisas que atraíam o olhar dos europeus a Sara Baartman era o que poderíamos chamar de suas virtudes calipígias. Em uma linguagem menos poética, o que se conhece como esteatopigia, ou uma hipertrofia das nádegas por acúmulo de gordura. Mas não era só isso que a ligava à Vênus. Uma das idéias implícitas nesta associação era a de que as mulheres de climas mais quentes tinham impulsos sexuais mais fortes, menos controlados, mais bestiais, do que as européias “devido à influência do passional planeta Vênus” (Blackledge, 2003: 141). Outra, intrinsecamente associada a ela (e que explica também a suposta natureza, ora hiper-sexualizada, ora de uma “frigidez feminina”, de homens negros, asiáticos e nativos das américas), é a identificação de terras descobertas pelos europeus como femininas, prontas a serem penetradas, exploradas, desbravadas e civilizadas.

O outro nome associado a Baartman, a Vênus, era Hotentote. O termo foi utilizado pelos colonizadores holandeses da África do Sul desde o século XVII como uma espécie de onomatopéia que descrevia os sons de clique característicos de alguns dialetos africanos, em especial, de grupos que se localizavam entre a Cidade do Cabo e a Namíbia. “Hot-en-tot” era um termo que significava “gago” e, segundo a definição do Oxford Dictionary, designa “alguém de cultura e intelecto inferior”. Isto é compatível com a visão européia, predominante até o século XVIII, que classificava os povos de acordo com graus distintos de civilização – algo que, como veremos, muda substancialmente no século XIX a partir da introdução do conceito de raça. Os próprios hotentotes, por seu turno, designavam-se Khoi Khoi, que significa “homens dos homens”. Cerca de sessenta anos após o estabelecimento dos holandeses, os Khoi Khoi, como uma cultura distinta e organizada, foram extintos, especialmente devido à varíola e à invasão holandesa de suas terras. Nos séculos XVIII e XIX, os europeus continuavam a se referir aos hotentotes, embora de maneira intercambiável com o termo “bosquímanos”. Para os antropólogos, entretanto, os bosquímanos ou Khoisan constituem um grupo fisicamente parecido, mas culturalmente distinto, que vivia próximo aos Khoi Khoi (Fausto-Sterling, 1995: 22). A caracterização de Sara Baartman, ora como hotentote, ora como bosquímana, está intimamente relacionada à substituição de uma classificação dos povos com base em graus de civilização por uma de bases raciais.

A incivilidade ou o barbarismo daqueles descritos como hotentotes aparece claramente nos relatos dos viajantes ingleses dos séculos XVII e XVIII. Em um site da universidade americana de West Chester, acerca da percepção dos ingleses do século XVIII sobre a África, podemos encontrar os seguintes relatos acerca dos hotentotes:

Seu barbarismo nativo e sua vida ociosa no deserto, juntamente com uma ignorância infeliz acerca de todas as virtudes, impõem sobre suas mentes toda forma de prazer cruel. Por meio de sua ausência de fé, de sua inconstância, mentira, engano, traição e preocupações infames com todo tipo de lubricidade, eles exercem sua vilania. (Holden, 2003)

Ou, ainda:

Eles têm o temperamento de animais selvagens(Ibid.).

E:

As mulheres podem ser distinguidas dos homens por sua feiúra(Ibid).

Neste período, portanto, percebe-se que algo que inicialmente designava um modo de falar passa a designar o caráter de um povo. De hotentote, passamos a hotentotismo, termo que serve de justificação às missões religiosas e outros projetos civilizatórios e exploratórios. Como afirmou um dos maiores poetas do romantismo inglês, Samuel Taylor Coleridge, “alguns hotentotes foram convertidos do hotentotismo por meio do trabalho piedoso da Sociedade Missionária” (Coleridge, 1850: 957).

Assim, é a partir dessas representações de uma Vênus hiper-sexualizada, por um lado, e de um povo que se encontrava na base da hierarquia civilizatória, por outro, que podemos compreender os olhares dirigidos a Baartman em sua chegada à Inglaterra, em 1810. Seu período inglês corresponde ao que chamarei aqui de a primeira mirada na Vênus, quando a politização do seu corpo apaga as diferenças específicas de seu povo à medida que ele é apropriado pelo movimento anti-escravagista inglês. A segunda mirada, que corresponde ao período que passou em Paris, refere-se ao olhar clínico dos cientistas da época, notadamente o de Georges Cuvier, um dos maiores anatomistas franceses do século XIX, conhecido como o pai da paleontologia. Por fim, a terceira mirada corresponde à dos movimentos sociais contemporâneos, que elevaram Baartman a ícone das lutas anti-colonialistas e a heroína nacional da África do Sul ao constituir objeto de uma intensa negociação entre os governos de Nelson Mandela e de François Mitterand, numa querela política que durou cerca de sete anos, a fim de que seus restos mortais fossem retirados do Musée de L’Homme, em Paris, e devolvidos ao seu povo.

(continua)

Cynthia Hamlin

7 comentários:

Anônimo disse...

Voilà! Isso faz um relativo bem ao meu ego, afinal, agora eu não sou mais uma complexada com a minha esteatopigia e recalcarei isso para o reeeeeesto da minha vida depois da sua explanação histórica! Por isso que eu adoro você, meu bem (e o meu futuro psicanalista irá odiar).

Ah, só como observação... A estátua não faria tanto sucesso se fosse chamada de “Vênus-da-bunda-linda” ou “Vênus Gostosa”. Ninguém gosta de pleonasmos, beibi. Então, apela-se para o oxímoron, como eu apelei no meu “pequeno infinito”. Imagina alguém te chamando de... hum... deixa eu ver...

Deixa! Esquece... É melhor eu nem inventar nada. Vai que eu me comprometo...

Adorei, Cys. Gosto muito quando você vem com textos desse tipo. São-me muito úteis, também. Há uns dias atrás, usei as informações que li aqui no cazzo, do Erik Satie, durante uma aula de TEP (Técnicas em Exames Psicológicos). E ainda fiz papel de culta... ha ha ha

Baisers, chérie.
G.

Le Cazzo disse...

É dada a largada, senhoras e senhores! Beleza!

E sobre entrar e sair de armários, minha posição é uma só: "não existe nada fora do humanismo", o que é minha paráfrase da famosa frase Derridiana. As coisas mais ingênuas e perigosamente humanistas são aquelas que acreditamos estar falando de algum lugar fora desta tradição. E claro que estou falando da única tradição que conheço: Ocidental. E também é claro que dentro dessa tradição, uma questão fundamental é entender a relação que se estabeleceu historicamente entre ciência e poder (afinal a Venus H. foi dissecada etc etc). De modo semelhante a Gadamer, também acredito que o método é o caminho para a certeza, mas não necessariamente para a verdade. E finalmente acho que a coisa mais fantástica do humanismo é perguntar-se coisas que acredito jamais poderão ser respondidas satisfatoriamente. Humano não é encontrar a certeza da resposta, mas não deixar de se emocionar e investir na pergunta. E nessa pergunta há um risco: toda vez que ela é respondida, alguém fica de fora. Beijos, Jonatas

Le Cazzo disse...

Outra coisa: disfarça, matém a compostura, finge que a gente não está nem aí, mas o CAZZO ultrapassou as 10000 visitas. ÊÊêê!! Jonatas

Anônimo disse...

Tá vendo? Já me convenceu de novo que tá no grupo dos anti-pós, presidido por Artur.

Êêêê! Dez mil! Daqui a pouco ficaremos ricos e poderosos!

Geninha, o que diabos você conseguiu fazer com Erik Satie numa aula de TEP? Essa eu queria ter visto...

Beijos

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Ha ha!
Meu bem, lembre-se que a plasticidade cerebral é uma beleza! Eu poderia falar de Erik Satie numa turma de gastronomia... (será?!) ha ha ha!

Mas, falando sério, muito fácil, Cys, falar de Erik Satie em TEP 2: aula sobre "Inteligências Múltiplas". Enquadrei o Excelentíssimo Senhor Satie na inteligência Matemática e, conseqüente, Musical, ratificando a afirmação de que, especificamente, esses dois tipos de inteligência são influenciadores um do outro. Primos próximos...

Simples assim! Sacou?

Beijos!

Le Cazzo disse...

Ótimo, Cynthia. A parte final do seu texto me lembrou aquele capítulo de Bhabha sobre o qual te falei. O estereótipo é sempre ambíguo e coloca a coisa mais ou menos assim: o negro, a negra, não pode ser civilizado, pois ele é essencialmente um dado da natureza, algo próximo ao animal; por outro lado, a tarefa do branco é tentar civilizar o negro, a negra. Jonatas