domingo, 3 de agosto de 2008

É Possível Democracia sem Debate Público?



Tem gente que tem uma capacidade de síntese fantástica. Luciano Oliveira é um caso desses. Imaginem que ele conseguiu resumir a teoria da ação comunicativa de Habermas em sete palavras. Sim, meus amigos e minhas amigas. Sete palavrinhas dão conta daqueles dois tijolões que servem de base para a sua teoria da democracia: “é conversando que a gente se entende”. E o resumo de Luciano ainda tem uma vantagem em relação à teoria de Habermas. Ele não pressupõe o consenso para o entendimento, apenas a abertura ao diálogo com base na exposição de pontos de vistas distintos e uma certa dose de crença na boa-fé das pessoas.

É justamente esta exposição de pontos de vista alternativos calcados na boa-fé que tem caracterizado um debate que venho acompanhando nos jornais do Canadá nos últimos dias. Isso me fez pensar sobre a qualidade da democracia brasileira. Explico. Talvez por uma dessas coincidências do destino, um mesmo tema, o aborto, tem sido objeto de debate nos dois países. No Brasil, a questão ressurgiu com mais força quando o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, sugeriu no ano passado que o aborto é uma questão de saúde pública e, como tal, sua descriminalização deveria ser debatida pela sociedade civil e pelo Estado. No Canadá, a questão ressurge quando, em primeiro de julho deste ano, a imprensa divulgou a lista dos indicados à maior honraria concedida pelo governo a membros da sociedade civil: a ordem do Canadá. Entre os 75 indicados, o médico de 85 anos, Henry Morgentaler.

Morgentaler é um judeu polonês sobrevivente do holocausto. Anti-Zionista declarado, recusou-se a emigrar para Israel após a Guerra e, para horror de sua família, aceitou uma bolsa de estudos para estudar medicina numa universidade da Alemanha. Como parte do acordo firmado após a Guerra, famílias alemãs deveriam alojar os bolsistas até o fim de seus estudos. Foi assim que Morgentaler formou-se em medicina e, nos anos de 1950, emigrou para o Canadá. Lá, juntou-se a um grupo humanista, o Humanist Fellowship of Montreal. Como representante do grupo, certa vez afirmou, perante um comitê do governo federal do Canadá, que acreditava no direito de todas as mulheres a um aborto seguro. Isso ocorreu em 1967, quando o aborto no Canadá era ilegal, exceto quando a gravidez colocava em risco a saúde da mulher. Seu pronunciamento virou manchete dos principais jornais do país e, a partir de então, dezenas de mulheres começaram a aparecer em sua clínica, implorando que ele lhes proporcionasse um aborto seguro. Diante da ilegalidade do ato, viu-se forçado a afirmar que, ainda que como médico pudesse fazê-lo, não o faria porque isso era contra a lei. Foi então que veio a reflexão. Em suas próprias palavras, “fui enredado em minha própria retórica. Senti-me como um covarde e um hipócrita” (citado no Globe and Mail, 18 de janeiro de 2003).

Em 1968, ele fez um aborto na filha de amigos e, no ano seguinte, fechou sua clínica de medicina familiar e abriu outra, onde passou a fazer abortos ilegais de maneira aberta. Chegou a ser preso e esteve envolvido em batalhas legais e ameaças por parte de diversos grupos, especialmente religiosos. Apesar disso, afirmou nunca ter acreditado que um júri popular o condenaria por um crime, o que se mostrou verdadeiro. Em 1970, quando foi preso pela primeira vez, foi considerado inocente por um júri composto de 11 homens e uma mulher. Quatro anos mais tarde, um grupo de juízes católicos de Quebec recorreu do veredicto e ele foi preso pela segunda vez. Foi absolvido nas duas outras vezes em que foi a júri popular. Em 1975, o governo de Quebec instituiu o que se conhece como a emenda Morgentaler, que estabelecia que o veredicto do júri popular não poderia mais ser revertido. No ano seguinte, o Partido Québécois determinou que a lei anti-aborto não seria mais aplicada na província de Quebec.

Mas as batalhas legais não pararam por aí. Em 1983, Morgentaler e mais dois colegas foram acusados por um tribunal de Ontário de efetuar abortos ilegais. Foram novamente absolvidos pelo júri popular. De apelo em apelo, o caso foi parar na Suprema Corte do Canadá (Globe and Mail, 18 de janeiro de 2003). Em 1988, a Suprema Corte determinou que a lei que restringia o aborto aos casos de risco de vida para a mãe era inconstitucional, pois violava o direito à “segurança da pessoa” previsto na Carta Canadense de Direitos e Liberdades. Desde então, não há uma lei que regulamente o aborto naquele país. A decisão de se submeter ou não a um aborto é considerada uma questão de foro íntimo e não precisa do aval de médicos, juízes ou quem quer que seja (Blogher – the community of women who blog. Disponível em : http://www.blogher.com/henry-morgentaler-awarded-order-canada-abortion-debate-re-opened).

A indicação de Morgentaler à Ordem do Canadá tem, no entanto, gerado um grande debate na mídia. De acordo com uma pesquisa de opinião desenvolvida em 2001, 46,6% dos canadenses eram favoráveis ao aborto, 37,6% eram contra e 15,8% não sabiam ou se recusaram a responder. Como se vê, esta não é uma questão consensual e o debate que se coloca hoje na mídia canadense é em que medida um defensor ardoroso de uma causa que divide de tal forma a opinião pública pode ser indicado a receber a maior honraria do governo Canadense. Curiosamente, embora diversos leitores tenham se manifestado francamente contra o aborto e os grupos pró-vida tenham aproveitado o caso Morgentaler para expor seus pontos de vista, em nenhum momento observei o debate pender para um retorno à sua criminalização. Pelo menos não nos meios de comunicação de massa. Por exemplo, a seção de sociologia do Globe and Mail (pois é, eles têm uma seção de sociologia aos sábados) tem publicado diversos artigos com depoimentos de mulheres que já se submeteram a um aborto. A idéia é que o tema deixe de ser um tabu e que “o estigma em torno do procedimento que não ousa dizer seu nome” possa ser olhado de frente e debatido de maneira aberta (Globe and Mail, 19 de julho de 2008). Só assim as mulheres (mas não o Estado) podem decidir o que fazer diante de uma gravidez não-planejada.

A idéia de botar a boca no trombone não é nova. Em 1971, quando o aborto ainda era crime na França, um grupo de artistas e intelectuais (dentre elas Simone de Beauvoir e Catherine Deneuve) escandalizou o país com o “Manifesto das 343”. Lá, declararam publicamente que já haviam feito um aborto. E algumas delas aparentemente nem tinham feito, como parece ser o caso de Beauvoir. Em 1972, a revista americana MS. Magazine publicou uma lista semelhante, composta de 53 mulheres. Em 2004, a ativista feminista Jennifer Baumgardner desenhou (e vestiu!) a camiseta com os dizeres “Eu fiz um Aborto” que ilustra este post e que hoje é comercializada pelas ONG´s Planned Parenthood e pela Women on Waves. Quem quiser comprar uma pode encomendar no site do Women on Waves: http://www.womenonwaves.org/article-444-pt.html.

No próximo post, algumas palavras sobre como o “debate” está se desenvolvendo no Brasil. Enquanto isso, deixo vocês com uma música da banda canadense Me Mom & Morgentaler.

Cynthia Hamlin


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