sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Testando o positivismo de Durkheim - parte II


O positivismo com face humana

Bem, continuo os testes. Tento, novamente, inferir situações que delimitariam o campo normativo do positivismo. Penso, assim, nas seguintes condições:

a) a defesa de uma continuidade entre a ciência natural e a ciência social;
b) a defesa de uma separação entre a ciência social e o senso comum ou, numa outra variante, entre a ciência social e a ideologia.

Acredito que as duas situações estejam imbricadas e, inclusive, implicam uma discussão sobre o status epistemológico da ciência social e sua relação com a objetividade — mais ainda: a defesa da objetividade leva, muitas vezes, à defesa da neutralidade científica. A primeira situação é mais imperativa a ponto de, caso defenda-se a continuidade entre a ciência natural e a social, dificilmente defender-se-á uma continuidade, por exemplo, entre o senso comum e a ciência social; já uma separação entre o senso comum e a ciência social não leva necessariamente a uma defesa da continuidade entre esta e a ciência natural.

A primeira situação envolveu um debate que, parece-me, teria uma relação mais próxima com o contexto filosófico alemão, principalmente a partir do momento em que Kant passou a ser, em detrimento de Hegel, a referência principal da sociologia clássica alemã. A escola neokantiana postulou explicitamente, se não a separação radical, pelo menos a distinção clara entre a ciência da natureza e a do espírito (geisteswissenschaften). A segunda situação pode ser considerada uma discussão francesa, embora o contexto gaulês implique as duas situações, tomando como referência Comte e a defesa de uma sociologia baseada nos métodos das ciências naturais e que vai de encontro ao senso comum.

Assim, para o bem ou para o mal, Durkheim enquadra-se nas duas situações, ou seja, é um positivista: tanto defendeu uma continuidade entre a ciência natural e a ciência social, especificamente a sociologia, produzindo analogias e utilizando raciocínios e conceitos vindos principalmente da biologia, quanto afirmou uma separação entre a sociologia e o senso comum ou, mutatis mutandis, entre o conhecimento sociológico e a ideologia.

No entanto, o positivismo de Durkheim possui uma série de nuances que vale a pena examinar. Ele, por exemplo, defendeu uma continuidade entre a ciência social e a natural, justamente para afirmar a sociologia como uma ciência específica e com um campo objetal próprio. Certo, várias vezes utilizou noções da biologia no estudo da sociologia, mas sempre argumentou que a sociologia é uma ciência legítima, com seu aparato conceitual próprio e seu objeto específico, irredutível aos demais: o fato social. Não apenas isso: argumentou que a natureza do fato social era diferente, donde a necessidade de uma ciência singular para estudá-lo. E, novamente, para especificar a natureza do fato social, precisou primeiro colocá-lo como uma coisa, isto é, como algo comum a todos os objetos científicos.

Assim, numa afirmação famosa, Durkheim define coisa
"como todo objeto do conhecimento que a inteligência não penetra de maneira natural, tudo aquilo de que não podemos formular uma noção adequada por simples processo de análise mental, tudo o que o espírito não pode chegar a compreender senão sob condição de sair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis para os menos visíveis e profundos. Tratar fatos de uma certa ordem como coisas não é, pois, classificá-lo nesta ou naquela categoria do real; é observar, com relação a eles, certa atitude mental. Seu estudo deve ser abordado a partir do princípio de que se ignora completamente o que são, e de que suas propriedades características, assim como as causas desconhecidas de estas dependem, não podem ser descobertas nem mesmo pela mais atenta das introspecções" (Durkheim, 2007: 21).
O que se nota nesse famoso parágrafo é o alargamento da noção de coisa a ponto de identificá-lo com todo e qualquer objeto. Durkheim não reificou o objeto e sim objetificou a coisa. Mas o objeto da sociologia tem uma particularidade: o fato social, como todo objeto de ciência, é coisa, mas uma coisa enquanto uma representação. Durkheim coloca explicitamente isso numa nota de rodapé:

"não é necessário afirmar que a vida social seja feita de algo mais do que representações; basta formular que as representações individuais ou coletivas não podem ser estudadas cientificamente senão sob a condição de serem estudadas objetivamente" (2007: 24).

Como não encontramos, nos seus escritos, afirmação alguma de que a vida na natureza precisa ser analisada também enquanto representação, deduzimos que é da natureza do fato social sua natureza representacional. Ora, embora afirme uma continuidade, a demonstração de que o fato social só pode ser estudado como uma representação coletiva revela uma descontinuidade entre a sociologia e a ciência natural. Enquanto Berkeley vai reduzir o ser, todo ser, à maneira pela qual a representação apresenta-se no espírito, Durkheim vai implementar essa redução na ciência sociológica.

Durkheim seria assim um idealista? Talvez, já que nas Formas Elementares... (1989) sua análise é acusada de cair num hiper-espiritualismo; contudo, há uma nuance aqui: as representações coletivas são reais, segundo Durkheim, tão reais como qualquer objeto natural, e são exteriores à consciência individual, e são eficazes na reprodução da ordem social. As representações coletivas são objetivas, dessa forma, e Durkheim, assim, seria um realista sociológico? Talvez, embora as representações coletivas sejam produzidas pela sociedade e esta é conceituada como um sujeito sui generis:

"mas se não podemos estar ligado pelo dever senão a sujeitos conscientes, agora que eliminamos todo sujeito individual, não resta outro objetivo à atividade moral além do sujeito sui generis formado por uma pluralidade de sujeitos associados de maneira a formar um grupo; não resta mais que o sujeito coletivo" (1970: 67).
Sujeito sui generis que é uma pessoa:
"se existe uma moral, um sistema de obrigações, é preciso que a sociedade seja uma pessoa moral qualitativamente distinta das pessoas individuais que a compõem e da síntese da qual ela resulta" (68 – negrito meu).
As representações coletivas seriam, assim, produções subjetivas de um sujeito sui generis: a sociedade? A objetividade das representações coletivas seria apenas relativa à consciência individual, em particular da do cientista social, já que lhe são exteriores e percebidas enquanto objetos, isto é, como coisas? Estamos diante de um idealismo que se transforma num realismo que desemboca, novamente, num idealismo? A sociedade tomaria consciência de si mesma através do estudo de suas representações realizadas pelas consciências individuais? Um ideo-realismo gnoseológico -- tomamos tal fórmula de Cuvillier (Durkheim, 2005: 12)?

Durkheim seria idealista como Descarte já que aposta na representação? Para Descarte, a representação é um fundamento do ser, pois seria através da representação que o ser aparece no espírito. A essência do ser é determinada a partir do pensamento. E, quando pensamos o ser, nós o pensamos através das representações. Assim, as coisas aparecem no espírito como reais e inscritas no ser por causa das representações. Durkheim concorda com isso? Sim e não. Sim, porque a representação é um critério do ser; não, porque a representação, vista como coletiva, e o ser, visto como social, aos quais se refere Durkheim, são "qualitativamente distintos" do ser e da representação individuais. As representações coletivas não estão inscritas no pensamento individual — justamente o contrário, pois lhe são exteriores. Durkheim opera um deslocamento da representação, inscrevendo-a no ser social e a tornando, do ponto de vista da consciência individual, uma determinação objetiva e exterior. O subjetivismo de Durkheim é, digamos assim, social e não propriamente ontológico, como o cartesiano. A essência do ser social é determinada pelas representações coletivas que estão, por sua vez, fora do pensamento (pelo menos do pensamento do sociólogo). Novamente, voltamos ao círculo entre o idealismo e o realismo.

Como, a partir da discussão acima, recolocar o positivismo de Durkheim? Num primeiro momento, a démarche durkheimiana afirma a continuidade entre a ciência natural e a ciência social para, num segundo momento, atestar uma descontinuidade, já que as coisas na natureza, ao contrário do que acontece na sociedade, não são vistas como representações. Desse modo, pode manter seu diálogo com a tradição comtiana e com a ciência natural, em particular a biologia, e afirmar, ao mesmo tempo, a sociologia como um novo campo científico.

Enfim, como é que fica a segunda situação, isto é, como ocorre, para Durkheim, a relação entre a ciência social e o senso comum? Ora, ao defender a especificidade e a cientificidade do campo sociológico, Durkheim pôde justificar a separação ou a ruptura entre a sociologia e o senso comum.

Mas deixarei tal discussão para a derradeira postagem.

Artur Perrusi
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DURKHEIM, Emile. Sociologia e filosofia. 2º Edição. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1970.
DURKHEIM, Emile. Formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulus, 1989.
DURKHEIM, Emile. Pragmatismo e Sociologia. São Carlos: Editora UFSC, 2005.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

3 comentários:

Anônimo disse...

Arture,

Interessante esta noção de ideo-realismo gnoseológico, que aponta para o fato de que Durkheim reconhece a realidade das idéias. Mas será que isto faria dele um idealista? E este suposto idealismo o colocaria em oposição ao realismo?

Bhaskar tem uma afirmação interessante sobre isto: mesmo os idealistas são realistas em algum sentido, já que acreditam na realidade das idéias. Acho que a questão relevante aqui é saber se Durkheim reduz a realidade à idéia. Não creio. Certamente ele não é um materialista, muito menos um fisicalista. Mas também não é um idealista, no sentido de reduzir a realidade às idéias que se têm dela.

Durkheim estabelece uma distinção importante entre a verdade de uma crença (sua existência na realidade) e a aceitação de uma crença como verdadeira. Isto aparece nas Formas..., assim como em sua crítica ao pragmatismo. Em sua crítica ao pragmatismo, ele se refere à idéia de que existe uma noção de verdade universal, independente do contexto e das concepções que os indivíduos têm da realidade. Assim, a verdade ou a falsidade de uma crença poderia ser estabelecida.

Nas Formas, a questão se complica um pouco, já que, em sua crítica a Kant, ele tenta demonstrar a origem social das categorias e, portanto, afirma que determinadas proposições só são verdadeiras contextualmente, de acordo com sociedades particulares. Mas parte do problema aqui é que Durkheim usa os termos conceito e categoria de forma intercambiável, de forma que às vezes se torna impossível diferenciar a verdade de uma crença e a aceitação de uma crença como verdadeira. Apesar disso, é possível, pelo contexto, saber se ele está utilizando o termo categoria no sentido kantiano ou como conceito.

Outra questão: se colocarmos a tensão na obra de Durkheim a partir da distinção materialismo x realismo, e não entre realismo x idealismo, isto não permitiria tratar as idéias como realidades objetivas?

Anônimo disse...

Eu não sei... De fato, eu não sei...

Por isso, achei habilidosa a noção de ideo-realismo-gnoseológico interessante, embora não concorde de todo. De todo modo, acho que a nossa série de artigos sobre Durkheim vem mostrando, no mínimo, que o cabra é bem complexo e... sinuoso.

Lerei a posição de Ivan Domingues ("epistemologia das ciências humanas") sobre o assunto (só li suas considerações sobre Weber) e verei se acrescenta mais alguma coisa ao debate. Bjs

Anônimo disse...

I inclination not concur on it. I assume polite post. Expressly the title attracted me to read the unscathed story.