Evidentemente, a indústria da saúde pode ser pensada nos mesmos termos. Janelle Taylor mostra o quanto uma cultura da ultra-sonografia, um procedimento hoje universal para as gestantes com algum tipo de acompanhamento médico, desenvolveu-se às expensas do que é considerado razoável pelas autoridades de saúde nos EUA. De um percentual de 36% de grávidas que recorriam ao diagnóstico no começo da década de 80, em caso de gravidez considerada de risco, os EUA chegam aos 90 com cifras em torno dos 80%. As justificativas para um uso tão massivo desse procedimento são bastante disputadas, mas a pressão da indústria da saúde é grande. Sabemos bem o que isso significa. Em artigo de 2006, Ana Cristina Fernandes e João Policarpo Lima, por exemplo, que o Pólo de Medicina do Recife estava (e não nenhum motivo para que ainda não esteja) super-dimensionado no que diz respeito à quantidade de equipamentos de que dispõe.
Em vista das dificuldades postas pelo excesso de capacidade e pelo endividamento acima do planejado, as unidades do Pólo, em geral, têm recorrido a estratégias que envolvem tanto a ocupação de espaços mais amplos, diversificando, em alguns casos, os serviços prestados, quanto a prática de concorrência predatória via, por exemplo, negociação de tabelas de preços com as operadoras de planos de saúde e estímulo, segundo alguns, a procedimentos mais diversificados de diagnóstico para gerar mais receitas, numa tentativa de transferir as dificuldades e se safar individualmente. Em outros casos, buscam também a articulação com profissionais médicos para a indicação de suas instalações para procedimentos cirúrgicos e de diagnósticos e ainda procuram atrair para seu negócio equipes médicas especializadas de competência reconhecida. Vale destacar que tais práticas terminam levando a conflitos e ao fechamento de unidades mais frágeis (Fernandes e Lima, 2006, p. 36).
É o tal efeito perverso da concorrência - o capitalismo é irracional, já dizia Marx. Se o meu concorrente tem o equipamento, eu devo ter um, mesmo que a cidade não precise. Mas se eu comprei, tenho que usar, tenho que pagar o investimento. Resultado: pressionam-se os médicos por mais exames. No nosso caso, a ultra-sonografia será utilizada quer a paciente necessite ou não.
O feto também se tornou objeto desse jogo de luz e sombra. Numa ultra-sonografia, por exemplo, ele tanto pode se tornar descartável (‘faça a ultra, pois se algo parecer errado, um aborto pode ser providenciado’), como um ser pleno (‘é fundamental você estabelecer um laço com o feto, e a imagem do seu desenvolvimento ajuda’). Mas aqui há muito mais por ser dito. Falemos por exemplo de Habermas, que questiona os critérios que cercam o diagnóstico genético pré-implantação e a porta que se abre para a seleção genética de seres humanos. Teremos o direito de escolher por nossos filhos e filhas algum traço de suas estruturas biológicas que, uma vez definido e materializado, não poderá ser alterado? Mas isso jogaria na lata do lixo uma série de princípios que foram ratificados depois dos anos 50 acerca de pesquisa com seres humanos (consentimento informado etc.).
Não sou muito habermasiano, acho que o filósofo é vítima dessa percepção de que há uma essência biológica na personalidade dos indivíduos – algo bem distinto daquilo que nos apresentava em sua teoria da ação comunicativa. Mas aqui é necessário fazer uma ressalva e justiça ao filósofo. Em O Futuro da Natureza Humana, Habermas diferencia casos em que há um conflito entre o direito da mulher em interromper uma gravidez indesejada e a seleção genética de um feto através do diagnóstico genético pré-implantação.
“Com a rejeição de uma gravidez indesejada, o direito da mulher à autodeterminação colide com a necessidade de proteção do embrião. No outro caso, a proteção da vida do feto entra em conflito com as considerações dos pais, que, ponderando a questão como se fosse um bem material, desejam ter um filho mas recusam a implantação se o embrião não corresponder a determinados padrões de saúde” (p. 43)
Com respeito à argumentação habermasiana, todavia, um ponto merece ser destacado: a cultura ocidental se acostumou a pensar na condição biológica dos indivíduos como um elemento fundamental de sua estruturação como ser social. Muito do que se tem dito acerca dos impactos da biologia molecular, da nova genética, na vida cotidiana afirma como truísmo que a condição biológica define relações de parentesco, posição na família, habilidades de gênero (como ter uma capacidade para o cálculo matemático ou não). Mas essa constatação pertence ao terreno da cultura, da cultura ocidental e moderna, e não é uma determinação ontológica. A relação parentesco-estrutura biológica, por exemplo, é uma construção social.
O feto é objeto ainda das discussões acerca de realizarmos ou não pesquisa com células-tronco embrionárias, ou seja, com embriões com até quatorze dias de vida. O potencial do ser humano já está definido em sua planta genética? Então, a concepção é o momento de humanização. Se ele só passa a ser humano quando sua estrutura nervosa básica se forma, isso só ocorreria depois desse período. Sarah Franklin argumenta, ao meu ver muito acertadamente, que a questão ‘quando um ser humano se forma?’ esconde uma outra: ‘como?’ Há de existir um útero disponível, uma mãe. Por si só o óvulo não se desenvolve. Mas a própria idéia de maternidade passa a ser um espaço bastante desnaturalizado diante de novas possibilidades técnicas. Cito mais dois casos. Marilyn Strathern chama atenção para aquilo que ela chama “nascimentos virgens” sendo procurados nas clínicas de fertilização. “Essas eram mulheres que declararam não ter tido e não desejar ter relações sexuais” (p. 10, In Edwards et al.). Lucila Scavone (in Ferreira et al.) comenta o texto de Strathern nos seguintes termos: há possibilidade de que um filho nasça sem pai.
O segundo caso é o seguinte: em um conhecido programa de televisão americano foi anunciado um processo de gestação inusitado, o pai em questão estava grávido. Thomas Betie, originalmente nascido mulher, submeteu-se a um processo de transgenitalização, mas resolveu preservar os órgãos reprodutivos femininos. Casado, resolveu engravidar. Encerro esse trecho de minha comunicação com a notícia, tal como apareceu num canal de TV americano. Se o(a) leitor(a) desejar, poderá acompanhar a acalorada discussão envolvendo esse caso limite clicando nas opções que o Youtube fornece de outros vídeos relacionados ao tema.
(continua)
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