sábado, 10 de janeiro de 2009

CRISE



Por Ricardo Antunes, Unicamp. Originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 01 de janeiro de 2009. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.

Muito já se escreveu sobre a crise. Crise dos "subprime", crise especulativa, bancária, financeira, global, réplica da crise de 1929 etc. Floresce uma fenomenologia da crise, em que o que se falou ontem é hoje obsoleto. Os grandes jornais, começando pelo "Economist", falam em "crise de confiança", e a máxima se esparrama. A crise se resume a um ato volitivo. "Fiducia!", diriam os latinos. Eis a chave analítica.

Bush, Sarkozy e Gordon Brown redescobriram, então, o estatismo todo privatizado como receituário para eliminar a desconfiança. O remédio neokeynesiano, sepultado nas últimas quatro décadas, ressurge como salvação para o verdadeiro caminho da servidão. Aqui, Lula falou em "espirro nos EUA e marolinha no Brasil". E, ao modo dos pícaros, a cada semana aparece uma nova história, com o calão raspando no chão. Pouco importa que a versão mais recente seja o oposto da anterior, pois há um traço de coerência no discurso: falar o que não faz e fazer o que não fala. Versão íngreme do grande Gil Blas de Santillana.

Para além da fenomenologia da crise, vale recordar aqueles (ao menos alguns) que procuraram ir além das aparências. Robert Kurz, por exemplo, vem alertando, desde inícios dos anos 1990, que a crise que levou à bancarrota os países do chamado "socialismo real" (com a URSS à frente), não sem antes ter devastado o Terceiro Mundo, era expressão de uma crise do modo de produção de mercadorias que agora migra em direção ao coração do sistema capitalista.

François Chesnais apontou as complexas conexões existentes entre produção, financeirização ("a forma mais fetichizada da acumulação") e mundialização do capital, enfatizando que a esfera financeira nutre-se da riqueza gerada pelo investimento e da exploração da força de trabalho dotada de múltiplas qualificações e amplitude global. E é parte dessa riqueza, canalizada para a esfera financeira, que infla o flácido capital fictício.

E István Mészáros, há muito mais tempo ainda, vem sistematicamente indicando que o sistema de metabolismo social do capital, depois de vivenciar a era dos ciclos, adentrou em uma nova fase, inédita, de crise estrutural, marcada por um continuum depressivo que fará aquela fase virar história. Não é por outro motivo que, embora alterne o seu epicentro, a crise se mostra longeva e duradoura.

E mais: demonstrou a falência dos dois mais arrojados sistemas estatais de controle e regulação do capital experimentados no século 20. O primeiro, de talhe keynesiano, que vigorou especialmente nas sociedades marcadas pelo "welfare state". O segundo, de "tipo soviético", que, embora fosse resultado de uma revolução social que procurou destruir o capital, foi por ele fagocitado. Em ambos os casos o ente regulador foi desregulado. Processo similar parece ocorrer na China de nossos dias, laboratório excepcional para a reflexão crítica.

E, afinal, quem vai pagar a conta? A OIT adverte: para 1,5 bilhão de trabalhadores, o cenário é turbulento e será marcado pela erosão salarial e ampliação do desemprego, não só para os mais empobrecidos mas também para as classes médias que "serão gravemente afetadas" ("Relatório Mundial sobre Salários 2008/2009").

Se uma das três grandes montadoras dos EUA (GM, Ford e Chrysler) fechar as portas, evaporam-se milhões de empregos, com repercussões funestas para o desemprego mundial. O Eurostat, que oferece as estatísticas da União Europeia, calcula que, se a indústria automotiva de lá cortar 25% dos empregos, gerará, numa tacada, 3 milhões de desempregados.

Na China, com quase 1 bilhão que compreende sua população economicamente ativa, cada ponto percentual a menos no PIB corresponde a uma hecatombe social, e os operários deserdados das cidades não têm mais o campo como refúgio. O PC chinês pode esperar nova onda de revoltas, ampliando o cenário da tragédia atual.

Sem falar nos imigrantes do mundo, errantes em busca de qualquer labor, que agora são expulsos em massa do "trabalho sujo", uma vez que ele também passa a ser cobiçado pelos trabalhadores nativos, inflados pela xenofobia e pressionados pela anorexia social. Enquanto isso, uma parte grandona da "esquerda" atolou-se tentando remendar o velho sistema do mercado. Está, agora, em estado pasmado. Paralelamente, a magistral crítica da economia política do capital parece renascer das cinzas...

Será que os remédios que faliram no longo século 20 serão os antídotos da crise que parece liquefazer o capitalismo nos inícios do século 21?

5 comentários:

Anônimo disse...

interessante.
o texto me deixou com mais perguntas, do que respostas...
parece um problema que não se sabe por onde começar a por as mãos...

Fabrício Maciel disse...

Mais uma vez Antunes apresenta boa análise. Cabe acrescentar que o capitalismo se refaz constantemente, o que parece anunciar seu fim, ou seja, todo o discurso da crise, é sintoma de sua readaptação que só piora o preço para as classes mais desqualificadas. Tal logica de retroalimentação é do proprio principio reprodutivo do metabilismo do capital

Unknown disse...

amei esse blog! muito útil!

ah! parabéns pelo espaço e aproveito p pedir permissão para colocar um link do seu blog no blog do c.a de ciencias sociais da universidade regional do cariri.(cisourca.blogspot.com).^^

Anônimo disse...

Obrigada, Liv. Pode colocar o link. Será um prazer.

Robson Fernando de Souza disse...

"O PC chinês pode esperar nova onda de revoltas, ampliando o cenário da tragédia atual."

Infelizmente a China de hoje já é uma tragédia de gigantes proporções. Vemos isso por seu povo que não pode se expressar livremente e por sua dependência de energias supersujas (carvão) e altamente impactantes (hidrelétricas). O crescimento chinês, eu venho vendo-o como um duplo câncer: o câncer político do fortalecimento geopolítico da tirania do PC e o ecocâncer que em pouco tempo pode transformar vastas áreas da China outrora muito biodiversas em terras arrasadas, terras de ninguém.