Estou começando um curso sobre Desigualdade Social na Graduação do Departamento de Ciências Sociais, aqui na UFPE, o que sempre é uma oportunidade de traçar uma trajetória teórica que vai da constituição do pensamento sociológico até a discussão de questões mais locais, como a análise de políticas de combate à desigualdade no Brasil contemporâneo. Na verdade o curso é mais pretensioso, quer discutir não apenas questões relacionadas à desigualdade social, mas também analisar, ainda que brevemente, problemas teóricos relativos à diferença.
Discutir a desigualdade não é discutir a diferença social, algo óbvio, mas que levou algum tempo para que percebêssemos. Lembro-me que pelos idos da década de 80 (“quando eu era alegre e jovem”) já me preocupavam questões relacionadas às minorias, à diferença, portanto - embora na época ainda cursasse Economia, onde tais questões não tinham vez. Certa ocasião um colega da CEU (onde eu era "clandestino", isto é, algo como um "intocável") deu de ombros diante de minhas inquietações com uma frase lapidar: “companheiro, quando a questão das minorias for de fato importante, o proletariado decidirá!” Acho que já usei essa frase aqui - ou em sala de aula. Hoje parece brincadeira, mas a frase do colega refletia uma tendência natural nas esquerdas de reduzir questões sociais a questões “infra-estruturais”, a tornar questões de liberdade de orientação sexual, de culto, do direito das mulheres em uma discussão econômica. Tudo seria resolvido a partir de uma boa solução de justiça distributiva. Ou seja, demoramos um pouco a incorporar a diferença em nossa agenda política.
Eu acredito que essa dificuldade tem uma história - não era simplesmente que fôssemos simplórios(éramos). Acredito que uma das questões fundantes da sociologia é de fato a questão da desigualdade e creio que a falta de sensibilidade da sociologia clássica para tratar temas relacionados à diferença pode ser entendida sociologicamente. Diria que Simmel é uma exceção à regra que confirma o que acabei de dizer: Marx, Weber, Durkheim nada teriam a dizer, por exemplo, acerca do estrangeiro, mas uma enormidade para dizer acerca de estratificação social nas sociedades modernas. É claro que Weber podia falar confortavelmente sobre sistema de castas e tal, mas esse tipo de questão não nos dizia diretamente respeito. Afinal somos o auge do processo de racionalização etc. Permitam-me, gentis cavalheiros e valorosas damas (andei escutando umas valsinhas de Chiquinha Gonzaga, entendam-me), oferecer algumas hipóteses para explicar essa aparente negligência.
A primeira delas é reconhecer a importância da economia política inglesa no sentido de definir o modo como as ciências sociais pensaram a estratificação social no mundo moderno. Aqui direi pouco porque a evidência é grande. Sugiro a leitura de O que faz os Ricos Ricos, de Marcelo Medeiro, que traz uma apreciação dessa influência, ou ainda Pobreza, Exclusão Social e Modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo, de Simon Schwartzman, boas leituras e roteiros de estudo sobre o tema. A questão da pobreza nas sociedades industriais foi por muito tempo pensada a partir da lógica mediante a qual Smith pensa a riqueza das nações: a mesma lógica que gera a riqueza explica porque alguns são pobres. Se a análise marxista é brilhante e original, o terreno em que ela prospera e algumas de suas limitações são dadas pelo horizonte da economia política inglesa que ainda é o seu: o trabalho industrial é a chave para explicar uma nova forma de riqueza. Como entender seu preconceito com relação ao setor de serviços, sua insistência no proletariado como única classe verdadeiramente revolucionária, senão a partir dessa lógica?
Mas há uma segunda hipótese não devidamente explorada – na verdade, Maria Eduarda da Rocha Mota e eu acenamos com essa possibilidade em um texto apresentado o ano passado na ANPOCS, mas não desenvolvemos o assunto. Mas vamos lá: por que as questões de justiça distributiva nos comoveram mais que aquelas relacionadas à diferença social, quando evidentemente a cultura capitalista constituiu um tremendo espaço de tensão também nesse segundo sentido? Por que um livro que de certa forma inaugura um pensar antropológico sobre a estratificação, como o é Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, de J.J. Rousseau, nada fala sobre a diferença – e quando fala, no Emílio, por exemplo, é para ser extremamente conservador com respeito à diferença entre os gêneros?
Há um excelente ensaio de Hannah Arendt, 'A Revisão da Tradição em Montesquieu', em A Promessa do Político, que oferece umas pistas para entender essa 'negligência' histórica. Ora, todos sabemos não apenas da influência de Montesquieu no pensamento Iluminista, mas particularmente o seu Do Espírito das Leis (1748) na constituição do pensamento sociológico. Arendt chama atenção à consagrada distinção entre três formas de governo e suas respectivas naturezas, tal como encontramos naquele livro. Todos sabemos disso, mas vamos lá. As três formas de governo são: tirania, república e monarquia. Quanto às suas respectivas essências temos: a essência da tirania é o terror – o tirano impõe sua vontade pelo medo, pela possibilidade que ele possa “fazer morrer” (como diria Foucault) a qualquer momento; a república impõe-se como essencialmente fundada na virtude – o que vale dizer, impõe-se pelo amor à igualdade entre os cidadãos; e a república, pela honra – ou seja, pelo amor à diferença, pela legitimidade que a distinção de alguns segmentos sociais adquirem sobre outros.
A tradição iluminista, onde a sociologia emergente se forma, aprende a associar questões relacionadas à diferença social ao Antigo Regime; a associar modernidade e igualdade (política ou econômica). A cultura iluminista não consegue pensar a diferença sem a associá-la a uma lógica política do privilégio, ao pensamento conservador. Nietzsche, ao negar o igualitarismo iluminista, sua justiça distributiva e lógica universalista, cai necessariamente na defesa de um pensamento aristocrático. Ou não? Se ele pôde pensar a diferença, não pode se livrar de perceber uma incompatibilidade essencial entre pensar a desigualdade e pensar a diferença. Sade, esse iluminista de mau-humor, nega a igualdade caindo necessariamente nos braços de uma diferença que se impõe de modo autoritário, aristocrático. Sade, "o sargento do sexo", acho que Blanchot diz isso, é o último elo entre poder e sangue - isso diz Foucault.
Somos herdeiros dessa tradição. Quando debatemos questões relacionadas às quotas raciais nas universidades públicas, por exemplo, impossível não perceber que o que estamos tentando fazer é negociar entre uma tradição sensível à desigualdade e uma tradição sociológica mais recente voltada para as questões da diferença. Para que esse último tipo de preocupação se impusesse ao olhar sociológico com força política, foi necessário não apenas que o projeto Iluminista recebesse críticas contundentes a partir do final da Segunda Guerra Mundial (ou ainda antes), mas, sobretudo, que novas formas de movimento político surgissem. Falo aqui do movimento feminista, do movimento negro, do movimento gay, entre outros. Sobre isso teremos oportunidade de falar ainda esse semestre.
E esse texto vai assim mesmo, sem mínima correção – caso contrário, demorarei mais uma semana para postá-lo. E desculpem a ilustração, foi a única coisa que encontrei rapidamente no Google.
Jonatas Ferreira