quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Desigualdade e Diferença (ou Antes que Momo me Consuma)



Estou começando um curso sobre Desigualdade Social na Graduação do Departamento de Ciências Sociais, aqui na UFPE, o que sempre é uma oportunidade de traçar uma trajetória teórica que vai da constituição do pensamento sociológico até a discussão de questões mais locais, como a análise de políticas de combate à desigualdade no Brasil contemporâneo. Na verdade o curso é mais pretensioso, quer discutir não apenas questões relacionadas à desigualdade social, mas também analisar, ainda que brevemente, problemas teóricos relativos à diferença.

Discutir a desigualdade não é discutir a diferença social, algo óbvio, mas que levou algum tempo para que percebêssemos. Lembro-me que pelos idos da década de 80 (“quando eu era alegre e jovem”) já me preocupavam questões relacionadas às minorias, à diferença, portanto - embora na época ainda cursasse Economia, onde tais questões não tinham vez. Certa ocasião um colega da CEU (onde eu era "clandestino", isto é, algo como um "intocável") deu de ombros diante de minhas inquietações com uma frase lapidar: “companheiro, quando a questão das minorias for de fato importante, o proletariado decidirá!” Acho que já usei essa frase aqui - ou em sala de aula. Hoje parece brincadeira, mas a frase do colega refletia uma tendência natural nas esquerdas de reduzir questões sociais a questões “infra-estruturais”, a tornar questões de liberdade de orientação sexual, de culto, do direito das mulheres em uma discussão econômica. Tudo seria resolvido a partir de uma boa solução de justiça distributiva. Ou seja, demoramos um pouco a incorporar a diferença em nossa agenda política.


Eu acredito que essa dificuldade tem uma história - não era simplesmente que fôssemos simplórios(éramos). Acredito que uma das questões fundantes da sociologia é de fato a questão da desigualdade e creio que a falta de sensibilidade da sociologia clássica para tratar temas relacionados à diferença pode ser entendida sociologicamente. Diria que Simmel é uma exceção à regra que confirma o que acabei de dizer: Marx, Weber, Durkheim nada teriam a dizer, por exemplo, acerca do estrangeiro, mas uma enormidade para dizer acerca de estratificação social nas sociedades modernas. É claro que Weber podia falar confortavelmente sobre sistema de castas e tal, mas esse tipo de questão não nos dizia diretamente respeito. Afinal somos o auge do processo de racionalização etc. Permitam-me, gentis cavalheiros e valorosas damas (andei escutando umas valsinhas de Chiquinha Gonzaga, entendam-me), oferecer algumas hipóteses para explicar essa aparente negligência.

A primeira delas é reconhecer a importância da economia política inglesa no sentido de definir o modo como as ciências sociais pensaram a estratificação social no mundo moderno. Aqui direi pouco porque a evidência é grande. Sugiro a leitura de O que faz os Ricos Ricos, de Marcelo Medeiro, que traz uma apreciação dessa influência, ou ainda Pobreza, Exclusão Social e Modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo, de Simon Schwartzman, boas leituras e roteiros de estudo sobre o tema. A questão da pobreza nas sociedades industriais foi por muito tempo pensada a partir da lógica mediante a qual Smith pensa a riqueza das nações: a mesma lógica que gera a riqueza explica porque alguns são pobres. Se a análise marxista é brilhante e original, o terreno em que ela prospera e algumas de suas limitações são dadas pelo horizonte da economia política inglesa que ainda é o seu: o trabalho industrial é a chave para explicar uma nova forma de riqueza. Como entender seu preconceito com relação ao setor de serviços, sua insistência no proletariado como única classe verdadeiramente revolucionária, senão a partir dessa lógica?

Mas uma segunda hipótese não devidamente explorada – na verdade, Maria Eduarda da Rocha Mota e eu acenamos com essa possibilidade em um texto apresentado o ano passado na ANPOCS, mas não desenvolvemos o assunto. Mas vamos lá: por que as questões de justiça distributiva nos comoveram mais que aquelas relacionadas à diferença social, quando evidentemente a cultura capitalista constituiu um tremendo espaço de tensão também nesse segundo sentido? Por que um livro que de certa forma inaugura um pensar antropológico sobre a estratificação, como o é Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, de J.J. Rousseau, nada fala sobre a diferença – e quando fala, no Emílio, por exemplo, é para ser extremamente conservador com respeito à diferença entre os gêneros?


Há um excelente ensaio de Hannah Arendt, 'A Revisão da Tradição em Montesquieu', em A Promessa do Político, que oferece umas pistas para entender essa 'negligência' histórica. Ora, todos sabemos não apenas da influência de Montesquieu no pensamento Iluminista, mas particularmente o seu Do Espírito das Leis (1748) na constituição do pensamento sociológico. Arendt chama atenção à consagrada distinção entre três formas de governo e suas respectivas naturezas, tal como encontramos naquele livro. Todos sabemos disso, mas vamos lá. As três formas de governo são: tirania, república e monarquia. Quanto às suas respectivas essências temos: a essência da tirania é o terror – o tirano impõe sua vontade pelo medo, pela possibilidade que ele possa “fazer morrer” (como diria Foucault) a qualquer momento; a república impõe-se como essencialmente fundada na virtude – o que vale dizer, impõe-se pelo amor à igualdade entre os cidadãos; e a república, pela honra – ou seja, pelo amor à diferença, pela legitimidade que a distinção de alguns segmentos sociais adquirem sobre outros.


A tradição iluminista, onde a sociologia emergente se forma, aprende a associar questões relacionadas à diferença social ao Antigo Regime; a associar modernidade e igualdade (política ou econômica). A cultura iluminista não consegue pensar a diferença sem a associá-la a uma lógica política do privilégio, ao pensamento conservador. Nietzsche, ao negar o igualitarismo iluminista, sua justiça distributiva e lógica universalista, cai necessariamente na defesa de um pensamento aristocrático. Ou não? Se ele pôde pensar a diferença, não pode se livrar de perceber uma incompatibilidade essencial entre pensar a desigualdade e pensar a diferença. Sade, esse iluminista de mau-humor, nega a igualdade caindo necessariamente nos braços de uma diferença que se impõe de modo autoritário, aristocrático. Sade, "o sargento do sexo", acho que Blanchot diz isso, é o último elo entre poder e sangue - isso diz Foucault.

Somos herdeiros dessa tradição. Quando debatemos questões relacionadas às quotas raciais nas universidades públicas, por exemplo, impossível não perceber que o que estamos tentando fazer é negociar entre uma tradição sensível à desigualdade e uma tradição
sociológica mais recente voltada para as questões da diferença. Para que esse último tipo de preocupação se impusesse ao olhar sociológico com força política, foi necessário não apenas que o projeto Iluminista recebesse críticas contundentes a partir do final da Segunda Guerra Mundial (ou ainda antes), mas, sobretudo, que novas formas de movimento político surgissem. Falo aqui do movimento feminista, do movimento negro, do movimento gay, entre outros. Sobre isso teremos oportunidade de falar ainda esse semestre.

E esse texto vai assim mesmo, sem mínima correção – caso contrário, demorarei mais uma semana para postá-lo. E desculpem a ilustração, foi a única coisa que encontrei rapidamente no Google.

Jonatas Ferreira

5 comentários:

PensarFalar disse...

Excelente texto. Muito bem articulado! Me faz uma visitinha?

Le Cazzo disse...

Obrigado, PS! Já dei uma passada rápida em dois de seus blogs. Depois volto com mais calma para ler mais. Abraço, Jonatas

Bernardo do Mearim disse...

Jonatas,

eu quero saber qual é EXATAMENTE, do ponto de vista sociológico, a diferença entre DIFERENÇA E DESIGUALDADE.

Perdoe-me a ignorância. Não sou socióloga, mas educadora e (socio)linguista, tentando achar um caminho, uma explicação para algumas questões que a mim são todos os dias apresentadas no trabalho com o ensino de língua materna e, mais especificamente, quando participo de formação de professores do interior de diversas regiões brasileiras. Nessas ocasiões, percebo nitidamente a denotação dessas palavras no senso comum do cotidiano.

À parte isso, tenho me perguntado, diante das discussões a respeito da "diferença" e da "desigualdade" entre os sexos (homem X mulher) e/ou entre os gêneros (masculino X feminino), qual é exatamente o significado dessas duas palavras. Parecem-me duas conotações diferentes que confundem até mesmo colegas que analisam o discurso de um ponto de vista mais, diríamos, acirrado. Para não dizer radical.
Seria possível você me ajudar?

Abraço não tão Chiquinha Gonzaga, mas com tambor de crioula direto de São Luís, onde vim descansar esses dias.

Caroline Rodrigues disse...

Esse comentário aí de cima é meu. É que estava plugada com o blog que criei do curso de formação para professores do MA.
Considere este meu blog aqui e o respectivo endereço para me responder ou para discutirmos a respeito, ok?

Abraços.
Caroline

PS: você não dá oportunidade de apagarmos os comentários! rs.

Le Cazzo disse...

Caroline,

Tambor de Crioula. Eu acho arretado, já escutei umas duas ou três vezes, uma delas com todo o processo de aquecimento dos tambores e tal e achei fantástico.

E quanto a uma distinção entre diferença e desigualdade: a dificuldade é que esses fatos se influenciam mutuamente e certas vezes é difícil perceber seus limites. Darei alguns exemplos pra ilustrar, talvez esclareça.

Minha filha chega em casa lamentando o fato de um amigo ter sido agredido na rua por andar de mãos dadas com seu namorado. De uma perspectiva da desigualdade é difícil entender o constrangimento e violência pela qual ele passou. Digamos que ele é rico, bem-informado, tem acesso a boa educação etc. O rapaz foi molestado por pessoas de sua mesma classe social, ao que parece. O fato é que sua orientação/preferência sexual o torna diferente no contexto de uma cultura heterossexual e essa diferença não pode ser explicada meramente como uma questão de estratificação social, de desigualdade, de classe social - embora também não devamos esquecer essas questões quando analisamos a forma como uma dada diferença é tratada.

Dou outro exemplo. A loucura na cultura moderna sempre foi estigmatizada. Ela é o contrário da sociedade da disciplina, da razão e do trabalho. É claro que não ajuda nada o indivíduo ser louco e pobre... Sua vida pode ser muito mais difícil. Os exemplos poderiam se multiplicar: negros ricos não deixam de ser constrangidos em portas de banco, mulheres não deixam de receber em média menos que os homens, mesmo que sua qualificação profissional se mostre igual ou superior à masculina etc. etc.

Bem, sei que despertei mais questões do que as respondi. Mas como pretendo postar mais sobre o assunto durante o semestre (especialmente depois de abril quando passo a tratar do tema da diferença mais claramente), a gente pode conversar mais sobre o assunto na seqüência. Abraço, Jonatas