segunda-feira, 20 de abril de 2009

Gadamer e o Jogo 1 (preliminares – penumbrazinha, bolerinho – para um artigo sobre Jogos Eletrônicos)



Se bem me lembro daquele famoso argumento do Verdade e Método, a arte ofereceria à hermenêutica um paradigma de acesso e de vivência da verdade que pouca relação teria com as preocupações metodológicas mediante as quais a ciência moderna propunha o controle técnico do mundo - o método científico reduziria a verdade ao poder, ao controle sobre as coisas. Mas dizer arte é dizer algo demasiadamente vago. A primeira tarefa que o livro de Gadamer apresenta, portanto, é livrar a hermenêutica de uma idéia particular de arte, idéia que influenciou a própria emergência da hermenêutica moderna tal como ela é elaborada na obra de Schleiermacher e Dilthey. Essa idéia é a de que o “fenômeno estético”, isto é, a vivência artística, seria algo que se desenvolve na consciência dos sujeitos.

Ora, sabemos que, seguindo Heidegger, Gadamer suspeita dos conceitos polares “sujeito e objeto”, os quais constituiriam índices da forma técnica mediante a qual a ciência propôs um controle metódico, racional do mundo. Kant é o inimigo e a Crítica do Julgamento – seu suposto subjetivismo - seria seu sortilégio mais perigoso. A argumentação kantiana sobre o belo, tal como a encontramos na famosa terceira Crítica, obscureceria aquilo que a arte ofereceria de mais verdadeiro: um acesso à verdade em que a busca de certificação técnica do sujeito não seria fundamental. Gadamer precisa então de uma categoria que não fizesse concessões a nenhum dos pólos do projeto moderno de dominação técnica – algo que não pudesse ser compreendido nem como subjetivo nem como objetivo.

Esse algo é a idéia de jogo, a quintessência da noção gadameriana da vivência artística. É claro que sempre podemos realizar uma apreciação subjetiva do ato de jogar. Podemos, por exemplo, perguntar: ora qual o prazer que Fulano tem em passar suas noites jogando World of Warcraft, ou SimCity, ou RPG na Intenet, ou Second Life? O que o mobiliza, que valores ele atribui a essa atividade etc. etc.? Ou ainda é possível analisar os aspectos "objetivos" que cada um desses jogos materializaria: interesses econômicos materializado no conteúdo dos jogos, regras etc. Mas a “essência” do jogo não se encontra em nenhum desses lugares. O jogo não é objetivo nem subjetivo; o jogo não é determinado, nem indeterminado. Aceitemos por enquanto essa circunscrição negativa do sentido do jogo, mas avancemos em direção a algo positivo: a compreensão do jogo só é possível mediante a vivência do próprio jogar. O tipo de conhecimento que o jogo propicia, por isso mesmo, apresenta uma relevância hermenêutica evidente. A relação entre vivência e compreensão é, aliás, fundamental no próprio surgimento de um projeto hermenêutico, moderno de conhecimento.

O lúdico no jogo é algo que mobiliza o ser humano, antes de ser mobilizado por qualquer sujeito ou se tornar algo objetivo: “O modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo como em relação a um objeto” (175) Só existe jogo onde existe envolvimento, e esse envolvimento, evidentemente, não pode ser entendido como algo objetivo. O jogo, como essência da arte, pressupõe uma forma de conhecimento não distanciada, uma forma de conhecimento em que estamos envolvidos: emocionalmente envolvidos, envolvidos porque o jogo falaria da verdade profunda dos seres humanos.

É preciso repetir: esse conhecimento que se estrutura a partir da imersão emocional é na verdade uma das primeiras contribuições da hermenêutica moderna às ciências humanas - a marca de sua estratégia não positivista para lidar com o conhecimento e a verdade. “A estrutura de ordenação do jogo faz com que o jogador desabroche em si mesmo e, ao mesmo tempo, tira-lhe, com isso, a tarefa da iniciativa, que perfaz o verdadeiro esforço da existência” (179). O jogo diz de uma existência “sem finalidade” ou “intenção”. E essa exisência sem finalidade ou intenção seria próprio do ser humano, mas também da natureza, segundo argumenta Gadamer – seguindo aqui a idéia kantiana de natureza. A idéia de jogo aproxima-se da própria idéia do humano e do ser nesse ponto.

Diferentemente do mundo em que vivemos, o jogo implica uma “configuração” fechada de possibilidades. Estas possibilidades, no entanto, são ilimitadas: só existe a possibilidade de jogo, já o disse Simmel, no limite entre a liberdade do jogador – que suas possibilidades de jogar estejam indeterminadas – e, ao mesmo tempo, as restrições fechadas de uma configuração. “Só se pode jogar com sérias possibilidades. Isso significa, evidentemente, que somente confiamos nelas na medida em que elas podem dominar alguém e se impor. O atrativo que o jogo exerce sobre o jogador reside exatamente nesse risco” (181) Se o jogador evita esse risco, o risco de enfrentar o indeterminado nos limites de um certo conjunto de restrições, ele estará “perdido”. Por mais eficiente que seja o jogador, o jogo deixa de existir se a indeterminação do jogar não implicar na possibilidade de risco - e, portanto, na impossibilidade de um controle técnico total sobre a configuração do jogo.

“A partir daí, pode-se precisar um traço geral de como a natureza do jogo se reflete no comportamento lúdico: Todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que ele exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador” (181)


De certo modo, é possível dizer que, para Gadamer, no fundo de todo jogo existe a possibilidade última de que o jogador se converta no personagem Alexei Ivanovich, do romance de Dostoievski, ou seja, que o jogo seja maior que o jogador: “o entregar-se à tarefa do jogo é, na verdade, um colocar-se em jogo”. Ao racionarmos dessa forma, porém, não podemos esquecer que apenas quando é jogado o jogo se realiza, pois ele é essência em meio às contingências da vivência do jogar.

(Não revisado. E continua, meu bem...)

Jonatas Ferreira

Um comentário:

Anônimo disse...

Que danado de fundo musical é este?!!!
Fábio S.