Jonatas Ferreira e Marcia Longhi
Se alguém resolve refletir acerca do modo como as tecnologias de comunicação e informação estão mudando as nossas vidas, é bem provável que esta pessoa não decida falar de telefonia celular. Há novidades bem mais glamourosas por explorar: uso de internet de alta velocidade no campo da saúde, regulamentação da Internet, e-governo, e-comércio, novas formas de ativismo no ciberespaço etc. Ninguém dá grande importância ao bom e velho telefone celular – velho, sim, o avô dos nossos modelos estilosos tem mais de 20 anos – que deixou mesmo de ser novidade. Segundo os últimos dados publicados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, 76% da população brasileira dispõe desse ícone, já tem idade para tal, da sociedade de informação. Tornou-se tão presente que a gente deixou de os ver – como tudo na vida, como nos ensina a fenomenologia, o mais presente se ausenta. Quer dizer, salvo quando aquele amigo exibido aparece com um novíssimo modelo, capaz de proezas técnicas inimagináveis há alguns anos.
O telefone celular, no entanto, vem mudando nossa vida de uma forma categórica. Quem imaginaria a gama de novas situações sociais que esse pequeno aparelho propicia. Lembro que há três anos, entrando num conhecido restaurante da cidade do Recife, necessitei ir à casa de banhos. Enquanto lavava às mãos escutei com assombro uma voz rouquenha, espremidinha que vinha de um dos três cubículos dedicados a necessidades mais urgentes que às minhas. E a vozinha dizia algo como: “...mas meu bem, você não sabe que eu amo você”. Pausa dramática, algum tipo de esforço audível e: “... amo sim, você não percebe como minha voz está embargada de emoção?” O causo de fato aconteceu e o prosaico, por vezes, ensina. É difícil imaginar há vinte anos uma negociação amorosa tão escatológica, um sentimento expresso de forma tão corporal como aquele. A pessoa saiu de sua cabine, sem me perceber, lavou as mãos como se nada tivesse ocorrido e seguiu em direção a uma mesa onde a aguardavam alguns colegas engravatados.
E essa é uma primeira lição. Nenhuma tecnologia contribuiu tanto para realizar o sonho (ou pesadelo) de uma acessibilidade absoluta quanto o telefone celular. Desconsiderando a convergência que há hoje entre computadores e telefones celular (uma novidade recente sobre a qual falarei), é possível dizer: não foi o PC, ou a Internet, que realizaram, do ponto de vista da acessibilidade, a fantasia da biblioteca de Babel de que fala Borges - metáfora exaustivamente mobilizada para descrever a World Wide Web. Salvo alguns problemas técnicos, ou a decisão heróica de não ter esse tipo de facilidade, estamos acessíveis o tempo todo, em todo lugar – menos Maria Eduarda. Nos estádios de futebol, nos cinemas, nas salas de aula, nas reuniões de trabalho, nas maternidades, funerais, casamentos, casas de banho!, estamos sempre a uma tecla do resto do mundo. E isso, por si só, envolve a negociação de uma etiqueta tensa entre um mundo virtual e enlouquecedor na proliferação de suas demandas e os compromissos presenciais que nos lançam em outra direção. Quem pode reivindicar atenção presencial, por séria que seja a a necessidade de tal demanda, quando o resto do mundo teima em impor emergências amorosas, profissionais, domésticas?
Porque estamos acessíveis o tempo todo e em todo lugar somos mobilizáveis sempre e em qualquer lugar pelas engrenagens produtivas - e também pelos laços afetivos, pela urgência de compromissos de diversas ordens. Para alguns, há aqui o que comemorar. Para uma enorme camada da população brasileira sem conexões produtivas com a sociedade de informação, a posse de um telefone móvel significou a inclusão em fluxos de trabalho, por exemplo. Serralheiros, encanadores, eletricistas, esteticistas, vendedoras, jardineiras, podem agora ser facilmente conectados – o que certamente dinamiza a atividade produtiva não formal da economia. Tristemente, é precisamente para essa parcela da população que o serviço de telefonia móvel é mais caro no Brasil – ora, além de vir substituindo a telefonia fixa, nunca democratizada em nosso país, e realizar alguns tipos de comunicação que a maioria de nós prefere realizar pela Internet, o celular se impõe como para essa população sempre a partir de planos mais dispendiosos - como os pré-pagos, por exemplo.
Em 2005 o telefone fixo estava presente em 54% da população residente na área urbana, passou em 2006 para 50%, depois para 45% e em 2008 registrou 40%. O oposto ocorre com a telefonia celular. Tínhamos 61% da população com acesso ao telefone celular em 2005 e hoje esse percentual é de 76%. Esse declínio da telefonia fixa mostra que há muito tempo essa área deixou de se reinventar e que está condenando uma parte do Brasil ao abismo, na medida em que as concessionárias de telefonia não têm interesse em levar a banda larga ao interior do país (Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil 2008;CGI.BR, 2009).
(Continua)
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