Jonatas Ferreira
(O texto abaixo corresponde à Introdução de um artigo mais amplo)
'O que importa não é o que escolhemos, mas “aquilo sobre cuja base escolhemos”'(DREYFUS citando Heiddegger, 1993, p. 296).
Introdução
Em março de 2009, o Comitê Gestor da Internet no Brasil publicou os primeiros resultados da Pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil realizada no ano anterior, isto é, em 2008. Esses primeiros resultados indicam que continuamos avançando na difusão de tecnologias de informação e comunicação (TICs) , embora os problemas apresentados nas avaliações anuais anteriores ainda não tenham sido suficientemente equacionados. i. “O custo elevado continua a ser a principal barreira para a posse do computador e da conexão à Internet nos domicílios”; ii. “a falta de disponibilidade de Internet passa também a figurar como um dos principais desafios para a inclusão digital em todo o país”; iii. a “posse do computador nos domicílios cresceu mais rapidamente do que a posse da conexão à Internet. A diferença entre domicílios com computador e domicílios com conexão à Internet era de 4 p.p. em 2005 e passou para 8 p.p. Em 2008”; iv. o acesso à telefonia móvel apresenta uma penetração consideravelmente superior à da telefonia fixa em todo o país; v. a “falta de habilidade foi, mais uma vez, apontada como a principal barreira para o uso da Internet”; vi. lanhouses ainda são a única possibilidade de acesso para uma parte considerável da população (pobre) brasileira – o que significa: paga mais por acesso à Internet quem menos pode pagar2. Além de tudo isso, nossa conexão continua bastante lenta o que restringe fortemente o acesso a conteúdos que exijam uma largura de banda mais robusta.
Esse quadro nos ajuda sem dúvida a traçar em nosso país os contornos mais gerais daquilo que se convencionou chamar de exclusão digital e dos resultados das políticas de inclusão tentadas até o momento. Evidentemente, esse panorama requer uma análise bem mais ampla das políticas governamentais nesse campo, do modo como os estados da federação vem assumindo os compromissos da Federação no que diz respeito ao ingresso de largas parcelas da população na Sociedade da Informação, do modo como entidades da sociedade civil, organizações não-governamentais têm se dedicado a atenuar as desigualdades no acesso às TICs. No que pese a necessidade de analisar os obstáculos que se colocam à inclusão digital em nosso país, e em particular nas regiões e parcelas mais pobres da população, acredito que pensar a desigualdade a partir da perspectiva da inclusão/exclusão digital é insuficiente (cf WARSCHAUER, 2006). A desigualdade nesse, como em outros casos, não deve ser tratada apenas do ponto de vista da restrição ao acesso, mas da possibilidade de apropriação criativa que essas tecnologias demandam (MACIEL E ALBAGLI, 2007). Apropriação é uma chave importante para que possamos ter uma idéia mais aprofundada do que viria a ser inclusão digital, ou, mais propriamente, daquilo que precisamos identificar como questão política que diz respeito à democratização da tecnologia. Dessa perspectiva, o que exatamente garantiria a democratização das tecnologias de informação e comunicação em nossa sociedade? A resposta parece óbvia, mas não é.
Primeiro, a questão da democracia não pode ser reduzida à questão da inclusão. Incluir significa tirar alguém de um lugar de falta e despossessão para outro de plenitude e cidadania. Em um ensaio dedicado a essa questão, tivemos a oportunidade de propor uma crítica ao conceito de inclusão digital a partir da constatação de seu débito para com as noções de justiça distributiva (que vem orientando o tratamento da questão da desigualdade no mundo moderno ao menos desde Adam Smith) e de informação (tal qual esse conceito é definido pela teoria da informação a partir da década de 1940). Naquele texto, afirmávamos:
A redução dos conceitos de informação e de comunicação a uma dimensão francamente performativa, tal como encontramos nas ciências da informação desde seus primórdios [...] apresenta uma considerável “afinidade eletiva” com a idéia de inclusão digital. Nos dois casos, trata-se de garantir o fluxo seguro e veloz de signos sem que as questões do sentido das mensagens, de sua apropriação, da orientação da arquitetura que permite este fluxo, constituam uma preocupação primeira – ou cuja resposta seja democraticamente produzida. A eficiência no transporte de informação é nos dois casos um princípio que se impõe às demais preocupações. Acreditamos que a idéia de inclusão digital não possibilita uma compreensão crítica desse movimento técnico e de seu sentido político (FERREIRA e ROCHA, 2009a).
Já ali falávamos da necessidade de apropriar as TICs como condição fundamental de sua democratização. Neste contexto, democratizar significa muito claramente propiciar as condições para que uma tecnologia aberta com respeito às suas finalidades – essa parece ser a marca das tecnologias digitais - possa levar a um exercício radical de reflexão acerca do mundo em que vivemos e do mundo que desejamos. Um limite importante da apropriação é se ela permite ou não essa reflexão. Por isso mesmo, uma questão inevitável para aqueles que se comprometem com tal projeto político há de ser: o que são a tecnologias de informação e comunicação contemporâneas para que desejemos democratizá-las, para que possamos pensar em sua apropriação como um postulado ético e político da contemporaneidade? Sem que uma resposta a essa questão seja pressuposta em nossos programas de democratização das TICs, como podemos verdadeiramente falar de apropriação? Se entendemos que a pergunta acima é fundamental, sua resposta não é de modo algum fácil. Tentar respondê-la implica que nosso compromisso com uma democracia radical demanda reflexão sobre nossos envolvimentos tecnológicos dificilmente compatível com a necessidade de respostas rápidas, com a busca de performance a todo custo, com a inovação como princípio. Em alguma medida, esboçamos uma resposta à questão da apropriação tecnológica quando nos debruçamos, no artigo mencionado acima, em analisar a transformação nas noções de informação e comunicação produzidas pela teoria da informação. O artigo que se segue dá continuidade àquele esforço procurando aprofundá-lo a partir do pensamento heideggeriano, particularmente, por intermédio de seus textos da década de 1960 acerca da linguagem cibernética e dos grandes perigos que ela representava.
Embora minha conclusão acerca das questões que Heidegger propõe seja bastante particular, acredito que a reflexão heideggeriana é ainda crucial. E isso por uma razão muito simples. É importante que nos perguntemos exatamente o quê desejamos democratizar e o quê implicaria essa democratização. A amplitude desse tipo de indagação propicia em geral um confronto com certos pressupostos culturais que são tomados como dados pelo paradigma da justiça distributiva. Para Martin Heidegger, o niilismo é o grande fantasma que ronda a civilização tecnológica; a aceleração tecnológica, a excitação constante, seriam ameaças que atuam de modo a nos ocultar o fato de que nada mais tem mesmo sentido ou merece existir. Ao nos equiparmos para ter tudo a nossa disposição, tudo perdemos. Assim, é preciso que nos dediquemos a pensar a ameaça da aceleração pela aceleração, da inovação que se justificaria pelo simples fato de inovar.
Segundo a perspectiva que tomo nesse ensaio, por outro lado, é na radicalização do processo de apropriação,na reflexão que ela implica, que encontraremos uma alternativa para a restrição de nossas possibilidades existenciais e políticas que o niilismo acarreta. Acredito que essa reflexão possa constituir um momento decisivo no contexto de um processo maior em que assumiríamos nosso destino de modo radicalmente democrático. Pois em qualquer âmbito no qual a democracia esteja realmente em questão, a possibilidade de que o mundo venha a ser radicalmente distinto daquele em que existimos também estará em jogo.
Para sermos capazes de fazer tal dissociação, Heidegger mantém, devemos repensar a história do ser no Ocidente. Então veremos que embora um entendimento tecnológico do ser seja nosso destino [destiny], não é nossa sina [fate]. Isto é, embora nosso entendimento das coisas e de nós mesmos como recursos a serem ordenados, melhorados, e usados eficientemente venha sendo construído desde Platão, nós não estamos presos a esse entendimento (DREYFUS, 1993, p. 307).
2 comentários:
Não consigo imaginar inclusão digital sem internet,ela é o fio condutor da TICs. Aguardo novo artigo.
Oi, Wilma.
De fato... Mas o problema apenas começa quando concluímos que a "inclusão" (prefiro a idéia de democracia) digital pressupõe Internet, computadores, um sistema operacional (Linux? Windows?) e que esses são elementos necessários para pensar relações menos desiguais no mundo. Um dos problemas centrais disso que prefiro chamar democratização é saber o que exatamente queremos democratizar? O outro deve ser "incluído" na tomada de decisões sobre a gestão de tráfego na Internet? E na discussão filosófica, política, cultural acerca do que são as TICs e como elas estão afetando a nossa vida? O outro deve ser ouvido? Heidegger nos ajuda a pensar esse último aspecto. O artigo completo, no entanto, está comprometido - uma coletânea sobre o tema. Assim que for publicado, passa as referências no Cazzo. E obrigado pelo comentário. Jonatas
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