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quarta-feira, 9 de setembro de 2009
Expressões identitárias entre « a turma do bem » e os « radicais chics » : por que Habermas e Laclau não se entendem bem ? (parte 2)
Tâmara Oliveira
Radicalizando uma crítica à nebulosa multiculturalista, alguns vão simplesmente apresentá-la como componente da ideologia liberal globalizada, meio de construção/legitimação de identidades fratricidas que alimentam um ethos competitivo a serviço do mercado(Sachot, 2006). Outros vão aceitar a crítica multiculturalista do caráter realmente dominador e ilusoriamente universal do modelo de integração social moderno, mas põem em questão teórica e/ou prática seu princípio particularista de integração social (Castel, 2009; Lenoir-Achdjian, 2006 ; Schnnaper, 2006 ). Eu mesma (2008), modestamente, sem reduzir o multiculturalismo à ideologia liberal e acatando aspectos de sua crítica ao universalismo moderno, já insisti numa velha pergunta: a tendência a identificar desigualdades sócio-econômicas a demandas identitárias não desvia a atenção das afinidades sócio-econômicas, estas que reúnem todo o arco-íris de homens e mulheres que (mal) vivem do trabalho na mesma dependência de um capitalismo hiper-acelerado e socialmente “descomplexado”?
Pois bem, Habermas e Laclau inserem-se numa aceitação crítica da nebulosa multiculturalista, problematizando o princípio particularista de integração social que certas de suas expressões concretas e mobilizadas defendem. Recusando a identificação entre preservação de culturas e preservação das espécies naturais, Habermas (1994) afirma que se o Estado pretender garantir a sobrevivência de uma cultura, estará necessariamente roubando aos seus membros “a liberdade de dizer sim ou não que é necessária se querem apropriar-se e preservar sua herança cultural” (1994, p. 148). Laclau (2000), por sua vez, considera que um dos percursos do multiculturalismo, o da defesa do direito de uma vida em separado de grupos identitários oprimidos, é o de um auto-apartheid, pois, proclamando que os valores e instituições ocidentais são atributos dos machos brancos “ocidentais”, tais grupos não só reforçam o enfrentamento entre particularismos como a manutenção do status quo, já que tal enfrentamento terá a hegemonia dos grupos dominantes.
Mas os aspectos realçados na crítica de um ou do outro já encerram o que os separa. Habermas nos remete a um entendimento do universal como positividade em aberto mas possível, encarnável pelos debates entre os cidadãos concretos de uma nação. Laclau nos remete a um entendimento do universal como negatividade necessária, como insuperável “presença da ausência” do universal nos embates entre grupos por hegemonia. Melhor dizendo, o realce habermasiano da liberdade dos membros de um grupo para dizer sim ou não a uma identidade cultural, deixa claro que sua perspectiva de universalidade privilegia o indivíduo e a discussão num horizonte de interpretação comum, que integra abstrata e igualmente todos os cidadãos. Laclau, por sua vez, concentrando-se em grupos identitários e em dinâmica hegemônica, situa teoricamente o vínculo entre o universal e o particular no privilégio analítico de grupos em luta por poder político. Retomando ainda a instigante entrevista de Vandenberghe, diria que, quanto ao privilégio do indivíduo ou do grupo, é assim que o compreendo quando ele situa reatualizadores da obra de Habermas num horizonte “acionista” e Laclau num horizonte “pós-estruturalista”.
Em segundo lugar, tem-se a oposição integração/luta por poder. Tentarei apresentar essa oposição a partir da exposição sintética dos modelos dos dois autores.
O percurso de Jürgen Habermas, de sua teoria da ação comunicativa (1987), passando por sua argumentação sobre o discurso filosófico moderno (1999), até suas obras e engajamentos mais recentes, tem sempre um mesmo sentido de fundo: o de sustentar teórica e praticamente a articulação entre universal (princípios de integração sustentados com força de obrigação para todos) e particular (indivíduos e grupos diferentes, os construtores concretos daqueles princípios), a partir de consensos inevitavelmente contextuais (posto que encarnados na e pela diversidade dos indivíduos/contextos concretos), mas universalizáveis (extensíveis a outros contextos, devido às próprias potencialidades consensuais e universalizáveis da comunicação humana). Daí sua insistência na separação necessária entre o nível da integração política individual de todos os cidadãos e o da “integração ética de grupos e subculturas com suas próprias identidades coletivas” (Taylor et al., 1994, p. 151) – elevando o primeiro a princípio ideal regulador das sociedades democráticas contemporâneas e considerando que o segundo precisa da validade do primeiro, para que a cultura majoritária não usurpe nem o reconhecimento das minorias nem a autonomia individual diante das identidades coletivas.
Não vou aqui descrever as diversas críticas ao modelo habermasiano, mas a verdade é que algumas delas (Rochlitz ,2002; Elley 1992) parecem-me pertinentes quando indicam que, enquanto variáveis empíricas, a democracia e a cidadania dependem de interações, conteúdos simbólicos e instituições formais ou informais, cuja complexidade põe em cheque a abordagem demasiadamente filosófica, sistêmica e idealizante de Habermas.
Pessoalmente, penso que o aparelho teórico habermasiano reduz a análise do poder e da ação estratégica às esferas formalmente institucionalizadas – sistema Estado e sistema mercado. Sendo assim, o « mundo da vida » é um conceito filosófico sobre a sociedade cuja « adequação de sentido » para com a possibilidade de « ação comunicativa » na “esfera pública” pode ser estabelecida logicamente, mas que não pode dar conta da complexidade sociológica das interações objetivas ou simbólicas de poder e de conflito social, bem como da integração social informal observável na vida pública. Melhor dizendo, insistir sobre o poder e o conflito enquanto potências sistêmicas do Estado e do mercado e, na ética da discussão e na solidariedade enquanto potências do mundo da vida, é correr o risco de negligenciar analiticamente o fato de que a desigualdade de posição, de conhecimento, de interesses e de valores são também uma realidade das interações cotidianas entre os atores sociais, ou seja, do próprio mundo da vida. Penso até que quando Vandenberghe declara em sua entrevista que no Brasil o problema é o contrário do proposto por Habermas, ou seja, aqui o sistema é que é colonizado pelo mundo da vida, está tocando nessas dificuldades do modelo habermasiano.
Numa direção diferente da habermasiana, já que se trata de um teórico político desconstrucionista que se opõe explicitamente ao “princípio regulador de uma comunicação sem entraves” (Laclau, 2000, p.31), já foi dito aqui que Ernesto Laclau também defende uma nova articulação universal/particular, resultando necessariamente na hibridização das expressões identitárias. Tal articulação seria fundamentada não nas potencialidades consensuais, como faz Habermas, mas em seu contrário: nos próprios conflitos por hegemonia entre grupos concretos. Neste sentido, o(s) grupo(s) adquirindo hegemonia, ocupa(m) contextuamente o “lugar vazio” que é o universal, a partir do que Laclau chama de “significante vazio”.
O “significante vazio” quer dizer antes de tudo que o universal não tem conteúdo fora das particularidades, mas tem a função de estabelecer equivalências entre demandas de identidades diferentes, num mundo que é “puramente diferencial” (Laclau, 2000, p. 29). Ele é um momento fluído de agregação e articulação hegemônicas, podendo realizar-se de duas maneiras. A primeira, que defino aqui como “modo potencialmente democrático”, é exemplificada pela articulação de demandas feministas, de grupos negros, de militantes por direitos civis, exigindo que cada conjunto dessas demandas abra-se a um certo grau de hibridez identitária que lhes confira uma perspectiva mais global – logo, aptas a assumir essa espécie de hegemonia hibridizada. Na segunda, que defino como “modo potencialmente totalitário”, se confere a uma reivindicação particular a função de representação universal de uma cadeia de equivalências concretas entre identidades diferentes – neste caso, tal reivindicação particular terá função hegemônica, realizando sozinha o significante vazio. Um dos exemplos que o autor coloca dessa maneira de articulação entre universal e particular é a socialização dos meios de produção – posto que esta não se apresentava como reivindicação econômica restrita, mas como representação equalizadora de uma série de demandas diferentes, exprimindo-se como orientação hegemônica para o conjunto da sociedade.Mais contemporaneamente, Laclau (2000) chama a atenção para um cenário possível desse modo potencialmente totalitário de ocupação do lugar vazio: o de uma lei que respeite as comunidades (e não mais os indivíduos) na esfera privada, ao mesmo tempo em que as decisões públicas referentes ao futuro de todas elas seriam obra de uma tecnocracia onipotente.
Nos dois modos, não saímos então do poder político entre grupos/reivindicações diferentes, sendo que o universal é uma representação funcional, necessariamente em aberto se se quer preservar a democracia, mas, em suma, um lugar vazio ocupado estratégica, hegemônica e contingentemente. De tal sorte que Laclau não nos deixa com fome teórica de conflito social. Pelo contrário, este se espraia e impregna todo o tecido social, deixando como única possibilidade de acordo democrático a contingência de estranhos Leviatãs gramscianos a serem inevitavelmente subsitutídos por outros Leviatãs gramscianos. O poder então parece ser a única categoria verdadeiramente positiva das relações entre diferentes e desiguais. Não é à toa que ler Laclau é mergulhar num texto misteriosamente ocupado por negatividades, ausências, impossibilidades... Saíndo das relações de poder, tudo são contingências, significantes vazios, plenitudes inacessíveis. O que São Durkheim não pensaria desse moço...! Quanto a mim, lendo-o costumo me beliscar pra dissipar uma angustiante sensação de sonho – ou melhor, de pesadelo.
De volta ao começo, pra compreender porque Habermas e Laclau não se entendem lá muito bem, acho importante ter em vista essa distinção de fundo em suas opções teóricas – o consenso para o primeiro; o conflito para o segundo. Isso ajuda inclusive um leitor a não se sentir burro todas as vezes em que se defrontar com semelhanças visíveis na argumentação dos dois, embora ambos estejam reiterando as incompatibilidades entre o descontrucionismo e a teoria da ética da discussão. Não sei quem foi que disse, mas parece que foi alguém do M.A.U.S.S, que Bourdieu e Boudon nunca se entenderam porque no final das contas são pontos extremos de um mesmo horizonte epistemológico. Seria este também o caso de Habermas e Laclau? Não sei, mas a verdade é que a necessária abertura das identidades à hibridização do segundo parece-me muito parecida com as condições da ética da discussão do primeiro...
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2 comentários:
Bem-vinda ao time de colaboradores desse Cazzo! E com um texto muito interessante.
E quando puder, mande a blibiografia também, cara Tâmara. (Eu mesmo, sempre termino esquecendo nos textos do Cazzo). Jonatas
Obrigada Cynthia, obrigada Jonatas, vocês são muito gentis.
Cyntia, como ando muito enrolada, acho que o Catzo precisaria de va'rias encarnações para que eu conseguisse a longa série de ocntribuições de que você fala.
Jonatas, enviei a bibliografia pra você que, realmente, da' um mal exemplo ao colaboradores.
Quero estudar melhor os dois autores e respectivos horizontes, pra redigir um artigo mais consistente. Beijos, Tâmara
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