Tâmara de Oliveira
L’identité est une "sorte de foyer virtuel auquel il nous est indispensable de nous référer pour expliquer un certain nombre de choses, mais sans qu'il ait jamais d'existence réelle" (Lévi Strauss, L'Identité, PUF, 1977).
Neste texto, farei uma comparação exploratória entre a problemática identitária na França e no Brasil contemporâneos, a partir do que chamo de suas feridas universalistas particulares. E começo com a França. Meus anos de doutorado naquele país mostraram-me rapidamente que, para um olhar estrangeiro (principalmente se for treinado em ciências sociais), as representações sociais do sistema político da França possuem um caráter sagrado. O Estado-nação e o sistema republicano amagalmam-se como expressão sacralizada da identidade nacional, não só como qualidade essencial que o distingue do resto dos outros, mas também como a grande contribuição francesa para o mundo. Ora, o Estado-nação francês enfrentou tradicionalmente a tensão moderna entre o universal e o particular a partir de um ideal de assimilação universalista, onde a diversidade e as desigualdades entre as pessoas concretas sublimavam-se pelo voluntarismo das instituições republicanas – a escola republicana sendo aí um arquétipo –, nivelando-as como cidadãos iguais em direitos e deveres. Mas La République é sempre obrigada a descer à esfera profana do mundo da vida (Habermas, 1999), onde seu ideal de assimilação universalista sofre cada vez mais com debates e políticas governamentais manifestando as ressignificações contemporâneas da distância entre igualdade universal e diversidade/desigualdades reais. Por um lado, parte da sociedade civil se engaja em lutas por políticas de ação afirmativa para setores da população negativamente integrados à sociedade francesa – notadamente, filhos ou netos de imigrantes de ex-colônias francesas. Por outro lado, ditos “républicains” de diferentes posições ideológicas, fazendo apelo aos princípios ideais de integração cidadã universalista, temem ou opõem-se a essas políticas, alegando o risco de divisões comunitárias (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008).
O atual governo francês aparece nessa dinâmica como ator incontornável. Saído de tradicional partido de direita, mas com orientação populista bem contemporânea, com perícia para embaralhar as fronteiras entre esquerda e direita francesas, por um lado concedeu cargos do ministério e de secretarias de Estado a vários franceses filhos/netos de imigrantes, bem como coloca na ordem do dia diferentes temas de ação afirmativa – como o recenseamento populacional usando critérios “étnicos” e religiosos para atuar positivamente sobre populações desfavorecidas e, a discussão sobre a pertinência de mudar de caráter sócio-econômico para “étnico”, antigas políticas públicas. Mas, por outro lado, construiu e sustenta uma das políticas de controle da imigração e dos imigrantes mais violentas da Europa atual, instalando oficialmente como objetivo a expulsão anual de mais de 20.000 estrangeiros e, sob um pano-de-fundo explícito de defesa de uma suposta identidade nacional. Tão explícito que criou um super-ministério da Imigração, da Integração, da Identidade Nacional e do Desenvolvimento Solidário, indicando que o governo francês entende a imigração como problema identitário (M. Agier, Le Monde, 11.11.2009). Legitimado em geral por eleitores da extrema-direita temerosos de que “imigrantes” destruam as tradições supostamente cristãs cidadãs e indo-européias da França, mas não só por eles, esse ministério é abominado por quem aí enxerga uma política de Estado com viés totalitário, através da repressão da diversidade francesa e da imigração, ou seja de populações desfavorecidas e, costurada pela estratégia de conquistar setores simpatizantes ou atraídos por uma extrema direita intolerante e racista. No início de novembro, o novo ministro dessa excrescência do governo francês (antigo político do Partido Socialista) lançou um Grande Debate Sobre a Identidade Nacional, desenrolando-se por enquanto através de um site recebendo contribuições de internautas, prometendo um primeiro balanço em fevereiro de 2010 e, apresentado como meio democrático para o futuro estabelecimento de políticas e normas de reforço da identidade nacional.
Segundo sondagens, esse debate é aprovado majoritariamente pela opinião pública francesa , mas ele é criticado diariamente por cientistas sociais, militantes associativos, etc., como o antropólogo Michel Agier ao escrever no Le Monde (11.11.2009) que a decisão governamental francesa de estabelecer normas identitárias, além de ser inaceitável para o saber dos antropólogos já que as identidades não são definíveis, é duplamente violenta: contra os que ela quer impor o controle de normas identitárias arbitrárias, reprimindo por exemplo experiências e memórias da parte africana, maghrebina e antilhesa da França; contra os que ela vai necessariamente excluir, já que toda norma tem por função essencial definir os a-normais e remetê-los à fronteira – neste caso, criando “o estrangeiro” nos espíritos franceses para legitimar mais políticas xenófobas de expulsão de imigrantes. Há denúncias de que o site do ministério opera um controle cerrado sobre as contribuições recebidas, excluindo também aquelas que são negativas sobre o governo e sua política de imigração ou de identidade. Além disso, o presidente Sarkozy, em discurso comemorativo sobre a resistência francesa durante a segunda guerra mundial, não perdeu a ocasião para defender essa iniciativa governamental, cujo conteúdo não deixa dúvidas de que o objetivo é o de um controle repressivo da identidade nacional, ao falar que é inadimissível que pessoas usem as políticas públicas francesas (seguridade social, escola pública) sem fazerem nada pelo país, sem fazerem tudo para encontrar emprego ou sem respeitarem professores e estabelecimentos escolares. Nem deixa dúvidas também de que o governo francês sustenta oficialmente uma rede discursiva em que as populações muçulmanas da França são apresentadas como perigosas ou incompatíveis com a identidade nacional: integra numa mesma fala a incompatibilidade entre a república francesa, a burka e a sujeição das mulheres – apesar do caráter insignificante do uso da burka no território francês e como se a sujeição feminina fosse marca exclusiva da identidade muçulmana. Ou seja, controlar policial e juridicamente, além de imputar um sentido étnico-religioso, senão racial, à identidade nacional, como denuncia o antropólogo Michel Agier, aparecem como sentido fundamental da política estatal identitária francesa.
Muitos intelectuais articulam essa problemática identitária assustadora ao longo processo de descolonização do mundo francofônico, a partir do qual a diversidade da população francesa significa também que sua história de dominação colonial entrou em seu território: os “selvagens” tornaram-se franceses a partir de meados do século passado. Sinteticamente, podemos dizer que a França contemporânea vive o dilema de um ideal republicano universalista, numa sociedade resistente à integração de franceses com ascendência nas ex-colônias (R. Castel, 2007). O sociólogo R. Castel (2007) insiste ainda sobre o caráter estigmatizante pelo qual se define comumente na França jovens residentes das periferias francesas – aqueles que viraram notícia mundial em 2005, durante as semanas em que grandes cidades francesas viveram suas expressões violentas de revolta: imigrantes de terceira geração, mostrando que a emigração de seus avós está colada simbolicamente às suas peles, ad infinitum.
E o que o Brasil tem a ver com isso? Ora, a consolidação da república brasileira foi atravessada por um princípio de redenção do passado escravista colonial e monárquico, o do mestiço claro como identidade nacional que, articulado a uma miscigenação histórica concreta, consolidou um ideal de “democracia racial”. Genealogicamente, esse ideal possui dois componentes complementares: um racismo tácito fenotípico-cromático e um elitismo (desprezo) de classe, com uma identificação sociológica de pobres-mulatos-negros, classificando-os como brasileiros plenos, mas inferiores. Costumo dizer que esse ideal de democracia multicolorida brasileira pode ser bem compreendido como ideal de totalidade hierárquica do branco até o preto – no sentido de Louis Dumont (1983) –, significando que superiores, intermediários e inferiores compõem uma totalidade interdependente, aquela da identidade nacional (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008). Sobre isso, podemos sempre lembrar de uma comparação que Caetano Veloso gosta de fazer entre ele e Gilberto Gil : «eu sou um mulato suficientemente claro para ser considerado branco em todo o Brasil ; Gil é um mulato suficientemente escuro pra ser considerado negro em todo o Brasil ». Embora ache que Caetano Veloso seja um aficionado de declarações complicadas (pra não dizer absurdas), admito que sua comparação exprime critérios cromáticos de classificação extremamente familiares em nosso contexto. Existem brasileiros que discordam da distinção por ele feita que parece negar uma lógica de classificação “racial”, mas é difícil encontrar um brasileiro incapaz de compreender imediatamente porque alguém classifica um indivíduo ao mesmo tempo como mulato e branco ou como mulato e negro (Oliveira 2009; Oliveira, 2008)
Na verdade o ideal de “democracia racial” à brasileira sempre foi debatido. Já a partir dos anos 50, seus críticos sublinhavam a realidade das desigualdades « raciais » no Brasil diante dessa igualdade fantasiosa sob abordagens culturalistas; entre esses críticos, realçamos o norte-americano Marvin Harris (1964) e o brasileiro Florestan Fernandes (1978). Mas em termos concretos, apenas a partir dos anos 80 assiste-se a um processo de desconstrução desse ideal de “democracia racial ». Com efeito, é nessa época que parte do movimento negro se reconfigura num sentido identitário, reivindicando as raízes africanas do Brasil e dos brasileiros. Sendo assim, não se trata mais somente de denunciar a « democracia racial » como mito dissimulador de relações de dominação, mas de abordar as desigualdades sociais partindo-se das discriminações “raciais”. Constrói-se então todo um processo social de identificação entre racismo, desigualdades sociais e demanda por identidade « étnico-racial », consolidando-se institucionalmente pela criação da SEPPIR em 2003 sob o governo Lula, órgão diretamente ligado à Presidência da República e encarregado das políticas públicas de igualdade “racial” (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008).
Pensemos por exemplo no constante debate sobre o projeto de lei para instituir o Estatuto da Igualdade Racial, alguns reivindicando-o como política de criação de uma verdadeira democaracia “racial”, outros apresentando-o como projeto de racialização jurídica, dicotômica e potencialmente conflituosa da sociedade brasileira. Em seguida pensemos no debate em torno da regulamentação legislativa da política de cotas raciais nas universidades. Finalmente, têm-se a dinâmica da regulamentação crescente da propriedade de terras para quilombolas. Polarizando o debate, pode-se distinguir dois partidos: o dos universalistas que, criticando uma identificação entre luta social por direitos e reivindicação identitária “étnico-racial”, condenam uma suposta escolha do modelo anglo-saxão de integração social – liberal-individualista e racializado (Fry, 2005 ; Souza, 1996); o dos multiculturalistas que, criticando o “mito da democracia racial brasileira”, denunciam a suposta resistência de seus adversários contra políticas públicas concretamente democráticas e respeitosas da diversidade sócio-cultural e “étnica” do país (Adesky, 2004). Essas discussões não parecem apaixonar realmente nossa opinião pública. Mas o debate mobiliza atores sociais importantes – movimentos sociais organizados, universitários, intelectuais, artistas – compondo grupos de pressão sobre a esfera política e em interação com mídias tradicionais ou novas, todos atravessados pelas condições de publicidade e de mercado de que fala Lívio Sansone (2004) sobre a « etnicização” nas sociedades globalizadas (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008).
Considero que essa dinâmica pode ser pensada como um problema potencial no sentido construtivista de Berger e Luckmann (1996), já que a possível passagem do Brasil a um sistema de classificação “étnico-racial” dicotômica não é facilmente adequada à sobrevivência de seu ideal de miscigenação. Neste sentido, eu já afirmei que no projeto de lei para o Estatuto da Igualdade Racial, assim como em vários discursos de militantes/simpatizantes próximos das reivindicações identitárias, em instituições como o DIEESE e mesmo em manchetes e matérias de mídias não necessariamente engajadas nessas reivindicações, percebe-se facilmente uma tendência a classificar pretos e pardos numa mesma categoria (a dos afro-descedentes), racializando a sociedade em dois grupos fundamentais, os brancos e os negros, às vezes acompanhada explicitamente de uma compreensão da miscigenação da população brasileira como mero mito de dominação ( Oliveira, 2009; Oliveira 2008).