Por Elizabeth Hirsh e Gary A. Olson
Originalmente publicado em JAC Vol. 15 No. 2, 1995. Disponível em: http://www.jacweb.org/Archived_volumes/Text_articles/V15_I2_Hirsh_Olson_Harding.htm
Gentilmente cedido ao Cazzo por Lynn Worsham, editora do JAC
Tradução de Cynthia Hamlin, num arroubo de generosidade.
Para a filósofa da ciência Sandra Harding, as tradições dominantes da ciência ocidental sofrem de pouca de objetividade. Como uma das maiores expoentes do que tem sido chamado “teoria da perspectiva feminista” (feminist standpoint theory), Harding argumenta que a objetividade é maximizada, não ao se excluir fatores sociais da produção de conhecimento – como o método científico ocidental tem se proposto a fazer – mas, precisamente, ao se “iniciar” o processo de pesquisa de uma localização explicitamente social: a experiência vivida daquelas pessoas que foram tradicionalmente excluídas da produção de conhecimento (por exemplo, mulheres). Essa inovação metodológica volta os padrões tradicionais de ciência e de filosofia contra si mesmos por meio daquilo que Harding descreve como uma estratégia “desconstrutiva”. Ao tomar como ponto de partida – e não como um “fundamento” no sentido tradicional – a experiência de “pessoas de cor e gays, e lésbicas, e pessoas das classes trabalhadoras, e pessoas de várias etnicidades”, a epistemologia da perspectiva feminista busca produzir uma objetividade mais forte, um corpo de conhecimento mais amplamente útil e uma saída para o impasse entre o fundacionalismo, por um lado, e o relativismo, ou o experiencialismo ingênuo, por outro.
Como corolário, a teoria da perspectiva feminista implica uma obrigação epistemológica e ética por parte dos grupos dominantes de teorizar, de forma tão rigorosa quanto possível, sobre suas posições enquanto sujeitos de conhecimento socialmente situados. Transformada desta maneira em um processo que Harding chama de “reflexividade forte”, a posição dominante pode, ela própria, tornar-se um recurso positivo na produção de um conhecimento “mais amplamente útil”. Como essas formulações sugerem, a teoria da perspectiva feminista compartilha o distanciamento pós-moderno em relação às epistemologias fundacionais sem, no entanto, abandonar a busca por aquilo que Harding chama de “uma concepção mais compreensiva acerca de como as coisas funcionam”. Para Harding, o feminismo “é um pós-modernismo”, portanto, no sentido de que o pós-modernismo é “uma parte da modernidade ... uma espécie de desenvolvimento tardio da mesma”. De forma semelhante, Harding reconhece que sua própria insistência na linguagem da “objetividade forte” representa uma tentativa “calculada” de se apropriar da “retórica” dominante da ciência com o propósito de “modificar a forma como a ciência é feita”, mas também enfatiza que a noção de objetividade “apresenta possibilidades progressivas” em relação àquilo que ela chama de um sentido substantivo.
Para Harding, a análise retórica joga um papel vital nos novos estudos sobre a ciência porque estes estão tão preocupados com os “significados da ciência” para não-cientistas quanto com questões de método científico e outros tópicos mais tradicionais de análise. Ao mesmo tempo, os estudos sobre a ciência foram enriquecidos com o contato com disciplinas como a psicanálise, a retórica e a crítica literária, nas quais, por meio de contrastes com a tradição da filosofia analítica, um texto é concebido como “algo cujo significado é criado em um contexto histórico de interações com diferentes leitores e diferentes períodos históricos”. A afinidade da teoria da perspectiva feminista com essas disciplinas é talvez mais aparente na idéia de reflexividade forte, onde um sentido do papel constitutivo da audiência e da recepção é central. Harding prefere falar de “apropriação transdisciplinar” do que de “dissolução de fronteiras disciplinares”, e enfatiza que tal apropriação é “um elemento crucial na forma como o conhecimento avança”. O quadro de referência da teoria da perspectiva feminista gera insights em uma ampla gama de questões discutidas na entrevista abaixo. Por exemplo, da mesma forma que a teoria da perspectiva feminista nega que o grupo dominante detém um monopólio sobre a objetividade, Harding sugere que nenhum grupo particular detém monopólio sobre a competência (literacy) – científica ou outra. A tão propalada “crise” das competências deve ser colocada no contexto das “competências múltiplas em competição” que compreendem a cultura americana contemporânea. Além disso, Harding “inverte a metáfora” da (in)competência científica, afirmando que “as pessoas de ciência mais educadas do ocidente são incompetentes acerca da própria natureza de nossos projetos científicos” – implicitamente porque suas posições, social e historicamente situadas, permanecem inadequadamente teorizadas. A teoria da perspectiva feminista pode ser percebida como parte da luta contra a incompetência da elite. As observações de Harding sobre a experiência de ensino no ambiente das universidades públicas também são informadas pela noção de objetividade e por um sentido retórico de audiência. O professor, em tal ambiente, freqüentemente encontra um corpo de estudantes étnica e economicamente diversificado para quem suas explicações devem, para propósitos práticos, parecer não apenas compreensíveis, mas “razoáveis”. Esta pressão pedagógica e retórica a leva a dar um passo para trás e refletir sobre o quadro de referência que ela compartilha com seu próprio grupo, mais uma vez, efetivamente “invertendo” a metáfora da competência ou da responsabilidade a partir da perspectiva daqueles marginalizados por ela.
Harding sugere que a perspectiva dominante dos professores pode ser transformada na relação com uma população de estudantes heterogênea e, de forma semelhante, que a perspectiva masculina dominante pode ser transformada em um recurso positivo para a mudança e a produção de novos conhecimentos por meio de um processo de cuidadosa auto-reflexão que parte do feminismo. Mas dado que “os grupos dominantes sempre pensam que sabem melhor”, o papel dos feministas (e futuros feministas) do sexo masculino é “difícil e problemático”, assim como “crucial e ... excitante”. Ao explicitar as dimensões ética e epistemológica da teoria da perspectiva feminista, Harding afirma que “os homens terão que se decidir acerca de seus próprios feminismos, da mesma forma que as pessoas brancas terão que se decidir acerca de seu próprio antirracismo”.
Relacionado ao papel problemático dos homens no feminismo está o status problemático do próprio gênero. Assim como o conceito de “raça” para os afro-americanos, o conceito de gênero para as mulheres tem sido tanto uma fonte de opressão quanto de força. Em lugar de teorizarmos o gênero especialmente com base no modelo marxiano de classe – como algo a ser abolido – nossas discussões sobre gênero devem ser informadas por uma consciência desta história dupla, afirma Harding. Ao passo que a literatura feminista tem apresentado a noção de masculinidade “primeiramente como um problema”, seria melhor ter-se em mente a dupla natureza de todas as noções de gênero, incluindo-se “até aquelas convencionais e problemáticas”, tais como a maternidade. Além disso, como a teoria da perspectiva feminista enfatiza, a posição social a partir da qual tais articulações são efetuadas permanece sempre decisiva: uma pessoa branca dizer a uma pessoa negra que raça deve ser abolida porque é “um sistema hierárquico socialmente construído” não contesta, mas efetivamente reforça, aquela hierarquia. Harding explicitamente reconhece que a teoria da perspectiva feminista é, ela própria, “historicamente situada” e derivada de uma “tradição cientificamente embasada” e “particular” do pensamento ocidental- nomeadamente do Iluminismo, por meio do marxismo. O que a teoria da perspectiva feminista pode fazer conceitualmente, e a audiência para quem ela pode falar efetivamente, é portanto necessariamente limitado: “tentar justificar um trabalho feminista com base na teoria da perspectiva feminista ... para pesquisadores empíricos na biologia ... não é necessariamente uma boa estratégia”, ela afirma. Apesar disso, a teoria da perspectiva feminista pode contribuir para criar um sujeito novo e coletivo de conhecimento, “não o tipo de sujeito individualista que se torna gênio sozinho e nem o tipo que se junta a uma comunidade e nunca tem um pensamento fora dela”, mas um sujeito que pode “fazer história e conhecimento” de forma diferenciada.
P: A senhora escreveu muitos artigos, capítulos e livros direcionados a acadêmicos de diversas disciplinas. A senhora pensa acerca de si mesma como escritora?
R: Sim, penso. Minha professora de redação da sétima série escreveu no livrinho de memórias que seus colegas escrevem coisas quando você está para se formar, “Sandra, você será uma grande escritora”. Eu achei aquilo tão misterioso: como essa pessoa poderia saber disso? E por três décadas aquilo não significou nada para mim. Eu acho que justamente porque escrevo para pessoas em diferentes disciplinas presto muita atenção ao escrever, não apenas em dizer o que estou pensando, mas em tentar direcionar minha escrita para uma audiência ou outra e em pensar sobre o lugar de onde meus leitores vêm. Eu tento basear meus escritos nas literaturas que são familiares às pessoas para quem estou escrevendo. Assim, eu penso acerca de mim mesma como uma escritora; é um processo muito consciente. Mas eu acho que vir da filosofia analítica é um obstáculo grande, para qualquer pessoa que não os filósofos analíticos, para se tornar um bom escritor. Por um lado, sou criticada pela minha escrita: não-filósofos a acham chata e pesada. Eu lembro de uma resenha no The Nation que dizia, “infelizmente, um grande problema com este livro é seu estilo pesado”. O chefe do meu departamento disse “esse cara não lê filosofia”. Por outro lado, os filósofos não percebem minha escrita como suficientemente filosófica: ela faz uso de metáforas e faz coisas que os filósofos analíticos não devem fazer.
P: Nós em Literatura Inglesa, estamos interessados nos processos de escrita de acadêmicos e de escritores estabelecidos. A senhora poderia descrever seu processo de escrita típico?
R: Eu geralmente começo com um argumento em mente – alguma perspectiva que estou criticando, não necessariamente um indivíduo, mas algum pressuposto ou afirmação – e desenvolvo um pequeno parágrafo argumentativo. Então, o início do processo é um rascunho e um pequeno resumo. Depois começo a escrever. Descobri que existem duas coisas pouco comuns acerca da forma como escrevo, pelo menos ao conversar com outras pessoas (embora eu tenha a certeza de que outras pessoas também façam isso, eu não sou a única). Uma é que eu não escrevo do início ao fim. Faço o rascunho, depois faço pequenos resumos nas diferentes seções e depois começo pela seção que acredito ser a mais difícil de escrever. Assim, vou de um resumo para um rascunho, para, digamos um artigo de quarenta ou sessenta páginas e depois escolho o aspecto mais problemático – a coisa que não consigo ver, a que é menos clara para mim – e tento escrever aquela parte em uma versão de, digamos, dez páginas. (Tento escrever um artigo que seja pelo menos 50% mais longo do que o que preciso ter ao final). Depois volto e trabalho nas outras seções, aumentando-as e mantendo-as em equilíbrio com as outras. Eu ajusto o rascunho ao texto, e preciso manter o rascunho lá o tempo todo, senão me perco. Assim, o processo de escrita para mim é um processo de aprendizagem. Eu não componho o artigo inteiro na minha cabeça e depois escrevo, como fazem algumas pessoas. Trabalhar com argumentos é um processo de aprendizagem. A outra coisa que faço é jogar fora um monte de primeiros rascunhos. Às vezes jogo fora três rascunhos de um artigo (fiz isso recentemente). Eu jogo eles fora e então me sento para começar de novo. Eu não olho para eles e pego coisas deles.
P: A senhora não tenta salvar partes desses rascunhos?
R: Bem, nem sempre os jogo fora. Algumas vezes sinto que eles não são fortes o bastante, que não são poderosos o bastante: ou não estão se endereçando à audiência correta, ou não estão organizados da forma correta para aquela audiência particular, ou são geralmente muito conservadores. Freqüentemente, no processo de escrever o primeiro rascunho e deixá-lo de lado por um tempo (pelo menos três semanas, talvez mais), eu me dou conta de que o cerne do artigo não está onde eu achava que estava, que ele está muito chato ou muito difícil de fazer, que está em outro lugar. Neste caso eu simplesmente guardo o que estava fazendo. Os diretórios do meu computador estão cheios dessas diferentes versões de artigos e depois eu posso tirar um parágrafo ou uma seção de um deles depois que tenho um segundo artigo bem formulado. Mas começo o segundo artigo da mesma forma que comecei o primeiro.
P: Por muitos anos a senhora foi professora de uma grande universidade pública. De que forma sua experiência como professora neste ambiente teve impacto em sua teoria?
R: Em primeiro lugar isso me forçou a pensar com mais clareza sobre raça, classe e sexualidade. Claro que essa não é a única fonte daquele pensamento mais reflexivo que muitos de nós estão usando nos dias de hoje. Ele certamente está lá no trabalho de nossos parceiros e de nossos colegas, mas os estudantes são importantes. É o olhar nos rostos dos estudantes da UCLA, por exemplo, quando uso a palavra raça e percebo que tenho claramente em mente descendentes de escravos, mas de escravos afro-americanos; no entanto, estou em uma sala que é talvez 50% hispânica e de americanos de origem asiática. A diversidade dos estudantes é muito maior do que a diversidade de colegas em muitas áreas, certamente na minha área. Claro, o feminismo negro é muito poderoso e eu aprendi muito dele e não estou tentando desvalorizá-lo, mas existe algo na presença contínua, na sala de aula, de estudantes para quem uma análise deveria parecer razoável mas que freqüentemente ela não parece. Então, eu diria que esta é uma das principais formas. Outra é que os estudantes são muito parecidos com minhas audiências e me ajudaram a pensar acerca das audiências, no sentido de que é importante aprender a explicar idéias complexas e difíceis de formas que capacitem os estudantes a apreendê-las. Eu não acho que nada disso seja peculiar à minha pessoa; todos nós fazemos isso. Mas eu diria que isso é muito útil para desenvolver novas idéias. Eu acho que o trabalho feminista tende chegar imediatamente nas salas de aula, talvez mais rápido do que outros trabalhos filosóficos, no nível de graduação, então existe a necessidade de torná-lo disponível mais rápido. Eu geralmente intercalo, nos meus cursos de teoria feminista de nível intermediário, questões nas quais estou pensando em minha própria escrita. Isso é mais difícil de fazer se você trabalha com áreas mais tradicionais da filosofia, embora não seja impossível. Então eu diria que trabalhar numa universidade pública tem impactado em minha teoria de duas formas: na minha tentativa de tornar minha escrita mais compreensível e em minha tentativa de ter em mente quem são os seres humanos, que eles não são apenas pessoas como eu.
P: Os cientistas naturais nem sempre são receptivos à filosofia da ciência, e os filósofos da ciência nem sempre são receptivos aos insights do feminismo. Dada sua situação como uma filósofa da ciência feminista, existe um elemento polêmico em seu trabalho?
R: Claro. Vamos pegar as duas partes dessa questão. A primeira parte é a relação entre ciência e filosofia da ciência. Certamente que isso é uma questão, mas eu acho que ainda pior é a ignorância (não estou culpando indivíduos; é um problema na forma como os cientistas são treinados) acerca dos estudos sociais da ciência. Eles quase não estudam sociologia da ciência. A filosofia da ciência, em alguns aspectos, não é tão problemática para eles porque eles assumem que se trata de uma filosofia da ciência empirista, de qualquer forma. Você pode estar fazendo uma filosofia da ciência mais pretensiosa ou mais complexa, e eles podem não entender e perguntar, “ do que diabos você está falando?”, mas ela não lhes parece tão ameaçadora ou comprometedora para seus próprios projetos quanto a anticiência. Mesmo se você considerar Thomas Kuhn e a história da ciência e sua discussão sobre a importância do dogmatismo na ciência e das mudanças paradigmáticas como mudanças irracionais. Isso não é como os cientistas pensam acerca de seu próprio trabalho. Não é essa a história que as tendências empiristas tradicionais da ciência contam. E Kuhn é bastante conservador. Ele não é um radical furioso; ele certamente não se caracterizaria desta forma, nem ninguém o faria. Ele é extremamente importante e valioso, mas os estudos da ciência sociais e culturais recentes são realmente difíceis para os cientistas. É assim que eu vejo tanto os filósofos quanto os cientistas tendo problemas com o meu trabalho.
Deixe-me colocar a segunda parte da pergunta neste contexto, porque as abordagens feministas da ciência são parte da história e da sociologia, assim como da filosofia, da ciência. Se eles não tiverem tido nenhum contato com o trabalho de Bruno Latour, ou a construção social da ciência, se eles não tiverem tido nenhum contato com as formas não feministas de estudos sociais da ciência, então o feminismo vai lhes parecer realmente estranho porque ele é político não apenas no sentido que é feminista e, portanto, uma ameaça à ciência (essa é a forma como eles se referem ao feminismo), mas porque é também sociologia da ciência, o que é altamente desvalorizado tanto pelas ciências naturais quanto pelas tradições filosóficas que se percebem como parteiras das ciências, para usar a expressão de Locke. É daí que vem muita da crítica à filosofia da ciência feminista por parte de filósofos e de cientistas: vem de uma incapacidade de localizá-la em relação a outras tendências intelectuais no pensamento contemporâneo com as quais eles não estão familiarizados ou que desvalorizam.
Então, existe um elemento polêmico no meu trabalho? Claro. Eu estou tentando contribuir para mudar a maneira pela qual a ciência é feita, para melhorar as condições das mulheres. Existe algum filósofo que não seja polêmico? Filósofos tentam ser polêmicos; tentam discutir com as pessoas. Então esta é apenas uma forma de polêmica. Certamente as filósofas feministas não são únicas em relação a isto. Afinal, John Rawls ou outras pessoas trabalhando em filosofia social e política também são, em certo sentido, polêmicos. Seus escritos podem ter um tom muito calmo, mas eles estão preocupados em dar voz a um certo tipo de teoria acerca de como a sociedade deveria ser estruturada e assim por diante.
P: Está claro que o feminismo fez contribuições substanciais à crítica literária nos últimos 25 anos. A crítica literária teria uma contribuição equivalente para a pesquisa feminista?
R: Eu acho que sim, em particular, falando de maneira bastante ampla, na construção social do conhecimento. Muitos de nós, que trabalhamos nos estudos sobre a ciência, aprendemos coisas a partir das análises textuais na literatura. Nós lutamos para compreendê-las, se formos tão ignorantes quanto eu era acerca da forma de se ler aquelas literaturas. A idéia de se olhar para um texto como algo cujo significado é criado em um contexto histórico de interação entre diferentes leitores e diferentes períodos históricos, por exemplo, certamente não vem das tradições analíticas da filosofia das quais eu vim e eu acho que ela gerou importantes contribuições para as análises feministas das ciências naturais e sociais. Ela é muito importante entre aqueles que estão preocupados com as tendências construtivistas (claro que tais tendências também vêm das ciências sociais), e tem sido extremamente importante para mim. Normalmente me surpreendo quando encontro pessoas em literatura lendo meu trabalho porque sempre pensei que era eu quem estava lendo seus trabalhos. Eu não sei o que estão aproveitando de meu trabalho, mas me parece interessante que haja algum tipo de troca acontecendo.
P: A senhora sugeriu que a psicanálise, a crítica literária e outras disciplinas interpretativas são necessárias para que se possa teorizar os efeitos da simbolização de gênero. A senhora poderia elaborar essa questão, especialmente em relação à retórica e à critica literária?
R: Bem, deixe-me focar nas ciências naturais. As tradições dominantes na ciência sempre evitaram lidar com os significados da ciência. Elas não gostam de lidar com os significados da ciência, os significados dos termos científicos. Elas tentaram restringir suas preocupações às referências da ciência. Elas consideram “não-cientificos” os significados da ciência, as instituições, as tecnologias, as aplicações e uma série de aspectos da ciência relativos à cultura e à prática. A partir dessa tradição, não são apenas os cientistas e os filósofos que acreditam nisso, mas também o público em geral. E, no entanto, uma parte importante das críticas feministas da ciência diz respeito aos significados da ciência, à simbolização de gênero. Nós aprendemos a falar disso por meio da psicanálise e dos textos literários. Por exemplo, tanto Susan Bordo, em “The Flight to Objectivity”, quanto Evelyn Keller usam a psicanálise de forma bastante sofisticada a fim de falarem das pulsões psíquicas que funcionam ao se fazer ciência e ao se buscar os recursos sociais para o avanço da ciência em momentos históricos distintos. Elas não estão colocando os cientistas no divã; estão colocando uma determinada época no divã e olhando para, digamos, o que “mecanismo” significava para as pessoas entre os séculos XV e XVII. Não se pode prescindir da psicanálise. Por exemplo, Carolyn Merchant, em “The Death of Nature”, não se baseia de forma alguma na teoria psicanalítica, mas fala sobre os significados que a mudança do organicismo para o mecanicismo teve para as pessoas e como a simbolização de gênero foi parte dessa mudança. Assim, a retórica da ciência e a retórica da filosofia da ciência estão entre os objetos com os quais as críticas feministas têm se preocupado.
Como é que os recursos são captados? De que formas a ciência é apresentada às pessoas? Como os cientistas falam entre si? Como falam em público? Inicialmente, havia um estranhamento sobre o porquê dessa “fala sobre sexo” em uma área que supostamente só se preocupa com as leis abstratas da natureza, com as quantificações matemáticas rigorosas etc. Percebe-se que o trabalho inicial de Keller e de outras estava apenas questionando “O que está havendo aqui? Será que esses caras são sexistas?”. Mas ficou claro que essa não era a questão. Quero dizer, claro, por que não?, havia sexismo: mas a questão dessa simbolização de gênero dizia mais respeito aos recursos culturais que estavam sendo usados para desenvolver um projeto particular. Eu não estou acostumada a falar sobre isso em termos de retórica da ciência, mas eu acho que a questão é essa mesmo. Trata-se de uma discussão sobre a retórica da ciência e, claro, aqui as tradições da crítica literária têm sido úteis ao nos ajudar a compreender como fazer isso e o que está e o que não está em questão nesse tipo de análise. Eu não estou dizendo que voltei lá para estudá-las; as pessoas meio que as aprenderam por osmose e começaram a utilizá-las.
P: Na introdução de “The ‘Racial’ Economy of Science: toward a democratic future”, a senhora sugere que “os cientistas e outros membros de grupos dominantes no ocidente sofrem de uma espécie de incompetência científica” no sentido de que “a compreensão da ciência como um processo inteiramente social” tem sido atrapalhada pelo “eurocentrismo e androcentrismo de muitos cientistas” e legisladores. De que forma a senhora percebe seu próprio trabalho como um tipo de luta contra este tipo de incompetência?
R: Meu trabalho se junta a outras filosofias e estudos da ciência que tentam colocar a ciência em seus contextos históricos. Eu não sou uma historiadora da ciência ou uma socióloga da ciência; essas pessoas fazem isso muito bem, mas nós usamos seus trabalhos. E, como você sabe, meu trabalho inicial tentou colocar essa questão no contexto dos projetos de gênero. O trabalho para o qual tenho me voltado agora é em parte feminista, em parte para todas as pessoas. Trata-se de uma primeira tentativa para compreender que existem questões muito importantes acerca da localização social da ciência que não tem sido abordadas nas críticas feministas ocidentais, ou têm sido abordadas apenas de forma marginal, e ajudar aos ocidentais (e por esse termo eu quero dizer qualquer pessoa que habita o ocidente) a compreenderem como os sucessos da ciência ocidental são, em parte, dependentes dos sucessos da expansão européia (as novas histórias do Terceiro Mundo que têm aparecido recentemente claramente dizem respeito a isso e, de fato, nos permitem reler algumas das histórias ocidentais e identificar a estória de forma evidente), além de compreender o valor ignorado de outras tradições científicas. Os livros de Joseph Needham sobre as ciências da China começaram a sair no final dos anos de 1950. Eles são bem conhecidos pelos historiadores da ciência e dizem respeito à grandeza daquelas tradições científicas e ao eurocentrismo dos principais historiadores do ocidente, a quem ele acusa reiteradamente de insistir que a ciência é apenas uma invenção do ocidente e que nunca existiu em qualquer outra sociedade. Ele mostra de forma reiterada que isso não é verdade. O que é interessante é que estamos em um momento de poscolonialismo, quando novas críticas estão emergindo, mas existem algumas mais antigas. Nedhham fez suas pesquisas durante a Segunda Guerra Mundial: ele estava nas trincheiras e acabou conhecendo e trabalhando com historiadores da ciência, engenheiros e técnicos chineses e começou a desenvolver seu trabalho aí. Eu acho que neste momento da história faz-se necessário que o ocidente, e as feministas ocidentais também, alcance uma compreensão muito mais realista da relação entre a ciência ocidental e o expansionismo europeu do passado e do presente atual e que olhem para o passado e em direção a essas outras tradições científicas, de forma que ele possa vislumbrar outras ciências para o futuro. (As pessoas geralmente pensam: “o que você quer dizer com outras ciências? O que poderia ser uma outra ciência?” A palavra ciência tornou-se tão identificada com a tradição ocidental dos últimos 300 ou 400 anos que ocasionalmente afirma, falsamente, que tem o direito exclusivo de reclamar as raízes de Aristóteles e das sociedades gregas, como se a sociedade islâmica na qual a cultura ocidental foi guardada por centenas de anos também não tivesse o direito de reivindicar suas raízes nas sociedades gregas antigas). Essa visão expandida nos possibilitará compreender quem está falando quando falamos com vozes científicas ou com vozes da “filosofia da ciência” a partir do ocidente. Essas não são vozes universais; nossas vozes emergem de uma tradição histórica particular que tem relações determinadas com uma variedade de outras tradições científicas, e nós ignoramos isso. Assim, eu vejo meu trabalho como uma luta contra a incompetência científica, assim como eu acho que todo intelectual luta contra a incompetência. Essa é uma forma de colocar a questão, mas eu acho que pode ser útil inverter a questão aqui: geralmente, a incompetência científica refere-se às pessoas de cor e a meninas que abandonam as aulas de ciência, certo? Vamos inverter a metáfora e dizer, “veja, existe um outro contexto no qual aqueles que são melhor educados na ciência ocidental são incompetentes em relação à própria natureza do nosso projeto científico e às possibilidades de desenvolvê-lo de formas mais progressivas; nós achamos que a maneira na qual fazemos as coisas é a única maneira possível”. Então, eu me vejo preocupada com a questão da competência de formas variadas.
P: Muitos comentadores reclamam que os Estados Unidos estão passando por uma “crise de competência”, e com isso eles geralmente querem dizer uma incapacidade generalizada de ler e escrever o inglês padrão. Alguns teóricos da alfabetização, no entanto, afirmam que isso só é o caso se definirmos a competência como aquela versão da habilidade lingüística privilegiada pela cultura dominante, e insistem que precisamos entender que, na verdade, existem competências múltiplas que competem entre si. O que a senhora pensa acerca disso?
R: Sim, eu penso que existem competências múltiplas e tenho muita raiva de europeus que gostam de insistir sobre esta crise de competência porque suas colônias são, na maior parte, externas, e as nossas tem sido internas (elas também foram externas, mas agora são internas). Se os europeus tivessem a mesma quantidade de pessoas de outras culturas, com suas tradições culturais e lingüísticas, entrando em seus países, eles não seriam tão arrogantes acerca dessa questão. Eu tenho certeza que existem problemas nas escolas em relação a taxas decrescentes de alfabetização. Não estou tentando negar que a qualidade das escolas do nível médio e do ensino fundamental tem decaído; até onde vejo, decaiu, mas isso é somente uma impressão. Certamente que os estudantes do primeiro período que são brancos e de famílias burguesas de Delaware me parecem ter um nível extremamente baixo de competência. Não sei se isso se deve à televisão. Eu ouço o que todo mundo diz, e não tenho idéia, mas acredito que existem muitas pessoas neste país que têm outras tradições de competência. Eu não acho que seja justo ou que as pessoas saibam do que estão falando quando insistem que não ter domínio sobre o inglês do Rei deveria contar como incompetência. Essas tradições de competência lingüística são particularmente visíveis na Califórnia, onde estou freqüentemente na presença de falantes de inglês não nativos e de pessoas que escolhem falar em outra língua, que não o inglês. E a maioria deles são cidadãos deste país, mas aquela é a língua que eles escolhem falar.
Então, sim, existem competências múltiplas. Eu acredito que uma coisa que motiva a visão contrária é a questão “como nós podemos ter uma esfera pública se as pessoas não podem conversar umas com as outras?”. Esse é um problema muito difícil e eu não sei a solução para ele. Claro, existem outros países que têm esse problema; nós não somos únicos. Por exemplo, a Suíça (onde acabo de passar 3 meses), com suas tradições de francês, italiano, alemão e romanche, mas que ainda consegue ter discussões nacionais. Na Europa, agora, existe uma secretaria de uma das organizações da Comunidade Européia (esqueço qual) para as línguas e culturas minoritárias e que tem distribuído muitos financiamentos. Li um artigo em um dos grandes jornais suíços (não pude acreditar) sobre como o governo francês está financiando eventos culturais e ensinando nas escolas nas línguas minoritárias, e acontece que existem 5 ou 6 línguas minoritárias na França. Então, nós podemos aprender algumas coisas com a Europa. Existem histórias diferentes daqueles multiculturalismos em relação aos nossos e, certamente, onde eles têm imigrantes turcos ou do sul da Europa vindo para os países europeus, eles têm muitas das respostas que nós temos aqui; mas, por outro lado, eles têm essa longa tradição de culturas multi-linguísticas e de multi-competências. Eu acho que talvez precisemos repensar toda essa questão.
P: Em muitos de seus trabalhos, a senhora argumentou que “maximizar a objetividade na pesquisa social requer não uma neutralidade de valor total, mas, ao contrário, um comprometimento do pesquisador em relação a certos valores sociais”. Depois a senhora demonstra que “a pesquisa social dirigida por certos valores sociais pode ser mais objetiva do que a pesquisa em que esses valores não jogam nenhum papel”. A senhora poderia falar um pouco sobre essa noção de “objetividade forte”?
R: Em primeiro lugar, existe um certo espectro de valores sociais (se você quer falar disso dessa forma) e de interesses que os padrões convencionais de objetividade não podem alcançar – nomeadamente, os valores ou interesses compartilhados por uma, deixe me colocar nesses termos, “comunidade científica” inteira. Este não é um problema que o feminismo ou, certamente, que eu, tenha inventado. Trata-se daquilo que Kuhn está falando quando está discutindo as mudanças paradigmáticas; é o problema da episteme. Existe uma longa história de suspeita no ocidente, de cerca de 3 décadas ou mais, de que a objetividade que o ocidente valoriza tanto é furada e que as formas padronizadas de se maximizá-la não têm sido eficientes. Mais uma vez, estou tentando indicar que não foram apenas os grupos “radicais” que levantaram essa questão; são pessoas como Richard Bernstein, por exemplo. Em seu “Beyond Objectivism and Relativism” ele faz uma revisão do problema em uma variedade de tendências na filosofia e na ciência social que são associadas a uma noção de objetividade e, em cada caso, as coisas parecem chegar ao mesmo ponto: os paradigmas, os quadros de referência conceituais no seio dos quais os métodos são definidos. Esses métodos não podem então inverter suas lentes e olhar para o aparato conceitual que os gerou, certo? E isso, claro, tem sido o tipo de argumento fortemente embasado no feminismo, no antirracismo etc. A questão não é o sexismo dos indivíduos; são os pressupostos androcêntricos dos esquemas conceituais da filosofia, da sociologia, da economia.
Deixe-me dar alguns exemplos de minha própria disciplina. Preste atenção às concepções dominantes de natureza humana nas tradições filosóficas. Aristóteles diz que o homem é um animal racional, no entanto, as mulheres têm sido persistentemente descritas por ele e por todo mundo a partir de então como emocionais, preocupadas com suas paixões, irracionais. Então nós diríamos que não se pode adicionar “mulheres como animais racionas” a um esquema conceitual que foi primariamente definido em oposição ao feminino. No fim das contas, uma mulher racional é, em certo sentido, uma contradição em termos daquele esquema conceitual. Mas esse é um pressuposto que nos escapa até que se tente incluir naquela categoria um grupo que foi excluído dela. Aristóteles também disse que o que é distintivo em relação ao homem é que ele é um animal político – ele constrói seu modo de vida por meio do discurso público, das reuniões públicas – no entanto, as mulheres foram excluídas do domínio público. Nós poderíamos mesmo examinar cada uma das definições do que é distintivamente humano e notar que as mulheres foram excluídas delas. O “trabalhador” com quem Marx é especialmente preocupado: as mulheres foram excluídas das posições no trabalho assalariado do tipo que Marx tinha em mente quando examinava o proletariado do século XIX. Depois, poderíamos chegar ao “humanos como seres que usam a linguagem”, no entanto, uma boa mulher é como uma criança: vista, mas não ouvida. Às mulheres não se permitiu o discurso público. Nós poderíamos examinar as definições sociológicas de comunidade como construídas por atores públicos, visíveis e dramáticos, em vez das maneiras informais, menos visíveis e menos dramáticas com que as mulheres e outros grupos minoritários têm de fato contribuído para a organização comunitária. Nós podemos examinar qualquer disciplina e ver que os métodos padrão para se maximizar a objetividade são incapazes de perceber esses pressupostos e interesses amplamente compartilhados que, de fato, definem o aparato conceitual do campo. Outra forma de colocar a questão é dizer que a forma pela qual o método científico em qualquer disciplina tenta eliminar os fatores sociais é por meio da repetição das observações entre indivíduos – você repete o experimento e consegue outra pessoa para testar a validade de suas afirmações – mas se todas as pessoas que estão repetindo o experimento compartilham dos mesmos valores, como os membros de qualquer cultura compartilhariam, então o método é falho. Então, uma objetividade forte consiste em uma tentativa de se desenvolver padrões mais fortes. Feministas, antirracistas e membros dos novos movimentos sociais têm certamente criticado a noção de objetividade de uma variedade de formas, mas, na maioria dos casos, eles querem concepções mais objetivas. Nós precisamos de concepções mais objetivas sobre como nossos corpos funcionam, como a economia política internacional funciona, sobre o que causa a destruição ambiental, sobre que efeitos a industrialização terá sobre o ambiente e sobre a estrutura social etc. Nós não precisamos de concepções menos objetivas e não precisamos de concepções subjetivas. O problema é que nós tivemos concepções subjetivas – ou concepções etnocêntricas, como creio que se poderia chamá-las. Assim, a objetividade forte não é uma questão, para colocar o problema de forma simplista, de se aprender a nos vermos como os outros nos vêem. (O que foi mesmo que Robert Burns disse, “Oh, would some power the gift give us / To see ourselves as others see us!”?). Trata-se de um argumento para sairmos de nosso quadro de referência conceitual, para começarmos projetos de pesquisa, para começarmos a pensar qualquer fenômeno particular, a partir de fora do quadro de referência dominante. As vidas marginalizadas representam pelo menos um bom lugar, uma boa estratégia para se fazer isso. Começarmos a refletir sobre as concepções ocidentais de racionalidade a partir da vida das pessoas que foram excluídas e de quem se afirma ser constitucionalmente incapaz de exibir tal racionalidade – minorias raciais, a classe trabalhadora, lésbicas e gays, mulheres de diversos grupos étnicos – é uma boa maneira de se tornar capaz de identificar aqueles valores e interesses amplamente compartilhados que têm estruturado as formas dominantes de se pensar acerca da noção de racionalidade.
Poderíamos fazer a mesma coisa em relação, por exemplo, às formas como a sociologia dominante pensa sobre a família – a família, adorada pelos textos sociológicos. Claro que este trabalho poscolonial com as ciências (ou trabalho antieurocêntrico, colocando de outra forma) é, em minha opinião, um estudo de caso acerca do valor deste tipo de abordagem. Nós chegaremos a uma concepção muito mais objetiva da ciência ocidental quando começarmos a olhar para ela a partir da perspectiva das ciências chinesas de que Needham fala, ou das necessidades das ciências nos países do Terceiro Mundo. Consideremos a Conferência do Rio e o que o Sul estava dizendo ao Norte. Também se poderia fazer uma leitura da ciência a partir dela, assim como da poluição, da política, do meio ambiente: que os tipos de ciência e os tipos de relação com a natureza que o Sul precisa são tais que o Norte nem os vislumbram ainda. É apenas ao dar um passo para o lado e olhar para a maneira como tratamos nossas florestas da perspectiva das vidas do Terceiro Mundo que eu acho que poderemos alcançar uma compreensão mais objetiva das ciências ocidentais e de suas maneiras de pensar a ecologia etc.
P: Como um pesquisador pode alcançar a “reflexividade forte” que a senhora frequentemente descreve como pré-requisito para a “objetividade forte”? Que forma a reflexividade forte pode assumir em diferentes tipos de discurso?
R: É útil relacionar as formas fortes de três termos: reflexividade, objetividade e método. Todas elas se desenvolvem juntas; uma não é um preâmbulo para a outra. Elas são formas diferentes de se falar do mesmo problema. Estamos falando de um método forte, usando “método” num sentido mais amplo do que aquilo que é compreendido pelos cursos de métodos na sociologia ou na física, “método” como em “como fazer pesquisa”. Por exemplo, Dorothy Smith, a socióloga do conhecimento canadense que tem sido extremamente importante na formulação da teoria da perspectiva feminista (embora ela se refira a ela como teoria da “perspectiva das mulheres”), sempre fala dela de forma intercambiável com método feminista para a sociologia e com epistemologia feminista (de fato, ela usa a palavra epistemologia, embora não admitiria que usa). Então, estamos buscando um método mais forte. Existe uma publicação muito interessante pela National Academy of Sciences, em 1989, chamada “On Being a Scientist”, que, numa seção sobre método, fala sobre a necessidade de se expandir a noção de método para além das formas usuais de se pensar acerca dele a fim de se incluir que problemas são selecionados para a pesquisa, como os cientistas se comunicam uns com os outros etc. Assim, algumas pessoas estão começando a compreender que a maximização da objetividade requer um método mais forte, uma noção mais ampla de método e o que isso significa é a produção de uma reflexividade forte. Está se começando a perceber que o fato de que o observador muda, interage com o objeto de observação, com aquilo que ele ou ela esta observando não é necessariamente negativo, não tem necessariamente uma influência negativa sobre os resultados da pesquisa, mas pode ser usado de forma positiva. Isto é, trata-se da compreensão de que nós podemos usar os recursos do lugar particular de onde falamos a fim de alcançar uma objetividade e um método mais forte; uma reflexividade forte requer isso.
Agora, o que significa ter um conhecimento socialmente situado, usar o lugar do qual falamos como um recurso, como parte do método, parte dos instrumentos de pesquisa? Deixe me tomar a mim própria como exemplo. Todo mundo escreve sobre reflexividade das mais diversas formas, mas raramente ela é percebida como um recurso. Ela é vista como um problema, um dilema ou algo com o que se precisa lidar, ou então estoicamente: “aliás, não há nada que se possa fazer acerca disso”. Consequentemente, a forma como a reflexividade é colocada é, com freqüência, confessional: “Eu sou uma mulher branca de Newark, Delaware...” . Faz-se a confissão e depois se faz a análise, como se a confissão desse conta do problema. Eu não vou sequer agraciar esse fenômeno com a linguagem “objetividade fraca”. Isso sequer começa a dar conta do problema. Deixa toda a análise por conta do leitor. Deixa que o leitor pergunte “bem, qual é a relação existente entre o fato de que Sandra Harding é uma mulher branca, uma acadêmica de Delaware, e sua análise? E ela é uma filósofa, uma feminista etc; que efeito isso tem sobre sua análise?”. O ponto é que deve ser o autor, o observador, a fazer tal análise. É preguiçoso e irresponsável deixar isso para a audiência. Finge-se que isso não tem importância alguma. A teoria da perspectiva feminista de cujo desenvolvimento eu faço parte, nos permite perceber o valor disso. A objetividade forte requer que nós desenvolvamos um olhar crítico em relação aos esquemas conceituais e quadros de referência que perfazem a nossa localização social. Quais os meus pressupostos como alguém que vem da filosofia analítica angloamericana neste momento da história e que é treinada no positivismo lógico? Como isso me faz enquadrar as questões e projetos que são, de fato, menos que maximamente objetivos, que são restringidos por minha localização social particular? Assim, o primeiro conjunto de questões permitem que a pessoa fortaleça a reflexividade, que use a reflexividade como um recurso, que faça aquela análise, que olhe para os esquemas conceituais de uma área. Não é tanto “Eu, Sandra Harding, mulher branca...”, mas isso é uma questão. O problema, de forma mais geral, é “como os esquemas conceituais que eu estou usando foram moldados de forma a se adequarem aos problemas das mulheres brancas no ocidente?”. Não existe muita engenhosidade criativa em se promover o racismo e o eurocentrismo. A maioria de nós se inclui aí e o faz, e ocasionalmente um demagogo aparece e inventa novas formas de racismo e eurocentrismo. A maioria de nós simplesmente os pressupõem; são questões que não perguntamos.
Assim, o primeiro passo é efetuar o tipo de crítica que os vários novos movimentos sociais fazem em relação aos esquemas conceituais do ocidente e suas várias disciplinas, políticas e filosofias. Mas existe um passo além desse, que é tentar repensar como a nossa localização social pode ser usada como um recurso, apesar do fato de que somos membros de grupos dominantes. Existe uma tendência de se pensar que apenas os dominados, apenas os marginalizados podem usar sua localização social como instrumento para a produção de conhecimento. Eles certamente podem e usam, mas as pessoas nos grupos dominantes também podem aprender a usar suas posições (como uma mulher branca, em meu caso; como, diríamos, um homem branco, em outro) para perguntar os tipos de questões e pensar os tipos de pensamentos que possibilitariam usar os recursos daquela posição particular. Por exemplo, eu sou muito familiarizada com a filosofia ocidental; na medida em que eu não faço perguntas sobre seus pressupostos, isso se torna um obstáculo a que eu alcance uma perspectiva menos eurocêntrica do mundo e da filosofia. Mas eu também conheço essa tradição bastante bem, assim, se eu focar lentes mais críticas sobre ela, posso aprender algo; estou em um lugar que me possibilita fazer isso. E trata-se de algo que tenho obrigação de fazer. Estou usando minha posição de uma forma que alguém que venha de outra posição pode não fazê-lo. Por que os outros deveriam gastar todo o seu tempo criticando a filosofia ocidental? Eu não acho que devemos deixar às vítimas do ocidente o fardo de fazer toda a critica do ocidente. Este é um recurso que nós temos obrigação de usar; estamos familiarizados com ele, portanto devemos aprender a fazer tal crítica nós mesmos. Aqueles de nós que estamos em tais posições dominantes estamos em posição dominante: nossas vozes têm muito poder, e isso é um recurso. É triste que o mundo seja organizado hierarquicamente, que nós tenhamos relações de poder; mas dado que temos, eu acho que aquelas pessoas que têm salas de aulas nas quais ensinar e cujos artigos são aceitos em revistas do mundo inteiro, e cujos editores publicam seus livros, constituem um recurso local que nós podemos usar de formas científica e politicamente progressivas. Nesse sentido, trata-se de um tipo de recurso, mas existe outra maneira na qual a posição das pessoas nos grupos dominantes é um recurso.
Deixe-me dar alguns exemplos; deixe-me falar sobre homens agora. Existem muitos homens feministas que fizeram muitas contribuições importantes para a teoria feminista. Nós poderíamos começar por John Stuart Mill, que claramente pensa como um homem sobre, por exemplo, as desvantagens de se crescer como alguém do sexo masculino. Agora, ele afirma que sua amada e falecida mulher Harriet Taylor Mill sussurrou tais palavras, que aquelas eram todas palavras de Harriet. Mas minha visão é a de que muitas mulheres falam aos seus maridos o tempo todo e poucos desses homens publicam tratados feministas famosos e a cujas mulheres atribuam crédito por tê-los escrito, então eu acho que devemos dar crédito a Mill por desenvolver uma visão particular que fala parcialmente da posição das mulheres e também parcialmente de sua própria vida como homem. Se você ler “A Sujeição das Mulheres”, pode meio que ver ele caminhando no mundo e olhando para si de forma diferente da que teria olhado antes de se apropriar do feminismo. Ele está olhando para o mundo como um homem olha. Existe uma coleção maravilhosa chamada “Men in Feminism”, compilada em 1987 por Alice Jardine e Paul Smith. É muito interessante porque as mulheres e homens que escrevem naquele livro estão distribuídos por todas as vertentes feministas. Não se pode dizer que as mulheres adotam esta posição e os homens aquela; não é isso. Existe uma gama de posições em relação à questão de se os homens podem ser feministas e o que significaria um homem feminista. É fascinante e se pode ouvir uma quantidade de homens naquele livro falando distintamente como homens feministas; isto é, eles estão aprendendo como usar sua masculinidade de forma a perguntar os tipos de perguntas e a pensar os tipos de pensamentos que as mulheres não perguntariam nem poderiam perguntar (da mesma forma que nós brancos estamos aprendendo como usar nossa localização social particular). Existe uma parte naquele livro onde uma das feministas oferece aos homens uma lista dos tipos de questões que ela gostaria de vê-los trabalhar. É uma lista ótima, e ela a constrói paralelamente aos tipos de questões especialmente dolorosas e difíceis para as mulheres. Ela diz aos homens que gostaria de ouvi-los falar sobre suas relações com seus corpos, seus fluidos corporais (e eu estou muito encabulada de listar o restante da anatomia que ela gostaria que eles discutissem), não da forma que eles normalmente falam sobre essas coisas; já ouvimos isso o suficiente. Ela quer que eles falem sobre suas relações com suas mães, que façam isso da forma que as mulheres fizeram nos grupos de auto-conscientização e da forma que elas continuam fazendo em sua escrita pública; sobre suas relações com seus pais (seus pais biológicos) e seus mentores (seus pais disciplinares); sobre a natureza das amizades masculinas; sobre por quê eles gostam de pornografia. Ela tem uma grande lista de contribuições que as mulheres não poderiam fazer porque os homens têm histórias diferentes, corpos diferentes, acessos diferentes aos diversos padrões e práticas sociais.
Meu ponto é que isso é uma maneira de perceber que o método, a objetividade e a reflexividade – cada um dos quais tem sido o centro de uma série de pensamentos diferentes, conflituosos e interessantes nas últimas três décadas – precisam ser pensados juntos. A pista de um é a pista para cada um dos outros dois. E existe provavelmente mais coisas aqui; existe provavelmente uma racionalidade forte e talvez nós possamos continuar com essa estratégia retórica para refletir sobre os termos centrais que constituem as jóias da coroa da filosofia ocidental e do pensamento filosófico em cada disciplina. A questão é fundamental e torna-se bastante aparente que, se ela atinge uma, ela atinge a totalidade das noções fundamentalmente iluministas.
P: Tradicionalmente, a ciência assegura sua objetividade por meio do método científico. A senhora argumenta, por um lado, que o feminismo gera uma maior objetividade do que a suposta neutralidade de valor da ciência normal mas, por outro, afirma em “Is There a Feminist Method?” que não existe um método distintivamente feminista. De que forma o feminismo assegura sua objetividade forte, senão por meio do método feminista?
R: Eu estou parcialmente, mas apenas parcialmente, arrependida de ter escrito aquele artigo. Ele foi amplamente distribuído e atacado. Eu tinha um alvo específico quando o estava escrevendo: as diversas tentativas de argumentar que uma concepção particular e, em minha visão, bastante estreita, de método (num sentido tradicional de método) era o método feminista. Assim, muitas feministas marxistas e feministas socialistas se referem ao materialismo histórico dialético como “o método feminista”. Catherine MacKinnon fala sobre o aumento da consciência como o método feminista. Um bocado de fenomenólogos na sociologia que estão irritados com o positivismo excessivo na sociologia, com a confiança excessiva em métodos quantitativos etc, falam acerca das abordagens fenomenológicas como o método feminista. Eles estão todos certos no sentido de que o feminismo fez coisas importantes a partir dessas diferentes abordagens metodológicas; eu não estou criticando sua percepção de que o feminismo pode transformar tais abordagens de forma que são úteis ao feminismo. Naquele artigo eu quis dizer que o feminismo é muito mais criativo e inventivo do que aquilo; ele usa todos os métodos. Tentei dar um exemplo falando de artigos bastante bem conhecidos e que não necessariamente focavam no método. Peguei artigos famosos de Carol Gilligan, de Joan Gadol-Kelly e de diversas outras pessoas e mostrei que o feminismo usa todo tipo de método: usa métodos quantitativos, abordagens fenomenológicas, etnometodologia, qualquer um – de formas brilhantes e faz coisas brilhantes com eles. Agora eu não repito aquele argumento, no entanto, porque me dei conta de o que eu estava chamando de epistemologia da perspectiva feminista de fato é usada como um método por pessoas das ciências sociais em particular, e em todos os lugares elas a vêem como um método de se fazer pesquisa, o que está correto: epistemologias são métodos, em um certo nível. Isto é, o empirismo é um tipo de método. Ele propõe uma forma de se fazer pesquisa, e a fenomenologia é uma filosofia, mas também é um método de se fazer pesquisa nas ciências sociais, por exemplo. E é certamente verdade que a epistemologia da perspectiva está recomendando uma forma diferente de se fazer pesquisa, de se pensar.
Assim, você tem razão de apontar o conflito entre afirmar que não existe um método distintamente feminista, por um lado, e, por outro, argumentar que existe uma maneira melhor de se fazer pesquisa. Mas, como eu digo, eu só me arrependo pela metade de ter escrito aquele artigo porque ainda existe uma tendência muito poderosa nas ciências sociais de se reduzir questões políticas a questões metodológicas e tentar livrar-se das questões políticas ao discutí-las em termos metodológicos (sabe, que tipos de métodos você vai usar aqui?), silenciando desta forma as políticas mais radicais, supondo que se pode remover a política da ciência. E eu não acho que seja este o caso. Então eu ainda quero esclarecer o que se quer dizer com um método feminista forte; neste sentido, trata-se de uma abordagem muito política e que, ainda que seja política, não difere de nenhum outro método que se pretende não político. A ciência e a política sempre estiveram íntima e intricadamente relacionadas e simplesmente fechar os olhos para a política que de fato dá forma ao projeto e ao método não evita que se faça política; apenas torna a pessoa estúpida para o tipo de política que ela fará.
P: A senhora mencionou que tem sido uma das maiores proponentes da teoria da perspectiva feminista, argumentando que “não apenas as opiniões, mas também as melhores crenças de uma cultura – aquilo que uma cultura chama de conhecimento – são socialmente situadas” e que o início da pesquisa a partir das experiências das mulheres habilita o feminismo a “produzir descrições empíricas mais acuradas e explicações teóricas mais ricas do que a pesquisa convencional”. Os pesquisadores precisam equilibrar a necessidade de se abrir a ciência a perspectivas distintas de sua perspectiva masculina tradicional com o desejo de se gerar um conhecimento que seja amplamente útil?
R: Eu acho que a perspectiva feminista é mais amplamente útil. O problema é que o conhecimento gerado a partir da vida de apenas uma pequena porção da sociedade (e, ainda por cima, da mais poderosa) não é útil para os projetos da maioria das pessoas. Ele é útil apenas para os projetos daquele grupo, da mesma forma que as ciências ocidentais, por exemplo, têm sido extremamente úteis para ajudar a expansão européia, mas não muito útil para as pessoas que têm sido alvo daquela expansão. As ciências ocidentais não constituem os tipos de ciência que aquelas pessoas querem, nem seus efeitos. Elas não precisam de bombas jogadas nelas; também não precisam de sistemas mais rápidos de navegação e de traslado da África para os Estados Unidos. Essas inovações não foram muito úteis para os africanos, como se percebeu mais tarde. Então, eu acho que a primeira coisa que precisamos pensar é: para quem (para citar o título de meu livro “Whose Science, Whose Knowledge?”) as ciências existentes e os nossos corpos de conhecimento têm sido produzidos? Feministas e antirracistas e outras pessoas nos novos movimentos sociais têm objetado à estreiteza desses projetos e ao fato de que eles têm sido usados muito frequentemente para projetos que exploram outras pessoas. Cientistas podem não ter intentado fazer isso. Este não é um argumento sobre intenções individuais: não é o argumento de que os filósofos individuais ou que os cientistas individuais são são pessoas más, perversas – tenho certeza de que um ou outro seja, mas não mais do que em qualquer outro grupo; e eu tenho certeza de que existe uma mulher má aqui e ali. Ao contrário, trata-se de um argumento sobre como a ciência e os projetos de conhecimento são localizados em histórias culturais e em projetos culturais particulares e ajudam a disseminar tais projetos, de uma forma ou de outra. As perspectivas feministas buscam gerar um conhecimento que seja amplamente útil, ao invés de útil para um escopo limitado de projetos. As feministas descobriram que o corpo de conhecimento dominante na sociologia, na filosofia ou na história não é útil para se compreender a vida das mulheres; ele distorce a vida das mulheres ao tentar encaixá-la naquelas categorias, ao tentar compreender a vida das mulheres por meio de uma história que foca primariamente na história militar e política. Ele não é nem mesmo útil para entender a vida da maioria dos homens; nem ajuda a entender a vida das mulheres. Tentar entender as contribuições das mulheres, o pensamento filosófico das mulheres (se é que se pode colocar desta forma) a partir de referenciais que definem o pensamento das mulheres como a ausência de qualquer pensamento filosófico, como irracional, subjetivo, é difícil. O conhecimento que tem sido produzido pelos discursos dominantes não é amplamente útil.
P: Recentemente a senhora defendeu a teoria da perspectiva feminista contra acusações de que ela é fundacionalista, essencialista, eurocêntrica e excessivamente preocupada com a ciência. A senhora acredita que a teoria da perspectiva feminista e o pensamento posmoderno são irremediavelmente incompatíveis?
R: Ah, não, de jeito nenhum. Eu acho que a teoria da perspectiva feminista (e estou falando por mim, porque tenho certeza de que algumas das outras pessoas que desenvolveram a perspectiva feminista assumirão uma posição diferente) é um posmodernismo, e eu acho que o feminismo é um posmodernismo. O grupo que se autodenomina posmodernista tem feito contribuições extremamente importantes em minha opinião, mas ele não é o único grupo posmodernista. É isso que tem sido um pouco confuso, eu acho, para as feministas: nossas críticas ao Iluminismo sobrepõem-se às críticas de Derrida, Rorty, Foucault, Lyotard etc., mas elas não são idênticas. E não existe nenhuma razão, do ponto de vista da perspectiva feminista, pela qual elas devessem ser. Essas críticas iniciam a partir de vidas diferentes – não vidas individuais, mas de localizações culturais – a fim de pensarem o que é certo e o que é errado nas histórias Iluministas. Eu me considero uma, deixe-me colocar desta forma, ‘feminista posmoderna’ (o que é algo diferente de uma ‘feminista posmodernista’) que está tentando usar os recursos que essa forma particular de posmodernismo tem gerado a fim de alcançar compreensões mais úteis da história e do conhecimento, de relações de teorias da representação, de representações de realismo, de problemas relativos às teorias totalizadoras e de uma série de questões que este grupo vem atacando, mas que também podemos encontrar em outras discussões. Trata-se de um lugar onde é extremamente útil olhar para as críticas poscoloniais e antirracistas porque existe um terceiro grupo (quarto, quinto ou quantos grupos existirem nessa categoria) que também está criticando os pressupostos ocidentais do Iluminismo e, no entanto, continua fazendo uso deles, como estão, em minha opinião, todas as pessoas de quem estamos falando. Nós ainda estamos na tradição do pensamento Iluminista, muito embora estejamos depois dele (talvez pós-Iluminismo seja um termo melhor do que posmodernismo, embora este último seja adequado desde que se compreenda que ele é parte da modernidade, que é um desenvolvimento tardio da modernidade). Não podemos escapar da nossa história, é o que acho que quero dizer. Nós acabamos por aceitar muito do que rejeitamos todo o tempo e isso é apenas a forma como as coisas são, e não necessariamente algo mau. Em um dos capítulos de “Whose Science, Whose Knowledge?” eu escrevo sobre como, em minha opinião, os posmodernistas são muito modernos; eles ainda aderem a alguns pressupostos que eu quero questionar – como a idéia de que tudo o que merece o nome ‘ciência’ é coberto pela ciência ocidental. Esqueça! Esta é uma visão extremamente arrogante; é racista e eurocêntrica, dentre outras coisas. Eles aceitam muito da compreensão do modernismo acerca de sua própria história, em vez de tentarem ir um pouco mais fundo e se tentar pensar formas alternativas de se conceitualizar essas questões. Mas minha principal relação com eles não é uma de crítica, de oposição; certamente eu os critico, mas estou tentando descobrir o que é útil para meus próprios propósitos. Parte do desafio é trabalhar no seio da filosofia e dos estudos sociais das ciências naturais porque eles emergiram primeiramente como uma crítica dos ideais Iluministas que são encapsulados na filosofia ocidental, na filosofia da ciência e nas ciências naturais. Mas eu não estou sozinha; pessoas como Donna Haraway, por exemplo, se utilizam de forma muito consciente de insights posmodernos a fim de produzirem descrições mais adequadas da ciência ocidental.
P: Em “Whose Science? Whose Knowledge?: Thinking from Women’s Lives”, a senhora diz que ‘existem muitos projetos para os quais a teoria da perspectiva feminista é mais satisfatória, mas existem pelo menos alguns para os quais ela não é’. Isso implica que se pode trocar ou alternar epistemologias à vontade?
R: Bem, deixe-me colocar a questão de outra forma. A teoria da perspectiva feminista é historicamente situada. Ela vem de uma tradição particular que tenho certeza que outras pessoas de outras culturas poderiam descrever de forma ainda mais clara que eu, mas posso delinear alguns de suas vantagens claras que também são seus limites. Trata-se de uma teoria que emerge na Europa, do Iluminismo: é uma teoria Iluminista no sentido em que diz respeito ao progresso e à razão; e ainda que ela possa rejeitar outras teorias Iluministas, ela se insere em seu escopo. Ela emergiu da epistemologia marxista, com aquele conjunto particular de restrições históricas. Trata-se de uma epistemologia que toma a ciência como seu modelo de conhecimento – talvez não as ciências que nós temos, mas alguma coisa que é ciência. Não considera a literatura, por exemplo, a arte ou a compreensão religiosa como seu modelo de conhecimento. Pode-se ter uma epistemologia muito diferente caso se parta daqueles lugares para se pensar o desenvolvimento do conhecimento, para se pensar como construir uma epistemologia. Então esta é um dos conjuntos de restrições que eu tinha em mente quando falava sobre os limites desta perspectiva. Mas existe outro conjunto: uma forma de descrevê-lo é em termos de limites estratégicos, embora esta não seja a única forma pela qual eu o descreveria. Eu tenho frequentemente contrastado a teoria da perspectiva feminista com o empirismo feminista. (Eu atribuí o nome desta filosofia particular. Não estou me gabando, estou assumindo, porque suas autoras não achavam que estavam fazendo algo particularmente diferente. Elas pensavm que estavam apenas argumentando que os pesquisadores deve fazer ciência de uma forma melhor e que essa era a forma como o feminismo contribuiria para a boa ciência. Assim, elas não viam nenhuma razão para dar ao seu método, à sua filosofia, um nome particular. Elas estavam apenas tentando melhorar a prática das formas existentes de se pensar sobre como fazer pesquisa e como produzir conhecimento). O empirismo feminista e a teoria da perspectiva feminista têm origens e audiências diferentes e eu acho que a teoria da perspectiva feminista é uma teoria melhor: é mais compreensiva, explica mais, responde o tipo de questões que o feminismo empirista não consegue responder. Ela deriva da sociologia do conhecimento, da filosofia, da epistemologia e da filosofia política. As formas mais antigas de empirismo feminista derivam da forma como os pesquisadores na biologia e nas ciências sociais entendiam seu próprio trabalho. Emergiu de uma espécie de teorização intuitiva sobre qual o problema com a biologia, com a sociologia empírica etc. As pessoas diziam: “isto é objetivo? Veja os resultados a que se está chegando. Tem algo errado com os padrões, tem algo errado com a forma como estão fazendo esta pesquisa”. Você pode encontrar esse tipo de citação em todos os parágrafos e capítulos introdutórios das obras feministas dos anos setenta e oitenta nas ciências empíricas. Aquelas pessoas não familiarizadas com a sociologia do conhecimento e com a filosofia política tentam argumentar que um trabalho feminista com base na teoria de perspectiva feminista (pois uma epistemologia é uma forma de justificar crenças) para pesquisadores empíricos na biologia e nas ciências sociais não é necessariamente uma boa estratégia. Uma teoria deveria ser ‘plausível’, além de ‘verdadeira’ (uma palavra tão fora de moda). E plausibilidade (e certamente também a verdade) é uma questão relativa à audiência:
Plausível para quem? Esta é uma outra questão em que tento pensar quando falo dos limites da teoria da perspectiva feminista. Ela não é estrategicamente útil para justificar crenças feministas para pessoas que não acreditam nos pressupostos da teoria da perspectiva feminista, que não estão acostumadas a pensar sobre as relações entre sistemas de idéias e estruturas sociais. Pessoas da área de ciência política e de história política estão acostumadas, por exemplo, a pensar sobre como a forma de vida das pessoas medievais podia levar a uma visão de mundo tão estranha. Em outras palavras, elas estão acostumadas a se questionar sobre a relação entre a estrutura da crença e a estrutura da sociedade. Biólogos e sociólogos, os trabalhadores empíricos, não estão. Eles tendem a pensar em termos de indivíduos que abrem os olhos, da noção empirista de limpar as teias de aranha e da idéia de que um bom método é cuidadoso e rigoroso etc; eles não pensam acerca das referências e dos pressupostos culturais.
Essas são as duas formas nas quais eu acho que a teoria da perspectiva feminista tem seus limites. Não se trata de uma teoria para todos os períodos e lugares. Trata-se de uma teoria que é útil para pessoas no ocidente que querem perguntar os tipos de questões que a teoria da perspectiva feminista está perguntando. Se elas tiverem tipos diferentes de questões, não vão usá-la. O que me parece claro é que a linguagem, que a articulação particular que a teoria da perspectiva feminista faz, tem sido usada apenas pelo feminismo, muito embora se possa encontrar argumentos semelhantes em movimentos e projetos de conhecimento poscoloniais, antirracistas, gays e lésbicos e vários outros. Por que os africanos e pessoas do Terceiro Mundo que vieram do marxismo chegam à epistemologia marxista? Não estou acusando, estou apenas dizendo que talvez esta não seja uma coisa útil para essas pessoas; trata-se de apenas mais uma teoria européia que está sendo usada para justificar suas críticas ao Iluminismo e às teorias européias. Parece-me que isso é algo sobre o qual se merece refletir: pensar sobre as linhagens históricas e sobre os significados de nossas teorias. Se eu fosse uma filósofa da ciência do Terceiro Mundo eu gostaria de me basear em alguma tradição de pensamento autóctone sobre a justificação das crenças. Eu não gostaria de simplesmente me apropriar de mais uma idéia européia e tentar adaptá-la. Eu poderia falar naqueles termos como uma forma estratégica de falar se estivesse no meio de um grupo europeu, mas eu gostaria de me apropriar de recursos de minha própria cultura que honra os pensadores de minha própria tradição cultural. Então, precisamos reconhecer a localização histórica particular de nossas teorias no ocidente neste momento. Voltando para uma questão colocada anteriormente, essa é uma questão de reflexividade, de usarmos nossa localização particular como um recurso – um recurso que não pode ser usado em outros lugares. Estando no ocidente, a teoria da perspectiva feminista, o empirismo e o Iluminismo serão recursos que podem ser usados para ajudar as pessas a pensar aqui de uma forma que pode não ser o caso em outras partes do mundo, para pessoas que não vêm dessa tradição européia. Essa é parte da questão sobre a reflexividade forte, sobre se perceber a localização social de alguém como um recurso positivo para se avançar o conhecimento. Elas são estratégias retóricas e tradições históricas que têm significado para pessoas com quem estamos falando, mas que podem não ter o mesmo significado para outras pessoas.
P: Em “The Curious Coincidence of Feminine and African Moralities: Challenges for Feminist Theory” a senhora defende que “o que precisamos é de algo como uma ‘teoria do campo unificada’: isto é, uma teoria que possa dar conta das diferenças de gênero assim como das visões de mundo africanistas/eurocêntricas dicotomizadas. Se tivéssemos tal teoria ... ela seria capaz de mapear as ‘leis da tendência do patriarcado’ e também as ‘leis da tendência do racismo’, suas conseqüências independentes e conjuntas para a vida e para o pensamento social”. É possível uma teoria ‘unificada’ que faça justiça às próprias diferenças que a senhora está tentando compreender?
R: Esta passagem foi escrita há cerca de dez anos e eu não usaria esta linguagem agora. Eu certamente não usaria a linguagem da teoria do campo unificada. Em primeiro lugar, ela é uma teoria da ciência e eu não entendo por que a ciência deve prover todas as boas metáforas para tudo o que fazemos. Além disso, essa linguagem parece totalizadora de uma maneira infeliz. Vocês estão certos em que não há razão alguma para presumirmos que toda opressão tem a mesma história, explicações e causas; de fato, nós não deveríamos pressupor isso de forma alguma. Devemos olhar para as particularidades históricas que deram forma a uma cultura específica, embora eu não ache que devemos nos furtar de oferecer teorias compreensivas. Essa é uma parte do posmodernismo com a qual eu tenho muitos problemas. Existe muita confusão entre totalitarismo, uma espécie de imposição de uma teoria sobre todo mundo, e uma tentativa de se alcançar uma visão o mais compreensiva possível de como as coisas funcionam. Nós precisamos da visão o mais compreensiva possível de como as coisas funcionam porque precisamos saber como o que nos fazemos aqui tem efeitos lá adiante. Nos últimos anos, a teoria de mulheres negras (e de homens negros também) tem sido extremamente poderosa. Se eu tivesse mais familiarizada com ela na época, em vez de usar a linguagem que usei, eu falaria justamente sobre este projeto – nomeadamente, compreender a forma que classe, gênero, raça, etnicidade (e o que mais seja uma parte significativa da estrutura social) influenciam umas às outras. Isso certamente não começou dez anos atrás; existem histórias muito mais antigas dessa forma de pensar, mas ela se tornou incrivelmente poderosa, de forma que podemos ver como a femininidade e a masculinidade são construídas. Como Sojourner Truth coloca em sua famosa pergunta, “Eu não sou uma Mulher?” a femininidade que lhe foi permitida foi extremamente diferente da femininidade demandada da mulher num pedestal do século XIX, a mulher branca, da mesma forma que a masculinidade exaltada para o senhor de escravos era justamente a masculinidade que não era permitida ao escravo. O gênero era construído de forma oposicional para as duas raças e as duas classes. As ‘leis da tendência do patriarcado’ é uma sobra retórica do meus dias de marxismo estrito, mas eu acho que a questão de se tentar construir uma teoria compreensiva sobre como o gênero, a raça e a classe têm uma estrutura na sociedade mas podem ter muitas características e aspectos diferentes é incrivelmente complexa. Forçar uma teoria sobre os outros é uma questão muito diferente de se tentar construir uma teoria compreensiva e eu acho que isso foi confundido na crítica posmodernista das teorias totalizantes.
P: A senhora escreveu que, para o feminismo, “não existem seres humanos contemporâneos que escapem ao gendramento” e que o “gênero é uma categoria fundamental dentro da qual significado e valor são atribuídos a tudo no mundo”. Em referência a esses comentários, como a senhora se posicionaria em relação a feministas como Monique Wittig, que defendem a abolição do gênero, por um lado e, por outro, a feministas como Luce Irigaray, que defendem a promoção da diferença de gênero (incluindo, nos termos de Irigaray, de uma “ciência sexuada”)?
R: O gênero é o lócus do pensamento feminista mais frutífero porque nós não sabemos o que fazer com ele. Por um lado, ele tem sido fonte de nossa opressão; por outro, tem sido fonte de grande força. Pode-se perguntar algo semelhante em relação à cultura afroamericana. A cultura do oprimido é tanto fonte de grande força quanto um tipo de problema porque foi criada em parte pela colonização ou imperialismo ou dominação e, em parte, elaborada como uma força, como uma forma de se reter a própria identidade em um mundo que estava tentando eliminá-la. Eu não conheço Irigaray o bastante para entrar em uma discussão detalhada aqui, mas diria que a própria discussão é muito importante. Wittig não é a única que disse que devemos abolir o gênero. Gayle Rubin, no final de “O Tráfico de Mulheres” disse que talvez o problema seja o gênero; nós temos que nos livrar do gênero. Eu não sei se podemos nos livrar do gênero, mas certamente precisamos nos livrar da forma como ele tem funcionado e eu acho que as pessoas que querem se livrar dele estão pensando em termos do modelo de classe: elas querem se livrar da classe, e já que o gênero é um tipo semelhante de estrutura, nós deveríamos nos livrar do gênero. Agora passemos para raça. No momento em que você pensa em raça como um tipo de sistema semelhante à classe – nomeadamente, um sistema hierárquico socialmente construído – então você passa a desejar se livrar da raça também. Mas isso não é o tipo de coisa que uma pessoa branca diga a, digamos, uma pessoa negra, porque a cultura racial (e sua história e sua identidade e sua força) tem sido uma parte extremamente importante da identidade afroamericana. O gênero se parece mais com a raça nisso, já que é tanto uma fonte de opressão quanto uma fonte de força para as mulheres, então eu acho que nós simplesmente deveríamos continuar a ter esse tipo de disputa o tempo todo. As feministas redefiniram a femininidade e a fortaleceram. Da mesma forma que os negros disseram “Black is beautiful”, nós dissemos “a femininidade é bonita também, e não da forma como vocês pensavam que era”. Mas ela tem outros tipos de força e as feministas procuraram quais são essas forças. Eu penso, por exemplo, no livro maravilhoso de Bettina Aptheker, “Tapestries of Life”, que presta atenção nas histórias orais de vida e como as mulheres estão criando sentido, criando significado, não apenas para si mesmas, mas para todo mundo. Então, não pode haver uma resposta definitiva para o que deveríamos fazer em relação ao gênero. Tem que haver uma discussão continuada. Uma coisa com a qual eu acho que meus alunos têm muito problema é o fato de que eles acham que o gênero vem antes da cultura, e não que ele é um construto cultural. Eles pensam em seus projetos (e essa é uma forma que o posmodernismo tem sido extremamente útil para o feminismo) em termos de descobrir seus selves verdadeiros, que não se permitiu que o self verdadeiro das mulheres aflorasse e que se nós removermos essas estruturas patriarcais, então as mulheres floresceriam e desabrochariam. Eles não vêem a femininidade e ser mulher como uma escolha, construída por aquilo que eles fazem e pelos discursos disponíveis a nós.
Eu penso acerca de mim mesma, sobre ser mulher branca, sobre aquela construção de gênero e sobre as formas como a femininidade branca tem sido construída. Ela tem sido construída de forma racista. Nós podemos pegar o “Women of the Klan” de Kathleen Blee ou o livro de Claudia Koons sobre mulheres nazistas, “Mothers in the Fatherland”, onde femininidade e fascismo estão intrinsecamente ligados. Por outro lado, podemos pegar as mães da Praça de Maio na Argentina, que estão usando uma noção muito convencional de femininidade – a maternidade, para fazer uma alegação política poderosa, radical e extremamente eficaz. Temos aqui a noção convencional de femininidade, a maternidade, usada de formas políticas radicalmente distintas (as mães da Praça de Maio e as alemãs nazistas). Isto é algo que merece reflexão: como o gênero pode ser construído de todo tipo de forma. Existem muitas maneiras pelas quais o feminismo pode usar até mesmo noções convencionais e problemáticas de gênero como a maternidade. É por esta razão que eu acho que devemos pensar a masculinidade da mesma forma. A masculinidade é apresentada na literatura feminista fundamentalmente como um problema, e eu não negaria que ela é provavelmente um problema; mas não existe nenhuma razão não para se pensar nela como oferecendo possibilidades para uma política feminista radical, da mesma forma que a maternidade – esta noção sexista, patriarcal e problemática – foi uma base para uma política radical, feminista e antifascista na América Latina (eu a chamaria de uma política feminista, minhas amigas feministas lationamericanas não). A masculinidade é outra noção de gênero que precisa ser repensada (e as feministas já estão pensando acerca dela) como oferecendo recursos preciosos para resistir ao próprio patriarcado que insistiu nesta noção.
P: Em Whose Science? Whose Knowledge? a senhora propõe que tanto o feminismo quanto a ciência contêm “tendências progressivas e regressivas” e que é importante “promover as progressivas e inibir as regressivas”. Com este fim em mente, como a senhora determina a diferença entre as duas?
R: Bem, não se trata de algo que uma pessoa decida; isso é algo que emerge justamente dos tipos de críticas políticas e científicas das quais estamos falando. Algumas tendências progressivas e regressivas tanto no feminismo quanto na ciência são óbvias, pelo menos para mim. Por exemplo, o racismo é uma tendência regressiva no feminismo; talvez alguns tenham a intenção de ser racista, mas muitos de nós não intentamos isso e, no entanto, fazemos suposições racistas porque não questionamos essas suposições à medida que elas nos chegam da cultura dominante. Existe uma tendência regressiva contra a qual precisamos lutar, e o que é regressivo emerge de uma discussão política. A mesma coisa é verdadeira em relação à ciência: o que exatamente é uma tendência regressiva ou uma tendência progressiva nem sempre é claro. Por exemplo, defender uma objetividade forte, reforçar a objetividade, é uma tendência regressiva ou progressiva? Muitas feministas e não-feministas pensam que se trata de uma tendência regressiva, e oferecem bons argumentos – foram desenvolvidos ótimos argumentos e eu tento não esquecê-los. Em primeiro lugar, isso reafirma a autoridade da ciência; reafirma um tipo de noção internalista de ciência e argumenta que oferece a perspectiva mais crítica e poderosa sobre a ciência. Apesar disso, de outras formas meu trabalho resiste a isto. Eu falo sobre começar de ‘fora’ da ciência. Então, tem algo um pouco regressivo sobre se insistir no fortalecimento da noção de objetividade. Muitos críticos da objetividade afirmam justamente isso. Por exemplo, Feyerabend tenta fortalecer o relativismo e Lorraine Code trabalha com subjetivismo e relativismo. Eles estão falando do outro lado da dicotomia.
Agora, minha visão nessas questões é que se você vai permanecer com aquela dicotomia, por que se aliar ao lado fraco? Pegue a retórica forte. Chame-a de ‘forte’ e agarre-a – isto é, se você for permanecer naquela dicotomia, que foi ela própria construída pela mentalidade objetivista. A mentalidade objetivista disse, “Après moi le deluge”, “relativismo ou subjetividade”. Simplesmente pegar o que eles rejeitam não é útil. Isso não significa que esta seja a única forma de se desconstruir esta oposição – ou mesmo que aqueles de nós que estamos tentando desenvolver padrões mais fortes de objetividade, não importa o nome que demos a isto, estão de fato desconstruindo aquela oposição porque muitas pessoas vêem a teoria da perspectiva feminista como relativista e subjetivista. De fato, se você permanece nesse referencial, a objetividade forte tem elementos de ambos, no sentido que substantivamente recusa ficar em um lado ou em outro daquela dicotomia. Então eu estou usando a retórica da objetividade por que ela é uma linguagem incrivelmente poderosa. Trata-se de uma tentativa calculada de tentar torná-la progressiva porque (espero não soar muito cínica aqui) minha posição é a de que noções como a de objetividade estão profundamente arraigadas nas instituições ocidentais das quais temos mais orgulho – a tradição legal, por exemplo. A jurisprudência feminista e outras jurisprudências radicais estão poderosamente preocupadas com a noção de objetividade e com a falta de objetividade na jurisprudência convencional. A objetividade é central às políticas públicas, é central à democracia ocidental: a idéia de que as decisões não são feitas com base no poder pessoal, mas com base em procedimentos, em um método. Assim, quando eu digo que esta noção de objetividade tem possibilidades progressivas, estou pensando tanto que ela as tem substantivamente (eu acho que é verdade, se se pode usar uma palavra tão fora de moda, que os padrões convencionais de objetividade são muito fracos e que os novos movimentos sociais estão demandando formas mais fortes de objetividade) e que esta é uma forma útil de se falar de objetividade. Eu acho que devemos conduzir nossas lutas intelectuais e políticas nos terrenos onde essas lutas estão ocorrendo. E para qualquer pessoa que trabalhe próximo às ciências naturais ou ao direito ou às políticas públicas, o relativismo e o subjetivismo não são o terreno onde essas lutas estão ocorrendo – esta não é uma linguagem que vai ajudar as pessoas a compreender como fazer as coisas melhor do que estamos fazendo. Então é difícil decidir o que é uma tendência progressiva e o que é uma tendência regressiva. São coisas com as quais temos que lutar todo o tempo.
P: A senhora e outras intelectuais feministas chamaram atenção para o papel da simbolização de gênero no discurso da ciência. Diz-se que a matemática é a “língua” da ciência. A matemática exibe simbolização de gênero?
R: Bem, certamente não no sentido em que a linguagem informal o exibe, mas a preferência pela matemática, por uma linguagem abstrata, tem sido considerada como exibindo uma tendência de gênero. Eu também diria que se trata de uma tendência majoritária: uma tendência ligada à operação de burocracias. As burocracias precisam ser operadas de acordo com procedimentos que serão válidos em todos os lugares. Algumas das críticas ao colonialismo são claras a respeito disso. Elas falam da necessidade de uma linguagem que possa ser aplicada na Índia, na África ou nas Américas, uma linguagem que não seja peculiar a uma situação particular. Um império deve ser controlado de Roma (ou de Londres, ou do Pentágono) e, assim, as linguagens abstratas são úteis porque não dependem de contingências locais. Dado que a ciência se beneficia de conversações entre culturas, de pessoas com diferentes horizontes culturais, as linguagens abstratas são particularmente úteis. Um russo, um inglês, alguém do Japão e alguém do Canadá podem fazer física juntos porque compartilham de uma linguagem que independe de suas histórias locais, culturais. Outras pessoas argumentaram que a matemática exibe simbolização de gênero, mas eu não tenho certeza e certamente não concordo com isso assim de cara. Mas eu acho que a tendência para essas linguagens abstratas é uma tendência que faz parte do controle, é parte das burocracias.
E não existe nenhuma razão pela qual a matemática não deveria ser útil à física, independentemente de sua utilidade cultural. Existem alguns aspectos quantitativos na natureza (ou aspectos da natureza que são bem compreendidos em descrições quantitativas). O problema é quando se acredita que tudo que se quer saber sobre a natureza pode ser bem descrito em fórmulas matemáticas; existem muitos aspectos da natureza que não são bem descritos desta forma. De qualquer forma, a natureza não fala nenhuma língua; somos nós que falamos por meio de linguagens. Nós falamos muitas línguas naturais e a matemática é parte de todas elas. Eu acho que uma maneira melhor de se pensar nisso é: a matemática sempre tem que ser interpretada. “Dois mais dois é igual a quatro” não quer dizer nada. Não se tem idéia de como aplicar isso até que alguém traduza esta idéia, até que se coloque ela em um contexto. Existem debates intermináveis sobre o que conta como “dois” ou “mais” ou “igual”. Esse é um argumento que eu estou pegando de Morris Kline, o matemático internacionalmente renomado que escreveu “Mathematics: The Loss of Certainty”, um livro que ganhou muitos prêmios há alguns anos. É como uma história da matemática e da busca pela certeza. Ele diz que a matemática é muito como o direito: existe uma lei, mas você não sabe como aplicá-la até que a história dos casos legais entre em jogo. É a mesma coisa com a matemática: você pode ter uma sentença formal, mas para que ela serve exatamente e o que ela tem a ver com qualquer coisa é uma questão de como ela é usada em projetos contextuais particulares, se é que podemos chamá-los assim. Esses projetos têm restrições de classe, gênero e outras, e assim as fórmulas matemáticas algumas vezes receberão significados que são gendrados, mas a matemática, em si mesma, não tem uma simbolização de gênero.
P: A senhora mencionou os feministas homens e, na introdução de “Feminism and Methodology: Social Science Issues”, sugere que, apesar de argumentos em contrário, os intelectuais do sexo masculino podem desempenhar um papel ao iniciar e conduzir pesquisa “feminista”. A senhora poderia elaborar um pouco mais acerca do papel dos homens no feminismo?
R: Eu vejo o papel deles como paralelo ao papel dos brancos no antirracismo: como extremamente importante, distintivo e difícil. Isso não quer dizer que o feminismo por mulheres não seja difícil de desempenhar. Como eu disse, os homens têm suas próprias contribuições distintivas, não-usuais e importantes para o feminismo e para o entendimento de todos acerca do gênero e das relações entre os gêneros. O feminismo nem sempre, e por razões compreensíveis, gostou da idéia de homens feministas, da mesma forma que as pessoas de cor nem sempre gostaram da idéia de ter pessoas brancas em suas organizações revolucionárias. Os grupos dominantes sempre acham que sabem mais. Mesmo quando querem fazer o bem e são bastante sensíveis, os estilos culturais são diferentes e existem certos assuntos que são muito difíceis de serem discutidos em grupos mistos. Por exemplo, questões sobre sexualidade são extremamente difíceis de serem faladas por homens e mulheres em qualquer grupo, mas certamente que, em um grupo misto, todo mundo fica defensivo. E a defensividade não é um bom contexto para se pensar acerca de nada. Existem outros assuntos semelhantes em grupos brancos/não-brancos que são bastante difíceis de se discutir. Na medida em que permanecemos em discussões sobre a lei e sobre coisas seguramente distantes, está tudo bem; mas na medida em que começamos a falar sobre a maneira particular de se conduzir a discussão, por exemplo, as coisas se tornam bastante desconfortáveis porque nós não nos damos conta de que a maneira como fazemos as coisas normalmente são estranhas e alienantes. Assim, eu acho que o papel dos homens no feminismo é um papel crucial e excitante, para eles e para todo mundo – e também um papel muito difícil e problemático. Felizmente, existem muito mais homens vindo para o feminismo agora que estão produzindo teoria feminista de tipo muito útil. No meu curso de introdução à teoria feminista, eu sempre passo um texto exclusivamente para os homens. Eu venho usando por muitos anos um livro maravilhoso, “Contemporary Perspectives on Masculinity”, do filósofo Kenneth Clatterbaugh. Trata-se de uma revisão crítica dos diferentes aspectos do movimento de homens, incluindo diversas formas de feminismo masculino: o feminismo masculino socialista, o feminismo masculino negro, o feminismo de homens gay, o feminismo masculino liberal – feminismos paralelos aos feminismos femininos, do padrão que nós ensinamos, das grandes tradições teóricas. Eu acho que é importante para os homens que eles criem seus próprios lugares no feminismo. O movimento masculinista e os estudos sobre homens têm tentado fazer isso, e as feministas têm se mostrado bastante ansiosas em relação a isso, por razões boas e más. Nem todas as partes do movimento masculinista são feministas, e isso sempre foi um problema. Mas nós não podemos controlar as idéias e movimentos que colocamos em curso. Eu sempre me sinto assim em relação à minha própria escrita, aos meus próprios livros: eles são como crianças que colocamos no mundo, e você não pode acreditar no que elas fazem lá fora. Então eu tento pegá-los de volta, endireitá-los, dar-lhes forma e mandá-los de volta para o mundo. Eu acho que tenho que lutar pelos meus textos de forma contínua; a cada vez que se é lido, é um texto diferente que é lido, é um livro novo que está lá. Eu acredito que o significado é construído pelos leitores. Você me viu rir de algumas das metáforas estranhas que usava há dez anos; hoje em dia o que eu escrevi então me parece muito diferente. É a mesma coisa com o feminismo em geral: nós devemos estar aptos a largar parte dele e, por outro lado, voltar e lutar com os homens acerca dos feminismos, sem pressupor que nós temos o direito de determinar que tipos de feminismos eles terão. Os homens devem se decidir acera de seus próprios feminismos, da mesma forma que os brancos devem se decidir acerca de como desenvolver seu próprio antirracismo. Mas é melhor ouvirmos aquilo que outras pessoas afirmam não ser tão bom acerca da forma como trabalhamos. Isso não significa que temos que fazer o que elas dizem, mas devemos levá-las a sério.
P: Em Whose Science? Whose Knowledge? a senhora discute a “falsa” crença de que “os cientistas podem fornecer as explicações mais versadas e autoritativas para suas próprias atividades, assim, sociólogos e filósofos (inclusive os feministas) deveriam se abster de fazer comentários sobre áreas nas quais não são peritos”. Dadas as tendências intelectuais recentes de dissolução da fronteiras disciplinares, como evitar a apropriação indevida do conhecimento de uma área por parte de intelectuais de outra área?
R: Para mim, isso não diz respeito à dissolução de fronteiras disciplinares, embora eu entenda como os defensores das fronteiras poderiam perceber a questão desta forma. Trata-se do estabelecimento de conversações entre, e de dentro para fora das, fronteiras disciplinares. Deixe-me dar um exemplo concreto. Os cientistas sempre falam para fora da ciência: eles sempre estão no Congresso, na televisão e sendo entrevistados pela Newsweek nos corredores. Não é como se eles falassem sempre entre eles; é que eles reclamam para si o conhecimento sobre a natureza da ciência. Os filósofos fazem a mesma coisa, isso não é específico à ciência; toda disciplina faz isso. Nós pensamos que somos os especialistas em relação às nossas áreas particulares. Afinal, por que estivemos na universidade por todos aqueles anos? Por que outra razão nós somos contratados por todos esses departamentos se não somos peritos em nossas próprias áreas? Eu não acho que se pode evitar a apropriação indevida do conhecimento de uma área por outra. A apropriação entre as áreas é um elemento crucial para o avanço do conhecimento; pegar modelos, métodos, metáforas e formas de pensar de uma área a aplicá-los a outra área é exatamente a maneira pela qual a ciência progride. Kuhn tem uma discussão sobre isso, sobre como as mudanças paradigmáticas não são geradas por pessoas na própria área porque elas são excessivamente socializadas no campo, excessivamente preocupadas com as maneiras mais antigas de se fazer as coisas. Tais mudanças tendem a derivar de pessoas bem treinadas em uma disciplina ou em outra, de forma que elas saibam o que significa ser disciplinado, ser um pensador rigoroso; mas dado que seu pensamento não foi limitado por aquele campo, elas são capazes de pensar novos pensamentos sobre aquele campo e a perguntar novos tipos de questões. O que é uma apropriação indevida? É pegar meu trabalho e usá-lo de formas que eu não pretendia? Nos estudos literários fala-se sobre a morte do autor; eu acho que deveríamos falar da morte do cientista da mesma forma: os cientistas não podem – e de fato não o fazem – controlar a forma como seu trabalho é usado. De certa forma eles entendem isso; eles sempre dizem “Nós não temos responsabilidade sobre nosso trabalho uma vez que ele deixe nossos laboratórios”. Por outro lado, eles dizem que suas intenções restringem a forma como se pode ler suas teorias: se eles não quiseram fazer o mal, então não há mal algum que possa derivar de suas teorias; ele vem de algum outro lugar. Isso não ajuda. Então, o que é a apropriação indevida do trabalho intelectual? Eu não estou dizendo que não existam malentendidos e usos infelizes das teorias de um campo ou outro – existem. Mas esses decorrem dos mesmos processos que também resultam em usos bastante criativos de outra área. A maneira como não se evita, mas se trabalha contra apropriações indevidas de um campo por parte de outro é argumentando contra elas. Se achamos que o determinismo biológio não é útil para se compreender fenômenos sociais, então precisamos argumentar contra isso, juntar evidências e mostrar como modelos que trabalham com cupins podem explicar muitas coisas, mas não constituem os melhores modelos para explicar a Revolução Francesa, a Revolução Americana, ou a escrita do próprio livro Sociobiology. Precisamos desenvolver os argumentos nós mesmos. Isso provavelmente constitui o tipo de coisa que alguém chamaria de apropriação indevida de uma área por outra.
P: Sua discussão da teoria da perspectiva feminista em “Whose Science? Whose Knowledge?” em relação às vidas lésbicas parece pressupor que o conhecimento é sempre, e em toda parte, desejável. No entanto, o trabalho de escritores como Michel Foucault sugere que conhecer é uma forma de controle tão frequentemente quanto é uma forma de liberação. Seria o “conhecimento” – de uma perspectiva lésbica ou qualquer outra – o telos ou desideratum necessário da pesquisa feminista?
R: Qual seria o fim apropriado da pesquisa, senão o conhecimento?
P: Bem, sua resposta à questão sobre a abolição do gênero, por exemplo, sugeriu que não precisamos resolver essa questão, o que em algum sentido significa que não estamos tentando saber a resposta em relação a esse dilema, então essa seria uma forma de se falar de pesquisa não dirigida ao conhecimento.
R: Eu acho que é importante não se fechar as perguntas, se você está pensando no conhecimento como uma forma de se fechar as perguntas, afirmando “Isso é o conhecimento agora, então não há mais lugar para discussões”. Essa é, com freqüência, a forma como o conhecimento é apresentado, muito embora todos saibamos que isso não é verdade. Se pensarmos que as ciências são nosso modelo, as ciências (teoricamente, supõe-se) nunca faz afirmações como essa. Elas sempre têm que manter as perguntas abertas à revisão futura com base em novas evidências ou em uma mudança conceitual ou outra. A verdade não é uma noção que deveria aparecer na ciência de acordo com os princípios desta última; os filósofos tendem a falar mais sobre isso. Os cientistas podem falar sobre algo ser “menos falso”, mas não “verdadeiro”. Eu acho que o feminismo, em particular, não deveria fechar as disputas, os debates. Você está certo, a palava conhecimento é uma palavra difícil. Sempre que falamos de algo como conhecimento socialmente situado (como pensar a partir de vidas lésbicas, ou, mais geralmente, de vidas de mulheres ou de vidas negras) isso parece uma contradição em termos porque “socialmente situado” sempre significou “mera opinião”. O contraste filosófico convencional, é claro, se dá entre conhecimento, que escapa à localização social, e opinião, que é problemática justamente por ter uma localização social determinada. Então, você está certo, existe algo contraditório na continuação do uso dessa palavra conhecimento para falar sobre a produção dos resultados de pesquisa que, supostamente, tentam escapar desses pressupostos do Iluminismo e de outros mais antigos. Mas eu acho que as feministas precisam (todos nós precisamos) compreender como o mundo se estrutura. Nós herdamos compreensões distorcidas sobre a estruturação do mundo, e o heterossexismo é uma forma por meio da qual essa compreensão é distorcida. Como eu argumentei naquele capítulo, pensar a partir de vidas lésbicas nos possibilita perguntar coisas mais interessantes cobre a vida de mulheres e de homens. Podemos olhar para a heterossexualidade, a identidade sexual, como uma propriedade dos indivíduos; como uma propriedade estrutural, tal como é o gênero; e também como uma propriedade simbólica, uma propriedade de idéias. Conhecimentos subjugados são importantes de serem desenvolvidos; quando eles forem desenvolvidos, não serão mais subjugados. Mas sempre existe um outro conhecimento subjugado a partir do qual se pensar. Eu não acho que o conhecimento muda o mundo, mas eu acho que é melhor conhecer do que ter falsas crenças se você está tentando mudar o mundo.
P: Muito de seu trabalho é controverso. Existem críticas ou malentendidos acerca de seu trabalho que a senhora gostaria de discutir?
R: Bem, existem muitos. Deixem-me limitar-me a dois: um é um malentendido e outro é metade um malentendido e metade um problema não resolvido (e quem sabe como resolvê-lo? Teremos que trabalhar sobre ele). Um grande número de críticas ao meu trabalho deriva, de um lado, de filósofos que insistem que ele é mera sociologia e não filosofia; e, de outro, as pessoas dos estudos sociais da ciência ou, de forma mais geral, cientistas sociais que acham que se trata de filosofia. Ambas as críticas são confusas porque toda filosofia pressupõem sociologias e histórias do conhecimento, quer elas sejam articuladas ou não, e toda sociologia e história do conhecimento pressupõe filosofias da ciência, quer elas sejam articuladas ou não. No fim das contas, historiadores e sociólogos consideram que estão produzindo conhecimento, então devem ter alguma teoria sobre como se deve fazer isso, estejam ou não articulando tal teoria. Por outro lado, filósofos – epistemólogos - fazem recomendações; isso supostamente os distinguem de historiadores e sociólogos, que meramente proveem descrições. Mas, como os filósofos gostam de dizer, “não há dever ser sem poder ser”. Eles devem ter idéias sobre como se pode produzir conhecimento caso estejam fazendo prescrições sobre como proceder. É simplesmente uma confusão de ambos os lados não perceber que qualquer teoria do conhecimento envolve tanto o descritivo quanto o prescritivo. Envolve alguma compreensão, correta ou incorreta, sobre o que é a sociologia e a história da ciência e algum tipo de prescrição sobre como se deve proceder. O feminismo tem que articular ambas as coisas porque está contestando essas visões. Ele está contestando as histórias e sociologias padrão do conhecimento, por um lado, então ele tem que postular teorias alternativas. Ele está dizendo: ‘veja a forma como o conhecimento era produzido’. Nós estamos objetando às formas particulares nas quais o conhecimento vem sendo produzido e às concepções particulares do que é o conhecimento. Nós estamos dizendo que a história da ciência contem uma história bastante diferente que inclui uma história do gênero, por exemplo, que não foi incluída nas versões padrão das histórias e sociologias da ciência. Não se pode compreender os resultados de pesquisa na sociologia e na história da ciência até que se olhe para o papel que a dinâmica do gênero está desempenhando, por exemplo. E, por outro lado, à medida que fazemos essas sociologias e histórias, estamos contestando as filosofias da ciência. Estamos dizendo, ‘olhe, se você quiser entender a história e a sociologia da ciência, deve começar pela vida das pessoas marginalizadas para poder formular perguntas’. Trata-se de uma epistemologia ou de uma metodologia, dependendo da perspectiva de que você olha. Esta mesma relação (ou conflito, ou confusão, como quer que se queira caracterizar) entre a teoria da perspectiva feminista como uma epistemologia ou uma metodologia é importante. Ela é ambas, em seu sentido mais amplo. A descrição metodológica a coloca no lado da ciência social, de certa forma, e a descrição epistemológica a coloca do lado da filosofia. Essas disciplinas – filosofia, por um lado, e a história e a sociologia do conhecimento na ciência, por outro lado – se comprazem em atacar-se mutuamente e em estabelecer fronteiras enormes entre suas atividades, mas elas simplesmente compreenderam mal seus próprios projetos, a história dessas disciplinas e o que é necessário para que se possa produzir as caracterizações mais adequadas das coisas que querem caracterizar. É necessário uma caracterização melhor acerca de como a história da ciência funciona, do que tem sido responsável pelos grandes avanços na história da ciência. Precisamos falar sobre como os sucessos da ciência ocidental são, em parte, devidos à expansão européia. Isso diz respeito a uma história e a uma sociologia da ciência; trata-se de uma história e de uma sociologia da ciência alternativas. E, claro, historiadores e sociólogos vão objetar a isto; então você tem que lhes oferecer uma filosofia da ciência – a teoria da perspectiva feminista, por exemplo- a fim de dizer que se consegue uma compreensão mais objetiva das histórias da ciência ocidental se começarmos a partir da vida daquelas pessoas que não tiveram tanto sucesso sob seu domínio.
Esta é uma confusão que eu gostaria de esclarecer. A segunda foi colocada como uma crítica ao meu trabalho: tem-se afirmado que a teoria da perspectiva feminista é outra forma de experiencialismo, que ela defende uma fundamentação diferente para o conhecimento – nomeadamente, a experiência das mulheres. Existe uma série de boas objeções a esta concepção. Se você pensa em ‘fundamentações’ da maneira convencional, o que parece é que o feminismo está simplesmente substituindo as experiências dos homens pelas experiências das mulheres a fim de fundamentar as proposições de conhecimento. É verdade que a experiência das mulheres tem sido extremamente importante como um lugar a partir do qual questões críticas têm emergido a fim de desafiar o conhecimento convencional, mas este é um sentido de fundamentação muito diferente da noção convencional de fundamentações, que considera a experiência como algo não-mediado, básica e pré-social – que se pode reduzir o conhecimento a seus componentes experienciais e assim fundamentá-lo mais firmemente. É parte do brilhantismo da epistemologia feminista articular este lugar difrente para a experiência na produção do conhecimento. Claro que sou simpática àquelas críticas que dizem ‘você não está fundamentando seriamente a base do conhecimento na experiência das mulheres, está?’. Eu respondo, ‘não, claro que nao. Mas, por outro lado, a experiência das mulheres, a experiência marginal, joga um papel crucial nesta produção de conhecimento’. Eu articulei isso da melhor forma que posso articular agora, como o lugar a partir do qual diferentes questões críticas surgem. Essa dificuldade reflete uma dificuldade maior na epistemologia, e no pensamento ocidental, de forma mais geral, acerca da relação entre experiência e conhecimento científico. Ela nunca foi resolvida de forma satisfatória. Experiência, da forma como aparece nos escritos sobre a ciência, é um termo altamente teórico. Ele é usado para significar uma gama de coisas diferentes. Seu aspecto mais problemático é a forma como ele é encarado como anterior à construção social, anterior ao social, então as pessoas querem falar sobre ‘interpretações da experiência’. Existe a experiência e depois existem diferentes interpretações dela. Isso a torna anterior ao social. Não se trata de interpretações [da experiência]; ela é construída por meio dessas interpretações, por assim dizer, e passa a existir à medida que a articulamos no seio de um discurso ou de outro; quer estejamos articulando ela para nós mesmos ou por escrito. Na teoria da perspectiva feminista, a tentativa de, por um lado, articular o importante papel que a experiência das pessoas marginalizadas, da experiência das mulheres, tem para a geração de um conhecimento feminista e, por outro lado, a tentativa de escapar do fundacionalismo, tem tornado difícil compreender o papel da experiência. Mas eu acho que isso é algo que precisa ser muito mais pensado por todo mundo. A teoria da perspectiva feminista está propondo uma terceira via: a experiência não é o fundamento do conhecimento naquele sentido tradicional, nem é irrelevante para o conhecimento. Ela é relevante de muitas, muitas maneiras, mas especialmente como uma geradora de perspectivas críticas. É por isso que, mais recentemente, eu venho tentando contornar o problema da experiência (porque experiência desemboca em uma série de dificuldades e discussões não necessariamente esclarecedoras) falando sobre ‘começar pelas vidas das mulheres’. Não ajuda muito, mas ajuda um pouco porque as vidas constituem um lugar objetivo, e este é o ponto da perspectiva feminista. Pense sobre como a teoria da perspectiva feminista toma emprestado a ‘perspectiva do proletariado’ marxiana. Marx não estava fundamentando o Capital na experiência do proletariado, no sentido de que tal experiência, aquilo que o proletariado diria, seria a medida da adequação do Capital. Isso é algo tão absurdo que nem sabemos como reagir a isto. Ainda assim, a experiência do proletariado era importante. Agora, eu não estou dizendo que Marx resolveu a questão; ele meio que contornou todo o problema e a sua tendência a atribuir um papel especial aos intelectuais era uma forma de contornar o papel problemático da experiência.
Então, eu acho que o feminismo herda o legado das explicações inadequadas acerca da relação entre experiência e conhecimento, para colocar da forma mais introdutória possível. Nós realmente não temos certeza de como pensar sobre esta relação, mas é crucial [considerar] as pessoas oriundas de grupos marginalizados, testemunhar sua experiência. Em um artigo ainda não publicado eu falo sobre isso, baseando-me nos escritos de pessoas de cor e de outras feministas. Em primeiro lugar, isso cria o tipo de sujeito que pode fazer história e gerar conhecimento. Ele emerge como sujeito com uma história própria (esse é o tipo de discurssão que pos posmodernos detestam). Ao articular a própria experiência, recupera-se a própria história por meio, por exemplo, das narrativas dos escravos. As narrativas dos escravos estão recuperando sua história aqui. O aumento de consciência do feminismo está recuperando uma história que não pode ser definida pela forma como os grupos dominantes definem quem você é. Ele está criando sujeitos históricos, localizados em uma posição histórica definida, que devem emergir para que a produção do conhecimento e da história possam ocorrer, que se tornam agentes da história apenas por meio desse processo de testemunhar a própria experiência – que é, claro, um processo coletivo. Isso é feito em frente de outras pessoas; é feito conjuntamente. As narrativas do escravo não estão falando de experiências individuais, embora, claro, estejam; elas estão relatando a participação individual em uma experiência coletiva. A mesma coisa ocorre em relação aos grupos de aumento de consciência de mulheres. Claro que esses grupos estão falando de detalhes individuais, mas esses são detalhes de uma experiência coletiva que está ocorrendo neste momento da história para essas pessoas. Ao pensarmos sobre isso desta forma, podemos ver como isso gera um sujeito de conhecimento, um sujeito coletivo de conhecimento, não o tipo de sujeito solipsista que se torna gênio sozinho, nem o tipo que se junta a uma comunidade e nunca tem um pensamento fora daquela comunidade. (Tantas pessoas se fecham na comunidade científica como o corpo apropriado para efetuar julgamentos sobre a adequação de qualquer tipo de afirmação; isso, claro, é um problema se todas são da mesma classe, raça e momento histórico). Então, em todo caso, estou pensando sobre diversas formas como o feminismo e os maravilhosos escritos novos das pessoas de cor, de gays e lésbicas, e de pessoas da classe trabalhadora, e de pessoas de várias etnicidades, nos têm forçado a repensar a relação entre experiência e conhecimento e a rejeitar as formas simplistas nas quais o pensamento ocidental pensou acerca dela. E isso, no caso do meu próprio trabalho, levou a críticas, e eu nunca consigo decidir se essas críticas são apropriações indevidas ou incompreensões do meu trabalho, ou se estão colocando o dedo em alguma coisa que ainda não pensei e, portanto, sobre a qual devo pensar mais claramente.
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