terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Recife Era Uma Festa



Fernando da Mota Lima

A partir de meados dos anos 1970, muita gente com quem convivia caiu numa grande festa nas noites de Recife. Vínhamos todos, ou quase, da esquerda política que era a tônica nos círculos da classe média universitária. Penso que dois fatores decisivos concorreram para a emergência dessa inflexão cultural: a ditadura militar e a simultânea irrupção da cultura narcisista. Esta mereceu de Christopher Lasch um estudo fundamental das ciências sociais contemporâneas: A Cultura do Narcisismo, pouco adiante desdobrado num livro igualmente fundamental: O Eu Mínimo, entre nós traduzido como O Mínimo Eu. A ditadura suprimiu do horizonte da nossa vida durante os anos de chumbo, momento que aqui considero, qualquer possibilidade de atuação política legal. Essa supressão também concorreu, sem que o notássemos, para que nossa energia pulsional fosse canalizada para a grande explosão dos costumes ocorrida nos anos 1970. Aludi um pouco a esse fenômeno em tom de memória num outro texto postado no meu blog (ver Olinda Era uma Festa). Considero agora uma dimensão paralela do mesmo fenômeno, só que restrito à atmosfera festiva do Recife.

Uma fração minoritária da esquerda com a qual convivia refugiou-se em fantasias revolucionárias insolúveis. Impotente diante da repressão política dissimulada ou patente em todo o círculo em que nos movíamos, inteiriçou-se numa percepção intolerante e fantasiosa da realidade. A pretexto de resistir à opressão, fechou-se num círculo inacessível a tudo que fosse ou parecesse valor ou mentalidade burguesa. Diria antes de tudo pequeno-burguesa, pois os atores desse círculo eram sintomaticamente egressos dela. Daí seu ressentimento social orientado antes de tudo contra a própria classe de origem. Que eu saiba, ninguém concedeu ainda o peso analítico devido a uma categoria psicológica essencial à compreensão dos grupos revolucionários e pseudorrevolucionários: a categoria do ressentimento social. Trocando em miúdos, muitos dos rugidos de ódio revolucionário que corriqueiramente ouvia nas livrarias Dom Quixote e Livro 7, sobretudo nas mesas de bar exclusivas das seitas pseudorrevolucionárias da época, não passavam de ressentimento social. Em nome de um ideal louvável, a luta contra a opressão de classe, liberamos nosso ódio contra tudo o que não temos e invejamos. Vejam onde acabaram tantos revolucionários depois bandeados para o PT. Vejam o oportunismo e a cafajestice de esquerda hoje fartamente recompensada com dinheiro público usado nos processos de anistia.



6 comentários:

Fiel ex-cudeiro disse...

Don Fernando,

É sempre um prazer ler a melhor prosa de ensaio de pernambuco. Você é um machadiano pós-vitoriano. Um conselheiro Aires que foi ao puteiro. Escreve com elegância e medida, mas já não precisa especular, tal como o Bruxo da Cosme Velho, o que há por trás de um olhar de cigana, pois já descobriu o que se esconde sob tantos decotes e no interior de várias calcinhas. No Brasil do Rebolation, não há decoro machadiano que resista, concordas? Só a prosa motista-limista resiste, penetrante, elegante e certeira.

Tão diferente da escrita insípida dos teóricos da Escola do Recife. Tobias se foi, mas a metafísica continua, meu caro. E debaixo de uma frondosa mangueira pernambucana, continuam a filosofar doente dos olhos, como diria Caeiro, detestando o fato de não terem nascido na Escócia ou Alemanha. Ler você e sua "tesão pelo concreto" é um grande alento.

Abraços saudosos, sempre!

PS- Exigo um post dedicado às putas do Chantecler. Ah, Don Fernando, o Chatecler, esse sim, era uma festa!

Fernando disse...

Ex-cudeiro:
Li o comentário acima comovido e lisonjeado. Ademais, é generoso demais para que me arrisque, sem risco de incorrer em imodéstia ou presunção, a dizer que concordo integralmente com ele; que você me lê com a precisão que sempre desejei encontrar na recepção crítica de algum suposto leitor da minha prosa.
Fernando.

Robson Fernando de Souza disse...

Cynthia e Jonatas, como já dito, o Consciência Efervescente mudou pra Arauto da Consciência, embora tenha mantido o link. Peço que mudem o nome no blogroll, até pra não confundir quem clica no Efervescente e entrará no Arauto.

Abs

Robson Fernando de Souza disse...

Obrigado =)

Vejo vocês no CFCH a partir do mês que vem (nos corredores, é verdade).

Abs

Le Cazzo disse...

Abraço, Robson. Jonatas

Cecí disse...

Querido Fernando,
De repente me vejo fisgada por tão agradável leitura!!. É sempre muito bom descobrir o Recife que não cheguei a conhecer pela delicadeza do seu olhar. Me parece que , de lá pra cá, apenas potencializamos a melancolia. Impossível evitá-la!, embora busquemos suspendê-la nos dias de carnaval... seja no “Depois do Escuro” ou na Rua do Burburinho.
Belíssimo texto e aguardo a crônica de amor.
Saudades, Cecília.