Luciano Oliveira - Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.
O mundo ocidental, do qual nós brasileiros fazemos parte, descende culturalmente tanto da fé de Moisés quanto da fé de Cristo. É a famosa tradição judaico-cristã. A prova a que Deus (ou Iavé) submeteu Abraão, os Dez Mandamentos ditados no Monte Sinai, os julgamentos de Salomão e tantas e tantas histórias que ouvimos na infância - ou vimos nas produções bíblicas de Hollywood, por que não confessar? -, da mesma maneira que o sangue escorrendo da testa de Jesus na noite que antecedeu o seu Calvário -, tudo isso faz parte da nossa sensibilidade e da nossa formação. Nesse sentido, somos todos um pouco judeus. E é nesse espírito que escrevo alguma coisa sobre os recentes acontecimentos no Mar Mediterrâneo, quando Israel, para reprovação mundial, atacou um barco em missão humanitária indo em direção a Gaza, para furar o bloqueio que o estado judeu lhe impõe desde que o grupo hamas chegou ao poder naquele território.
Uma das histórias bíblicas mais fascinantes é a do combate entre Davi e Golias. Como a maioria - para não dizer a quase totalidade - dos meus leitores, não sei direito quem era Golias. Sabemos apenas que era um gigante, e que no combate entre ele e o pequeno Davi, nossa simpatia vai para o pequeno. Essa é uma verdade universal: numa briga entre desiguais, tendemos a simpatizar com a parte mais fraca, nem que seja por um sentimento inato de compaixão. A Bíblia, o livro dos livros, dá forma ao que é um dos arquétipos que nos definem como humanos. Acho que essa é uma das razões pelas quais tanta gente razoável e de boa vontade mundo afora, mesmo repudiando os ataques terroristas de que cidadãos israelenses são vítimas rotineiras, são capazes de compreender os atos homicidas - mas ao mesmo tempo suicidas, é bom lembrar - dos homens-bombas.
É por isso que acho desgastante e inútil discutir se Israel, exercendo um suposto direito de autodefesa preventiva, tinha ou não o direito de abordar o navio manu militari; e se tinha, se o fez de forma desastrada etc. etc. etc. Esse é um debate que não levará a nada. A realidade contra a qual se insurgiu o navio, e contra a qual se insurge de um modo geral a opinião pública mundial hoje em dia, é o pezão de Golias no pescoço de Davi! É o bloqueio da faixa de Gaza, um ínfimo pedaço de terra onde vive apinhada uma população de mais de um milhão de palestinos - e que vai se tornando cada vez mais um imenso favelão; é um muro de contenção ao terrorismo que sai fatiando a Cisjordânia e, na prática, engolindo faixas de terra que serão um dia subtraídas a um futuro estado palestino; é a política criminógena (para não dizer simplesmente criminosa, porque está se lixando para as repetidas condenações da comunidade internacional) da construção de assentamentos judeus nessa mesma Cisjordânia - os quais, dentro da mesma lógica expansionista, serão um dia anexados ao Grande Israel, como sonham alguns fundamentalistas judeus. Essa política do fait accompli - cara, aliás, a um certo Adolf do bigodinho à la Chaplin... - é odiosa e não pode ser tolerada.
Isso dito, é preciso resistir à tentação de considerar Israel um estado totalitário, e não se pode - pelo menos ainda não se pode - exagerar na retórica comparando a miséria crescente e o desespero dos cidadãos de Gaza à abominação extrema de Auschwitz! Por ser uma democracia, existe, no interior mesmo de Israel, uma parte importante da sua opinião pública que não concorda com a arrogância de Golias. E é dessa arrogância que nós, descendentes e continuadores da tradição judaico-cristã, estamos cheios. E porque somos parte dela, nos sentimos no direito de dizer o que achamos disso tudo. O nazismo foi derrotado pelas armas. Mas da obra funesta do nazismo só nos desfazeremos inteiramente no dia em que o estado de Israel não mais ousar explorar esse horror para fundamentar um auto-outorgado direito a ser tratado como um caso especial no meio das nações que habitam um mesmo mundo comum - para falar uma linguagem em que ressoa Hannah Arendt, uma judia maravilhosa que Benjamin Netanyahu algum me fará deixar de amar.
Um dia Israel precisará de um estadista. Não estou falando de guerreiros. Esses, Israel tem e já teve demais. Estou falando de alguém com grandeza e coragem para dizer aos seus concidadãos que o estado israelense não colocará mais como pré-condição para reconhecer um estado palestino o fim de atos terroristas contra cidadãos judeus. Há naquela região do mundo ódio e rancores longamente acumulados, suficientes em todo caso para alimentar ações terroristas durante um bom tempo, mesmo depois do reconhecimento da Palestina como estado soberano. Que competência tenho eu para dizer essas coisas? Enquanto expert em geopolítica, nenhuma! E daí? O mundo tem especialistas demais nessa matéria, e a minha impressão é a de que um excesso de expertise num conflito complexo como esse, cujo novelo é impossível de ser desfiado, talvez precise justamente de olhares “ingênuos” para encontrar uma saída. Os especialistas só vão entulhar os dois lados de boas razões para continuar insistindo nos mesmos argumentos, e o novelo corre o risco de tornar-se um nó górdio - que, como se sabe, não se desata, e só se corta pela espada!
Neste caso específico, especialistas discutindo com a maior seriedade do mundo a legalidade ou não da ação israelense me fazem lembrar o sinistro Dr. Fantástico do filme famoso de Kubrick: enquanto o mundo vai sendo destruído pela hecatombe nuclear, ele fica fazendo cálculos sobre quantos serão os sobreviventes e quantos anos eles terão de viver em cavernas antes de poder voltar à superfície de um mundo calcinado. Entre o saber de peritos em morte e a Bíblia, fico com o livro dos livros.
19 comentários:
Melhor que um Davi palestino, só mesmo um Davi palestino e grego. Como eram virtuosos esses gregos...
Vou mais além: acredito na propagação de Davis mundo afora, movidos por um comprometimento de coexistência pacífica, que se assemelhe ao gesto brasileiro protagonizado pelo presidente Lula e sua embaixada.
Escolhemos seu blog para receber o Prêmio Dardos! Sugerimos passar lá no blog e conferir.
Abraço!
SEAF - Associação de Estudos e Atividades Filosóficos
http://seaf-filosofia.blogspot.com/2010/06/premio-dardos.html
Cara Ana,
Eu sei como você se sente. O mármore da Vênus Calipígia (a das belas nádegas) tem inspirado reações semelhantes. De acordo com o catálogo do Museu Real de Nápoles, a estátua da Vênus
"é colocada em uma sala reservada, onde os curiosos só podem entrar sob o olhar vigilante de um guarda, embora nem mesmo esta precaução tenha evitado que as formas arredondadas que emprestaram à deusa o nome Calipígia tenham ficado cobertas com uma camada escura, que trai os beijos profanos que admiradores fanáticos imprimiam lá todos os dias. Nós mesmos conhecemos um jovem turista alemão tomado por uma paixão louca por este mármore voluptuoso; e a comiseração que o seu estado mental inspirou nos fez abandonar qualquer idéia de ridículo".
Brincadeiras à parte, estamos honrados com a indicação ao Prêmio Dardos. Mesmo que ela tenha surgido com a publicação da imagem do nosso Davi palestino de virtudes calipígias!
Grande abraço.
Lulu-Cibalena (quem manda autorizar a patacoada!),
Ja' lhe disse que o melhor desse seu o'timo texto sobre esse novo caso Davi e Golias, em minha opinião, é o lugar de onde você fala: o do pertencimento. Palestina/Israel não são um problema apenas de judeus e palestinos, mas da humanidade. E eu ainda acrescentaria uma palavra à tradição judaico-cristã: o islã também tem fonte no judai'smo. Para o bem e para o mal, porque não so' os experts em geopoli'tica podem lembrar Dr. Fanta'stico: a prova a que Abraão foi submetido é uma dessas coisas que me fazem pensar que os desi'gnios de Deus (Iavé, Ala')também podem ser sinistros...
O problema é então de todo o mundo. E isso é tão verdade que Israel não insistiria nesse papel de Golias se o Conselho de Segurança da ONU, o apoio dos EUA, a estratégica ambiguidade européia e a dos Estados a'rabo-muçulmanos não permitissem. Talvez por isso seja bom que pai'ses como o Brasil resolvam meter-se nessa histo'ria: sem culpa pelo nazismo (embora sem esquecer que Vargas presenteou o Adolf do bigodinho com judias comunistas), temos mais serenidade para repudiar os atos de Israel sem pensar que estamos sendo anti-semitas por isso. Não estou aqui dizendo que a diplomacia brasileira foi maravilhosa e revoluciona'ria, mas essa aproximação com a Turquia sobre o dossier iraniano parece que pode trazer forças davidianas benfazejas sobre o drama Palestina/Israel. E se elas tiverem essas virtudes calipi'gias de que fala Cynthia, melhor ainda!
Falando nisso, parabéns pela indicação ao Prêmio, menina e meninos do Cazzo! Abraço.
Puxa, que bacana! Um prêmio! Muito obrigado. Em meu nome, em nome de Cynthia, Artur e todos o que vem fazendo o Cazzo com suas contribuições: Luciano, Tâmara, Fernando... Jonatas
Jonatas,
Esta humilde colaboradora agradece pela inclusão digital. E o Cazzo é bacana mesmo, podem ficar orgulhosos. Como Ana do SEAF, eu estou sempre divulgando o blog para colegas e, principalmente, estudantes. Alguns de meus alunos têm escrito para mim (ainda estão ti'midos para comenta'rios)dizendo que são leitores fiéis. E uma nova parceira acadêmica de João Pessoa disse-me que anda viciada no blog. E ando aqui planejando mais uma entrevista para o Cazzo. Curioso? Abraço.
ôba! Claro que estou. Abraço, Jonatas
Que história é essa de prêmio?
Se for verdade, faço feito um deputado de Brasília: quero minha comissão!...
Putz... agora que nós estamos ricos e poderosos, todo mundo vem querendo tirar uma casquinha. Lamento, anônimo, mas já comprometemos a grana com um cruzeiro pelas Ilhas Gregas.
Lulu, isso é você incognito?
Lógico que é!
Mais uma vez desaprendi de postar nessa janelinha... e saiu um Anônimo em lugar do meu nome!
Vou tentar consertar...
Ps. Não dá para eu ir nem que seja como serviçal de vocês?...
Essa tentativa de um “olhar ingênuo” sobre a questão, Luciano, deixou-me pensativo... Não tenho como deixar de lembrar da cara de assustada da cineasta brasileira (como é mesmo o nome dela?). Outro aspecto que me chamou atenção é que se o novelo é mesmo impossível de ser desfiado, ele não corre mais risco algum; ele já é górdio por definição! Resta-me aceitar a cortante realidade da espada.
Meu caro Anônimo,
Seu raciocínio é, do ponto de vista lógico, impecável: um novelo que não mais se desfia equivale a um nó górdio!
No caso, a diferença é mais simbólica: um nó górdio, só pela espada pode ser desfeito. Mas que algo naquela regisão do mundo tem que ser desfeito, tem. Não falo em corte epistemológico, mas é algo próximo disso. Ou seja: na minha visão ingênua a criação de um estado palestino, uma evidência que nem Bibi Netanyahu é capaz de negar, não pode continuar tendo como pré-condição a insxistência de qualquer ato terrorista, pelas razões que já expliquei. o Estado palestino futuro, óbvio, terá também de se comprometer a sério com isso. Fora isso, é sofrimento e miséria por mais 2000 anos.
Lulu, você, Tâmara e Fernando não precisam pedir licença. É só mandar que a gente obedece.
rs rs rs rs rs,
Cynthia,
verdades e brincadeiras à parte, a indicação não tem a ver com as nádegas!
Já havíamos cumprimentado pelo blog na postagem de 01 de junho e, inclusive colocamos Cazzo linkado no Blog da SEAF.
Coincidiu de eu ir trabalhar no prêmio Dardos que nos foi oferecido por reconhecimento e, além de alguns/ams velhos/as amigos/as decidimos indicar vocês que têm um belo trabalho.
Admiração é isso: não tem idade!
E, como você disse no "comentário": Não há eleição. O que há é indicação. E cada qual indicado/a vai indicando outros Blogs, seguindo aquele critério que está descrito em nossa postagem do Dardos: de contribuição etc...
Muito prazer.
Abraço para a equipe.
Estamos no Rio de Janeiro, ao dispor. Ana - seaffilosofia@gmail.com
Parabéns pelo texto, Luciano.
Gostaria de um comentário seu em algo que sempre me intrigou:
Sempre senti que algumas narrações artísticas do Holocausto parecem "tendenciosas".
Como aquelas em que não se fala em outras minorias como ciganos, homosexuais e etc.
Não quero negar nada, longe disso!!!
Mas me pergunto se a indústria da cinema não favoreça um pouco esse uso instrumental da memória...
Qual sua opinião a respeito?
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O blog continua espetacular.
Merece todos os prêmios.
Nem tenho como não concordar contigo, Luciano. Acrescentaria apenas que a bomba a ser desarmada (meu palpite a respeito do "algo" a ser desfeito) talvez não esteja escondida sob as vestes de nenhum militante do Hamas, mas nesse interesse todo mobilizado em torno da questão... Penso - santa ingenuidade - que talvez fosse melhor que desviássemos totalmente nossas melhores boas intenções (e interesses, e olhares) para outros povos, a fim de permitir que Davi e Golias possam descansar um pouco, coitados, desse voyerismo global que mais tem atrapalhado, do que ajudado. Afinal, "em briga de irmão..."
Oi, Pedro!
Concordo com você no sentido de que há uma "espetaculização" do holocausto. Acho detestável o receio de se dizer qualquer coisa sobre o horror do nazismo que não seja a celebração oficial e a visão hollywoodyana, por medo de se ser confundido com infames "revisionistas" que negam as câmaras de gás, por exemplo (uma inovação, aliás, que os nazistas começaram a usar contra alemães débeis mentais... Acho que a questão dos ciganos não é "esquecida" apenas porque não eram judeus. Na verdade eles não tinham a importãncia numérica ou cultural dos primeiros, e entraram meio de cambulhão nessa história, porque eram também considerados inferiores, parasitas etc. O grande ódio nazista é contra o judeu, sim. Basta ler o "Minha Luta" de Adolfo.
Há literatura de excepcional nível, produzida inclusive por historiadores judeus, sobre o holocausto, que foge do ramerrão habitual. Leia "modernidade e Holocausto" de Baumann. Há também um livro de Arno Mayer, que julgo uma obra-prima, mas do qual infelizmente só tenho a referência em francês: "La Solution Finale dans l´Histoire". O original é em inglês, e não sei no momento como se chama. Pra não falar da insuperável Hannah Arendt, que, aliás, atraiu contra si a cólera do stablishment Judaico quando, em Eichmann em Jerusalém (outra obra-prima), disse que Eichmann não era propriamente um "monstro", mas um sujeitinho insignificante, daí a famosa expressão da "banalidade do mal"...
Enfim, concordo de um modo geral com o que você diz.
Oi, Anônimo!
Infelizmente somos parentes distantes desse povo todo...
Luciano, obrigado pelas sugestões.
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