Dante no Exílio. Obra de Domenico Petarlini. Circa 1860.
Pedro Lincoln C. L. de Mattos (Professor do Departamento de Ciências Administrativas da UFPE)
Foi uma situação inusitada e um diálogo mais ainda. Cá estava ele, sete séculos após sua tumultuada passagem pela Itália medieval. Apesar de ser apenas uma figura meio diáfana na tela de meu notebook, pude reconhecê-lo pelas longas vestes, o nariz adunco e o gorro florentino, ainda hoje rid... digo, gracioso. Montava guarda junto àquele blog, não sei se para prestigiá-lo ou se para assegurar a autoria do famoso dístico que lhe fora tão caro: "Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate".
- Senhor Alagherii, sou um forasteiro, de passagem por esses sítios, cujo endereço me foi dado por amigos. Vejo que aqui se reúnem virtualmente pessoas interessadas em teoria e metodologia das ciências sociais. Fiquei levemente chocado com a referência ao famoso pórtico, idéia sua. (Não disse a ele, é claro, mas tinha também receio que, ao lado do papa Bonifacius VIII, posto por Dante no primeiro e mal-habitado destino do após-morte, eu me deparasse com um sucessor mais recente, Benedictus...). Devo realmente abandonar toda esperança ao adentrar esse campo acadêmico?
- Primeiro, podes chamar-me mesmo de Alighieri, já que meu amigo Giovanni Boccaccio, deixou meu nome assim para a posteridade. És, então, um forasteiro por esses sítios da sociologia? Isso me lembra meus longos anos de exílio em Roma... De onde vens?
- Sim, sou da área de administração – declarei, com certo receio de reação negativa dele, que era um nobre, filósofo e poeta; também não me ocorria que tivesse posto no Céu alguém da minha área. – Mas administração tem se esforçado por caracterizar-se como campo de interesse interdisciplinar, por isso tenho colegas da sociologia das organizações, da antropologia, da psicologia social...
- Não precisa se desculpar – atalhou-me. (Lembrei-me que seu problema era com os políticos, seus inimigos, não com os empresários e administradores de Florença, a qual não tinha ainda entrado no período de expansão mercantilista.) – Quanto à conotação, para o meio acadêmico, do pórtico de entrada ao Inferno, nada tenho a ver com isso. Fui chamado, citado, e fiz-me presente, pois também sou sensível ao “Impact factor”, o índice criado pelo Institute for Scientific Information. Vejo nesta citação uma bem humorada referência ao espírito crítico essencial às ciências sociais. É a verve acadêmica, meu caro, sofisticada e narcísica. Mas, tratando-se de inferno, pode ser também uma referência velada ao lugar-comum atribuído a Sartre, pois cada um dos que vivem ou viveram em “comunidades” acadêmicas – que me perdoe Kuhn pelas aspas – conhece o clima humano e social em tais ambientes...
- Sua sinceridade me estimula. Confesso-lhe: adentro o portal por não resistir à curiosidade.
- Ah, ha, ha! – Riu com malícia. – Não conheces o mito de Pandora e sua caixa? Nada contra as mulheres. Até o fim de minha vida fui um apaixonado pela minha Beatrice Portinari dos tempos de menino. Mas a moral da estória diz respeito à curiosidade, e esboça uma espécie de teoria genesiana para explicar a origem dos males que afligem a humanidade.
- Mas o senhor sabe como é essa coisa: não há argumentos que detenham um curioso.
- Ah, bom! Argumentos. Eis algo que aqui encontrarás com fartura! Este é o reino da racionalidade argumentativa, para plena satisfação de um prócer da segunda geração da Escola de Frankfurt, de cujo nome não me recordo bem. Mas, como sabes, fartei-me de escutar e debater com os frades dominicanos os escritos de Tomás de Aquino. Acabei preferindo à lógica formal a liberdade da literatura. Assim, previno-te!
Dante falava mais do que eu, e usando sempre a segunda pessoa do singular. A conversa com o próprio autor da Divina Commedia, obra que lera, em parte, há muitos anos, me deixava lisonjeado. Mas continuava com minha curiosidade sobre dois ou três pontos específicos relativos a metodologia de pesquisa e, com todos os riscos, queria passar sob aquele portal cuja advertência só tornava a entrada mais estimulante. Algum dos habitantes do sítio poderia, de repente, ter algo a contribuir, postando comentários, em uma reflexão que transpusesse quadros teóricos muito específicos da sociologia. Corro riscos, sim (“Curiosity killed cat”, lembram os ingleses). Mas, para quem também deixou para trás a vã esperança da modernidade por uma linguagem que representasse adequadamente sua referência, inclusive no caso das ciências sociais, atenua-se a ameaça letal da contraditória. E há sempre muito a ganhar com a controvérsia.
- Grazie, Signore Alighieri! – completei, com menção de avançar. Ele sorriu formal, e fez um movimento largo com a mão, como a permitir e convidar-me a entrar.
***
É inevitável recordar, neste contexto, Bruno Latour , na Introdução (“Opening Pandora’s Black Box”) de Science in Action: how to follow scientists and engineers through society:"The equipment necessary to travel through science and technology is at once light and multiple. Multiple […]; but the equipment is also light because it means simply leaving aside all the prejudices about what distinguishes the context in which knowledge is embedded and this knowledge itself.” Então lembra o escrito no pórtico do Inferno, de Dante, mote com que teci a primeira parte deste texto, e faz-lhe a paródia: “Abandon Knowledge about knowledge all ye [forma arcaica de “you”] who enter here”. (Latour, 1988, p. 6-7)
Achei Latour estimulante e bem-sugestivo no equipamento que deve portar algum curioso que se aventura aos sítios da ciência, ou dos cientistas (o que é quase o mesmo). Trago curiosidades – e inquietações, confesso – sobre o alcance do contexto social e lingüístico que produz a administração e a vida organizacional sobre os escritos científicos a respeito dessas coisas. Ele é curto, pois o contexto específico é subestimado. Mais: o conhecimento acadêmico ali é fortemente determinado por pré-julgamentos, como diz Latour; padrões metodológicos da ciência empírica e da sociologia produzida pela tradição moderna. Tal como ocorreu em outros campos de saber prático, aconteceu à administração, sobretudo a partir da segunda metade do Séc. XX, que a “cientificidade” foi claramente preferida à contextualidade na construção do saber teórico sobre ela.
Então concordo com Latour. Mas diante do tamanho das dificuldades, minha única dúvida agora é se “abandonar o conhecimento sobre o conhecimento” é, como ele sugere, tentar libertar-se de certos cânones que ditam a verdade e o erro em ciência, sobretudo a pretensão metafísica do método, ou se é renunciar à discussão epistemológica. Neste caso, tratando-se de administração, eu deveria restringir-me, como os demais, à dupla escolha: trabalhá-la como técnica ou entregar-me a um hibridismo teórico desnorteado, predominante no Brasil nas últimas décadas. Quem já não tem dúvidas, perdeu também a curiosidade; e quem tem ambas, como eu, desafia secretamente o oráculo e não deixa a esperança para trás.
Tendo-me socorrido de Latour para explicar o campo de minhas inquietações e curiosidades – não posso esconder um “caso” antigo com a epistemologia – passo a outro ponto, do meu máximo interesse no momento (projeto bolsa PQ). “Que se deve entender por ‘teoria em administração’? Isso comportaria gêneros diferentes?”. Note-se que pus as perguntas entre aspas: o problema (ou o equívoco) pode começar já na iniciativa de perguntar por tal coisa ou na maneira de fazê-lo. E sobre o interesse (ou não) do leitor pelas perguntas, exponho-me, peito aberto. Faz parte do risco que mencionei acima, no meu “diálogo” com o “meio-que-patrono” deste blog.
Mesmo confessando-me seduzido pela idéia de Karl Weick (1989) (teoria, imaginação disciplinada) , refiro-me, como ponto de partida, a “teoria-teoria-mesmo”, na acepção corrente em metodologia de pesquisa social: a estruturação “artesanal” e justificada de unidades conceituais de diferentes escopos (mesmo deixando Parsons de lado), com linguagem denotativa e intenção explicativa. Uma particularidade, porém: a idéia de teoria tem que permanecer aberta, sem apriorismos normativos. Porque a prática de teorizar, postos certos limites socialmente definidos, não está presa à conceituação que lhe sobrevem, geralmente de forma vacilante e controversa. Ultrapassa-a, por ser esta uma metalinguagem, sem dúvida também sujeita à crítica.
Então, a menos que se trate, à la positivismo lógico, a regra de formulação de toda linguagem científica como essência do significado válido (verdade), é legítimo, sim, começar pela acepção de teoria em ciência para, em seguida, examinar se a prática lingüística de referência (a teoria) comportaria, como sugerem as perguntas acima, formas de pensamento articulado e estável desencadeadas por intenções de prática organizacional e de gestão. “Intenções” é o termo forte da sentença acima. Suponho, pois, que a filosofia pragmática da linguagem, na linha de Wittgenstein, Austin, Searle e Grice (1971), sobretudo este, poderia dar nova amplitude à discussão, ao por o significado (no caso, de “teoria”) na intenção da ação social com uso de linguagem. Aliás, de certa forma, ela também deixa a prática lingüística acadêmico-científica um pouco como “rei nu”. Sim, pois será que alguém ainda sustentaria ser a intenção científica absolutamente única e diferenciada, ao buscar, de pleno direito e pela via da racionalidade lógica, a “verdade objetiva” das situações no mundo? Creio que não... (Aliás, para mim, “ontologia” é apenas uma referência a certas análises controversas, não qualifica qualquer afirmação de realidade.)
Assim, concluo, sobre a pergunta “Que se deve entender por ‘teoria em administração’?”: não é evidente que a resposta se reduza a uma “aplicação” da sociologia, sobretudo a das organizações, ou da psicologia social, etc. Além de “vida fora da Terra”, pode haver algo de novo a tratar aqui, quando for possível sustentar, como objeto de discursos científicos, a distinção entre falar sobre administração – e aí qualquer das atuais tradições de ciência poderá fazê-lo com suas próprias intenções, públicos e padrões metodológicos de grupo – e falar para a administração. Por que não pode haver padrões de racionalidade comunicativa (método) próprios, no segundo caso? E digo mais: já os há em formação, como fato, em áreas de trabalho literário limítrofe entre a academia e a consultoria organizacional. Na área de administração, há pesquisadores que, em sua produção, não perdem de vista os gestores. Exemplo seriam as análises de estratégia de negócio ou de políticas públicas, plenamente inteligíveis pelos praticantes da administração que ali buscam esclarecimento e orientação de qualidade sobre seus contextos decisórios. Os jogos de linguagem, como formas de vida, são inumeráveis, disse Wittgenstein (1996), embora nós os agrupemos em “famílias”. Nosso problema é, como lembrei acima, de metalinguagem, ou seja, de construir a gramática (para continuar com Wittgenstein) de um discurso ao mesmo tempo justificativo e incentivador de certas práticas lingüísticas, hoje ainda mal identificadas.
Mas o juízo é seu.
Admitida, contudo, como hipótese de trabalho, o que se acaba de dizer, vem a última questão posta agora ao blog e também ligada ao meu projeto de pesquisa (PQ): “Como a teoria sobre administração – um interesse acadêmico-científico – se articularia com a teoria para a administração? – um interesse, digamos, acadêmico-tecnológico”. Imagino dois planos: o pragmático, pois os teóricos que pensassem para a administração, mesmo adotando como público característico os praticantes, teriam um diálogo “fecundo” (ou seja, para fugir à ambigüidade da metáfora: estimulante da criatividade e da autocrítica, assim como do reconhecimento mútuo das diversidades) com seus colegas acadêmicos, por entender-lhes as bases (regras) da linguagem; e o plano semântico, potencialmente mais controverso. Pois há, no ambiente científico, as teorias da ação, umas mais outras menos sustentáveis em contextos sociais como este em causa. Exemplo: a teoria do habitus, em Bourdieu, parece de enorme afinidade com a estrutura de relações, ou campo, em que ocorre a administração. Objeção: e a incomensurabilidade dos paradigmas de pesquisa? Como anda essa discussão? Refluiu? Pode caber nesse contexto?
Desculpem-me a insistência em pretender firmar teoricamente, para um saber prático, uma linguagem analítica, com sistematicidade, respeitabilidade junto à ciência, e até potencial de institucionalização. Pensem no alcance da coisa. O ensino de graduação em administração anda meio à deriva, adota um ecletismo curricular indefinível ou justapõe, sem responder por que, elementos de sociologia e de outras ciências a blocos de sistematização da experiência profissional ou informações instrumentais. E olhem que estamos falando do maior curso de graduação do país, matriculando este ano um milhão de estudantes! O qualificativo “tecnologia gerencial”, certamente válido em uso mais restrito, é insuficiente para o gênero de linguagem teórica que imagino. E sabem por que, ando perdendo tempo com isso? Sabem por que não escuto mais a voz prudente e conservadora do “as coisas estão bem como estão: a administração é uma ciência social aplicada”? Porque não vejo mais sustentação em hierarquias: tanto para este fenômeno sócio-cultural chamado ciência, quanto para a adequação de uma lógica dedutiva (“aplicar”) da teoria à prática social. A rigor, a rigor, teoria e prática, como formas de orientação humana, bebem de fontes diferentes; em alguns casos a água de uma pode fazer bem à outra, em outros não. Não foi à toa que Kant proclamou a independência da razão prática em relação à teórica (“pura”). E não me peçam para escolher entre as duas...
Fui longe demais no delírio acadêmico?...
Referências:
LATOUR, Bruno. Science in action: how to follow scientists and engineers through society. Cambridge: Harvard University Press, 1988.
WEICK, Karl E. Theory construction as disciplined imagination. Academy of Management Review, v. 14, n. 4, October 1989, p. 516-531.
GRICE, Henry P. Meaning. In: STEINBERG, D.; JAKOBOVITS, L. (orgs.) Semantics. Cambridge: CUP, 1971. p. 53-59.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1996 [1936-1951]. (Os pensadores).
Um comentário:
Caro Pedro Lincoln,
Seja bem-vindo ao Cazzo! Embora com toques dantescos, não somos, assim, um infeeeeerno, inferno - de forma que você pode pelo menos reter a esperança de que suas reflexões serão bem acolhidas.
Confesso que me sinto um pouco incompetente para meter minha colher nas suas investigações, já que meu conhecimento de administração é basicamente nulo. Mas vou tentar contribir com duas provocações.
Em primeiro lugar, acredito que toda boa teoria sobre a sociedade (ou algum aspecto dela) digna desse nome enquadra-se na categoria de teoria social. Isso quer dizer que são interdisciplinares, embora possam ter partido de uma disciplina específica. Neste sentido, fico imaginando se essa busca por uma teoria administrativa (seria esse o nome?) não seria sintoma de uma crise de identidade da administração. Por outro lado, confesso que desconheço uma teoria social que tenha sido produzida por administradores, de forma que entendo um pouco as razões da crise.
A outra questão é mais específica. Será que essa definição de teoria como "a estruturação 'artesanal' e justificada de unidades conceituais de diferentes escopos, com linguagem denotativa e intenção explicativa" não é ela própria aprioristicamente normativa (além de excessivamente restritiva) e, portanto, incompatível com a ideia de práticas linguísticas?
Abraço.
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