* Jacques Lautman (Professeur émérite des universités; ex-diretor de ciência humanas do CNRS-Paris; ex-director do doutorado em sociologia da Université Aix-Marxeille I)
* Texto escrito para a conferência Diálogos Sociológicos (promovido pelo Departamento de Ciências Sociais da UFS), traduzido por Tâmara de Oliveira e originalmente publicado pela revista do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais da UFS (TOMO, n° 12, Jan./Jun. 2008)
Quando eu era um jovem professor da Universidade de Nanterre, mais ou menos em 1975, a força de Marx no mundo universitário era-me ilustrada por um estudante que me colocava regularmente a mesma questão: “qual a posição de Marx sobre isso?” Mas depois da queda do muro de Berlim, o interesse por Marx quase desapareceu – erroneamente, direi eu. Gostaria de lhes mostrar porque é preciso sempre reler pelo menos o Manifesto do Partido Comunista de 1848 (MARX, 1999), o primeiro livro de O Capital (MARX, 1999), que na verdade são três, e os textos históricos – principalmente o 18 Brumário de Louis Bonaparte (MARX, 2001). Não sou um especialista em estudos marxianos e nunca me interessei muito em saber se os manuscritos de juventude já continham todo o Marx ou se, pelo contrário, eles ainda estavam muito próximos do idealismo hegeliano. Isso quer dizer que eu quase não vou abordar o Marx filósofo do materialismo dialético. Além disso, também não vou instruí-los muito sobre o Marx economista. Com efeito, os próprios economistas de orientação marxista renunciaram há muito à oposição entre uma ciência econômica estritamente marxista e a ciência econômica dominante. A propósito, Joan Robson (1959), inglesa, disse de uma maneira definitiva que a medida do verdadeiro valor do trabalho é uma falsa pista (“red herring”). Vou me concentrar então sobre o Marx historiador-sociólogo e profeta revolucionário.
Antes de tudo eu vou pontuar duas observações introdutórias: 1- Marx é o melhor historiador da Revolução Industrial. A prova disso é que todos os historiadores das transformações sócio-econômicas dos séculos XIX e XX seguem mais ou menos o plano marxiano: passagem do capitalismo comercial ao capitalismo industrial, com as possibilidades de acumulação abertas pela máquina a vapor; formação da classe operária; expansão colonial e imperialismo. 2- Marx nunca descreveu o socialismo científico. Uma leitura científica de Marx é aquela que analisa as transformações históricas com seus conceitos, se pergunta se se é possível ou não interpretá-las em termos marxistas e quais conclusões pode-se tirar disso para uma ação política.
Digamos imediatamente que há três linhas possíveis de interpretação para a ação política e que elas são as mesmas há mais de um século: 1) a interpretação de Kautsky: o capitalismo digere as reformas que o militantismo socialista lhe impõe, mas um dia ele terminará por desmoronar. Reformemos então o capitalismo, mas preparemo-nos para identificar a ocasião de ativar seu desmoronamento. Esta foi, por muito tempo, a posição dos partidos comunistas francês e italiano; 2) a interpretação de Bernstein: a soma das reformas terminará por constituir a própria revolução. Sendo assim, a tarefa é a de ativar o processo reformista. Era esta a posição dos partidos social-democratas, quando eles ainda se diziam marxistas; 3) a interpretação de Lenin: não ao reformismo, viva a revolução violenta! Para se situar entre essas três linhas de interpretação para a ação política, é preciso examinar duas predições importantes de Marx: a) em primeiro lugar a da baixa tendencial da taxa de lucros com o agravamento da luta concorrencial entre os próprios capitalistas; b) em segundo lugar e em consequência da primeira, a da lei da pauperização absoluta ou relativa do proletariado ou do crescimento sem fim da exploração e da alienação.
É verdade que a diminuição tendencial da taxa de lucros realizou-se nas indústrias antigas, mas o progresso técnico e tecnológico abriu sem parar novos setores produtivos, nos quais os lucros são, durante alguns anos, muito importantes. Entretanto, é verdade também que não ocorre uma equalização das taxas de lucro. Sendo assim, nos setores de baixa lucratividade, três soluções foram utilizadas: a) a redução incessante dos custos, através do aumento da produtividade (mecanização, robotização) e da diminuição dos encargos trabalhistas; b) deslocalização das empresas para países com mão-de-obra barata e baixa proteção social; c) transferência, a cargo dos contribuintes, dos serviços públicos e das subvenções à agricultura praticadas pela Europa, Estados Unidos e Japão. Apesar dessas soluções, podemos dizer que a questão de saber se o rendimento global do capital baixou a longo prazo é ainda controversa. Provavelmente NÃO para o capital investido nos setores muito concorrenciais, onde uma certa equalização da taxa de lucros se opera. Por outro lado, SIM, ele baixou nos setores a investimentos pesados e longos.
No que se refere à predição de pauperização, há que se analisar a interferência interdependente de uma dimensão econômica e outra sócio-política das mudanças operadas depois da segunda guerra mundial. Com efeito, os progressos de produtividade permitiram o que os economistas da corrente da regulação chamam de passagem ao regime fordista de acumulação (dimensão econômica), fonte do que se chamou de compromisso fordista (dimensão sócio-política). Com efeito, Henry Ford concebeu a célebre Ford T para que ela pudesse ser comprada por seus operários. O compromisso fordista queria dizer que o capitalismo deveria tirar seus lucros do acesso cada vez maior de trabalhadores a um consumo de massa. Através disso a pauperização absoluta da classe operária não aconteceu e a das classes médias baixas também não – até um período recente. Quanto à pauperização relativa, que se pode analisar pela evolução de índices de desigualdade, ela se reduziu sensivelmente durante os anos do compromisso fordista. Compromisso este reforçado pelas necessidades de união nacional nos Estados Unidos durante a segunda guerra mundial, mas também, e esquecemos isso demais, durante os vinte anos de forte guerra fria.
Finalmente, devemos lembrar de duas objeções pesadas a Marx: a) a idéia de uma lei geral de evolução com conflito substituindo uma classe dominante por outra. Ora, é claro que o proletariado não pode tornar-se dominante, pelo simples fato de que é a maioria. Ou seja, a tomada do poder pelo proletariado é na verdade a de seus chefes. De maneira que a questão é a de saber como se opera e se mantém sua legitimidade de chefes. De Stalin a Fidel Castro vê-se que o problema é sério e o que, de meu ponto de vista, mais contribuiu para deslegitimar Marx intelectualmente; b) a idéia de uma independência total da economia em relação ao social e ao político. Trata-se de algo paradoxal no pensamento marxiano, porque Marx tem uma reflexão global sobre a história e no entanto ele cai na ilusão de ignorar que todo sistema econômico é ao mesmo tempo condicionado e condicionante em relação às outras grandes dimensões das relações sociais, dentre as quais o poder político é muito importante.
A verdade é que não existe mercado concorrencial em si. Todos os mercados têm regras e autoridades a ele exteriores para fazê-las respeitar. Neste sentido, os historiadores do capitalismo estabeleceram de forma convincente que condições geopolíticas e sociais foram necessárias para seu desenvolvimento – em primeiro lugar, uma vasta zona de paz civil e assim, a possibilidade das trocas. Por exemplo, a lei das vantagens recíprocas de Ricardo é conhecida: o vinho do Porto contra a lã escocesa; para que essa lei funcionasse era necessário que os navios tivessem que enfrentar somente as tempestades, logo, que os piratas fossem eliminados, objetivo este perseguido pelos países europeus entre os séculos XVII e XIX, mesmo onde eles estavam em guerra entre si.
Sem tratar especificamente da construção do regime e do compromisso fordistas, darei rapidamente uma interpretação do seu desmoronamento. Com isso, apesar da crítica e das objecções a Marx, chegarei ao que considero ser o sentido da atualidade de um tema central de Marx, qual seja o da concorrência entre capitalistas e da conseqüente opressão que eles impõem a seus assalariados. Os economistas da regulação me parecem os que melhor contribuíram à compreensão das evoluções macro-econômicas. Falo de um grupo de franceses, dos quais os mais conhecidos são Michel Aglietta (1997), Robert Boyer (1995) e André Orléan (1992). Como todos os economistas modernos, eles raciocinam tendo como postulado inicial o desejo ou a necessidade de crescimento, logo, de investimento. A partir daí eles utilizam dois conjuntos conceituais ligados: o regime de acumulação e o compromisso institucional. A economia não pode assegurar o crescimento sem uma certa estabilidade do regime de acumulação que repousa sobre condições em parte técnicas, mas que o compromisso institucional da época é encarregado de sustentar. Notem de passagem que eles não acreditam no equilíbrio tão caro aos neoclássicos.
Usando essa abordagem, pode-se dizer rapidamente que a época fordista se caracterizava por um regime de acumulação repousando sobre a produção de massa, com um deslocamento da partilha lucro/salários em favor dos assalariados (regimes sociais aí incluídos). Tudo isso funcionava com a participação de políticas públicas keynesianas e com a diminuição do poder dos acionistas nas empresas e em suas retiradas de dividendos. Vocês devem conhecer a tese de J. K Galbraith (1969) sobre a era dos gerentes. Em tal situação, o tema marxista do conflito de classes tornava-se muito ultrapassado. Mas esse regime perdeu fôlego em 1970 mais ou menos. As causas prováveis são múltiplas. A multiplicação por quatro dos preços do petróleo tiveram nisso um papel que eu julgo secundário. Mais importantes foram a diminuição dos ganhos de produtividade nas indústrias e o sucesso demasiado das indexações salariais. Daí, a desestabilização do regime de acumulação. Além disso, podemos citar a terceirização das atividades com saúde e educação que não trazem quase nada à acumulação, contribuíndo assim com o peso dos encargos do compromisso institucional.
No que se refere à compreensão das mudanças dos anos 80 e seguintes, é preciso dar um lugar muito importante à mundialização dos investimentos e do mercado de trabalho – que foram iniciadas na verdade nos anos 60, bem antes da criação da OMC e da mundialização financeira dos anos 80. Para falar curto e grosso, a Europa e os Estados Unidos tinham reservado para si os investimentos, logo, os empregos, logo, o crecimento das rendas, desde 1950. Foi a preocupação em se deslocalizar, em criar filiais de montagem automobilística etc., que pôs fim a essa situação de reserva. Pode-se já dizer desse processo de mundialização que se trata de um magnífico exemplo de contradição do capitalismo, no sentido de Marx. O mundo passou então a uma combinação, sobre base ideológica, entre monetarismo (realizando o sucesso das teses de Milton Friedman), desregulamentação liberal e redução do Estado do Bem-Estar Social. Um Primeiro Ministro Alemão, Helmut Schmidt, elaborou uma fórmula que tornou-se célebre: a redução dos salários reais permite lucros que farão o investimento de amanhã e os empregos de depois de amanhã.
A inversão é completa em relação à época em que se considerava que distribuir muito poder de compra ao maior número possível de pessoas era favorável ao crescimento. Tem-se uma espécie de retorno ao esquema de pensamento da economia clássica, mas, felizmente, com capacidades científico-tecnológicas de previsão global a médio prazo e, por outro lado, com a intervenção dos governos e instituições internacionais claramente mais fortes do que antes do período keynesiano. De qualquer forma o efeito social massivo é a diminuição da parte dos salários na renda distribuída, logo, o aumento dos lucros...Lucros estes que são, em parte, investidos na conquista de novos mercados, mas em parte vão direto para os bolsos dos acionistas e dessa pequena parcela de assalariados que se beneficiam dos stock options e de cláusulas financeiras extravagantes. Então, por um lado, o leque das desigualdades de rendas alargou-se fortemente, sem dúvida nenhuma mais ainda nos Estados Unidos do que na Europa – o que pode reabilitar a predição marxiana da pauperização relativa dos trabalhadores. Por outro lado, com a revolução eletrônica, o emprego não para de se contrair, de onde a criação dos novos pobres que são os desempregados – reatualizando o fantasma da pauperização absoluta. Assim sendo, eis meu ponto fundamental: o conflito de classes voltou à atualidade com um belo vigor. Neste sentido, parece-me significativo que um grande patrão francês (da Alcatel, Serge Tchuruk) tenha declarado sua esperança de dirigir um grande grupo sem usinas!
Muitas mudanças importantes interferiram no desmoronamento do fordismo e que são efetivamente institucionais. Melhor dizendo, elas ultrapassam bastante a mera mudança ideológica, a passagem a um estado de espírito que se auto-declara como “retorno a uma visão justa das coisas”, após o que teria sido “a aberração social keynesiana”. Tal ideologia só desculpa o compromisso fordista num ponto, qual seja o da necessidade de união nacional face ao “perigo soviético”, que exigia concessões ao povo.
Em termos institucionais, falemos em primeiro lugar das mudanças nas Bolsas de Valores – antes ocupadas em levantar poupança e assegurar liquidez aos títulos. Em 1980 a capitalização das Bolsas nos Estados Unidos representavam apenas 50% do PIB ; em 2000 ela alcança o triplo disso – 152%. Esse crescimento veloz articula-se a duas novas funções das Bolsas. A primeira delas é ligada às OPAs (oferta pública de compra), técnica inventada por Warburg, banqueiro espoliado por Hitler que tentou se refazer em Londres com ela. Até 1980 essa técnica não tinha mais sido utilizada. Ora, as OPAs tornaram-se a partir da década de 80 um dos instrumentos, senão o principal, do crescimento externo das firmas. A troca de títulos, mesmo os especulativos, se jogava sob percentagens limitadas do valor das firmas. Com as OPAs a importância das flutuações multiplicou-se intensamente e, conseqüentemente, a volatilidade inerente a elas. Mesmo as empresas rentáveis, controlando mal a retenção de seu capital ou vendo seu título baixar pou razões secundárias, tornam-se presas das OPAs. A segunda delas refere-se à invenção mais recente dos stock options para a remuneração dos dirigentes e altos executivos. Elas transformam esses últimos em capitalistas, no primeiro sentido do termo. Conseqüentemente, podemos concluir sem nenhum risco de erro que eles concentrarão seu olhar sobre a evolução dos títulos e que suas decisões estratégicas serão fortemente influenciadas por essa evolução. Galbraith descrevia a capacidade dos “gerentes” para resistir contra as expectativas dos acionistas, em nome do desenvolvimento da empresa a longo prazo; atualmente essa capacidade desapareceu completamente. O cúmulo dessa situação é que os acionistas mais inconstantes e poderosos são os grandes fundos de pensão americanos, aqueles que geram a poupança das classes médias baixas que, dessa maneira e por causa das migalhas relativas que recebem como aposentadoria, tornam-se associadas aos interesses dos capitalistas financeiros.
Em segundo lugar, falemos das mudanças do modelo de contatabilidade. Num ótimo livro intitulado Derivas do capitalismo financeiro (2004), Aglietta e Rebérioux analisam de maneira precisa uma mudança nas convenções contábeis, de importância considerável e que foi obra dos lobbies da finança americana. Expliquemos de forma simples: com a reformulação da ordem depois da crise de 1929, os europeus e os Estados Unidos adotoram normas contáveis parecidas, nas quais o valor de um ativo era calculado por seu preço de aquisição modulado por uma taxa anual de amortecimento e de reavaliações eventuais dos estoques e imóveis. A idéia diretriz dessas normas era a de que o mais importante era avaliar os rendimentos provenientes da atividade produtiva. Ora, em 1973 os contadores americanos mudaram completamente essa maneira de ver o valor dos ativos. O mais importante tornou-se a liquidez potencial em cada instante da firma. O que vale essa liquidez? Duas respostas são possíveis. Na primeira delas, “o justo valor” de todos os ativos; na segunda, “o valor atuário” (dos especialistas nos cálculos dos ativos) que leva em conta as antecipações sobre sucesso e rendimento das transações em curso e ainda não finalizadas. No cálculo pelo “justo valor”, faz-se entrar elementos de apreciação permitindo dizer por exemplo que tal equipamento, tendo em vista o rendimento que dele se tira, vale muito alto e muito mais do que seu custo de aquisição. Já no cálculo pelo “valor atuário”, este pode ser ainda mais inflado porque essas novas normas contábeis autorizam faturas pro-forma, ou seja, das vendas esperadas por produções ainda não efetuadas.
Tudo isso foi assimilado pela International Financial Repporting Standards, sediado em Londres mas que não é nada além da extensão aos ingleses da Fundação Profissional de Direito Privado Americana – que, aliás, presidiu sua criação. Eu não sei como isso se passa na América Latina, mas a Comissão Européia, em 2002, editou uma diretiva tornando obrigatória a adoção do novo sistema pelas sociedades cotadas nas Bolsas. Esse primado dado à liquidez imediata tem um efeito evidente: encorajar a volatilidade dos acionistas, inclusive a dos grandes investidores que possuem muito provisoriamente uma parte do capital de empresas às quais eles não se sentem ligados. Concluir-se-á facilmente que com isso há uma longa distância entre a doutrina liberal segundo a qual a Assembléia Geral dos acionistas assegura a democracia no capitalismo e a realidade do seu funcionamento. O mercado financeiro tornou-se dominante e, tendo em vista o novo sistema contábil, escândalos como os da Enron são cada vez mais prováveis. Eles estão a um ponto da passagem para além dos limites.
Gostaria de falar agora sobre as classes sociais atualmente. Sabe-se que num de seus últimos trabalhos, Aage Sorensen tomou partido por uma análise de classes brilhantemente fundada sobre as diversas formas de extração de renda (KALLEBERG / MORGAN / ROSENFIELD, 2004). Ao contrário da forma analítica do neomarxista Wright (2005), Sorensen afirma que se é verdade que a divisão hierárquica dos empregos explica uma desigualdade de rendas, isso não implica uma interpretação em termos de classes sociais e não dá conta, sozinha, do conflito, ou seja do fosso que se cava novamente e cada vez mais entre staff e line, entre estáveis e precários. Se não se admite que os interesses são profundamente antagônicos e que o conflito estrutura a sociedade, não se progride na análise.
Daí o retorno a Marx, com um adendo importante: a riqueza, o poder do capital econômico, não são a única fonte de exploração. Ele define esta última pela posse de recursos que geram efeitos de renda. Ora, no mundo moderno há três formas principais de renda. A melhor reconhecida é o monopólio – que não é apanágio exclusivo dos empreendedores capitalistas. Por exemplo, os agricultores aproveitam subsídios europeus que contribuem à alta do preço da terra, em benefício dos primeiros vendedores e em detrimento dos compradores. Na urbanização pode-se ver claramente a intensidade do conflito pela apropriação da renda fundiária quando da mudança do uso das terras que, subitamente, tornam-se construíveis. Outro exemplo, a venda da licença por um motorista de taxi lhe assegura uma renda que tem um efeito negativo sobre o bem-estar dos consumidores, já que os preços regulamentados para a corrida na cidade devem levar em conta os custos suportados por aqueles que entram na profissão. Com efeito, os sindicatos ou ordens profissionais que conseguem manter o closed shop, criam assim rendas de monopólio. Neste sentido, Sorensen nota ainda que a questão das externalidades ligadas aos monopólios foi estudada por numerosos economistas depois de Coase (prêmio Nobel em economia de 1991), enquanto que os sociólogos da mobilização coletiva que poderiam ou deveriam contribuir com isso através dos neo-weberianos não a estudaram jamais.
A segunda forma é a renda de composição, cujo melhor exemplo é a competência específica adquirida pela experiência de um assalariado, suscetível de vender caro sua lealdade. O empregador deve normalmente buscar reduzir ou eliminar essa renda, seja seduzindo o empregado por uma carreira promocional (o que faz lembrar a “opressão doce” de que fala Wright), seja pela demissão brutal imposta – trazendo o risco de inconvenientes para a cultura da empresa. Aptidões naturais e capital cultural estão na base da terceira fonte de renda. Já se conhece bem as modalidades de funcionamento dos estabelecimentos de ensino superior que podem selecionar seus estudantes. É perfeitamente claro que a redução das desigualdades de oportunidade escolar, o crescimento dos efetivos de diplomados tem, entre outros efeitos, aquele de aumentar a renda do capital cultural, da distinção social “natural” e assim de contribuir à diminuição da mobilidade ascendente para aqueles que não nasceram do “bom lado”.
Seguindo esse raciocínio sobre essas três formas de renda, uma ação classista consiste em criar uma renda e protegê-la ou, do lado contrário, diminuí-la. Os empregadores tendem a eliminar as rendas de monopólio do mercado de trabalho e a reduzir, nas rendas de composição, a parte que cabe aos assalariados. Dessa forma, explica-se bem a obstinação com que reduzem os efetivos: por em aposentadoria antecipada ou outra fórmula similar, é reduzir a parte do salário ligada à competência adquirida pela antiguidade no cargo. Inversamente, desde que os sindicatos perderam aderentes e poder, eles produzem principalmente uma pequena renda em proveito dos trabalhadores menos competentes. O Estado-providência por sua vez, acorda a certas categorias delimitadas rendas que são pagas em grande parte pela massa dos ativos a rendimento médio. De onde a conclusão de duas faces: a distribuição das rendas cria classes de exploração que podem, ou não, se engajar em ações coletivas.
Em suma, a renda do capital não é a única existente...enquanto o capital não conseguir eliminar as outras rendas. Ora, desde os anos Reagan e Thatcher, os capitalistas americanos e ingleses mostram a via de um retorno em força do acionista e dos esforços consertados para destruir as fontes de renda dos assalariados. As revisões para baixo do Estado-providência vão no mesmo sentido. A transferência a cargo do Estado das rendas dos menos favorizados e daquelas que se criam em benefício de todos os serviços públicos, foi aplainada. A predição final de Sorensen é a de uma sociedade cada vez mais dividida entre o mundo dos dirigentes e o grosso da população, massa cada vez menos diferenciada, tornada incapaz de se estruturar e de defender suas rendas específicas. Por outro lado, no capítulo final de um livro já aqui citado (Wright, 2005), o autor principal organiza uma grade de posições interpretativas das classes sociais contemporâneas, a partir das respostas que vários analistas dão a seis questões: distribuição objetiva das desigualdades; posicionamento subjetivo de si e de seu grupo de pertencimento na estrutura desigual da sociedade; determinantes das desigualdades de oportunidades; divisões sociais e conflitos visíveis; variações históricas da organização social das desigualdades; transformações que seriam necessárias para eliminar a opressão em nossas sociedades.
Lendo a obra, o leitor constatará que, sobre a grade recapitulativa, as posições de Goldthorpe e as de Bourdieu aparecem muito próximas. E ele ficará ainda mais surpreso, talvez, em ver que sobre as três primeiras colunas, o pós-moderno Pakulski e o neo-durkheimiano Grusky têm as mesmas notações. Quanto à distância entre Sorensen e ele mesmo, Wright a situa no peso principal dado pelo primeiro ao conflito de classes enquanto que ele, Wright, confere mais peso aos instrumentos de redução do conflito. Quer dizer que ele é menos pessimista do que Sorensen. E o autor conclui: “Pode-se ser Weberiano para o estudo da mobilidade, bourdiesiano para o estudo dos determinantes classistas do consumo e marxista para a crítica do capitalismo” (WRIGHT, 2005: 210)
É possível que ele tenha razão. Mais pode-se também julgar que as pistas abertas por Sorensen em torno da formação e da destruição das rendas, do papel do Estado, assim como as aproximações que ele sugere para com as análises das organizações e para com os trabalhos de economistas, tocam em processos mais fundamentais dos conflitos de classes contemporâneos – que se revelam na descrição da variedade de estilos de vida. Descrição esta que os romancistas e cineastas conseguem realizar com tanta profundidade e mais leveza, na verdade nitidamente melhor, do que os sociólogos de profissão.
Referências bibliográficas
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BOYER, R. / SAILLARDS, Y. 1995. Du fordisme canonique à une variété de modes de développement. Théorie de la régulation – l’état des savoirs. Paris: Découverte. p. 369-377.
GALBRAITH, J. K. 1969. Le nouvel état industriel. Gallimard: Paris.
KALLEBERG, A. L. / MORGAN, S. L. / ROSENFIELD, R. A. (editors). 2004. Inequality: Structures, Dynamics and Mechanisms – essays in honor of Aage B. Sorensen. London: Elsevier Ltd.
MARX, K. 1999. Le Capital, Livre I, sections I a IV. Paris: Champs / Flamarion.
_________ 1999. Manifeste du Parti Communiste. Paris: GF / Flamarion.
_________ 2001. Les luttes de classes en France / Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Paris: La Petite Vermeillon.
ORLÉAN, A. 2002. Réflexion sur les fondements institutionnels de l’objectivité marchande. Cahiers d’économie politique. N° 44. p. 181-196.
ROBSON, J. 1959. Quelques problèmes de la définition et de la mesure du capital. Revue économie et société. N° 3. Juillet.
WRIGHT, E. (dir.) 2005. Approaches to class analisis. Cambridge: Cambridge University Press.
4 comentários:
Opa, que ótimo! Dado o maior número de posts sobre outros clássicos, estávamos devendo no quesito Marx. Obrigada por compartilhar.
Pois é, Cynthia,
Eu tinha esquecido que tenho acesso ao autor desse texto e que ele poderia ser bem-vindo ao Cazzo. Fui eu que convidei Lautman à UFS, aproveitando que ele estava em férias, conhecendo o Brasil. Fiquei surpresa quando, aceitando, ele disse que gostaria de falar sobre a pertinência de Marx a estudantes da graduação, ja' que, sociologicamente, ele nunca foi marxista. O resultado foi uma conferência que encheu mais do que completamente o maior audito'rio da UFS, com a participação ativa e muito interessada dos estudantes - não apenas dos marxistas. E' sempre bom discutir Marx com distância ideolo'gica, né? Por outro lado, tenho certeza que a motivação espontânea de Lautman para abordar esse cla'ssico não foi meramente acadêmica: ele é eticamente angustiado com a dinâmica contemporânea do capitalismo e com a subestimação das desigualdades e conflitos so'cio-econômicos por parte de muitas das sociologias contemporâneas. Abraço.
Senhor@s,
O texto parece tão "objetivo", isto é, seu recorte é tão "preciso" ao se ater a fatores "econômicos" (taxa de lucro e pauperização do proletariado) que deixa de fora tantas outras questões importantes, que acredito que devería-se ter outras postagens sobre o presente tema. Apenas como "compromisso" de imparcialidade.
De qualquer forma, é uma sujestão.
Sds,
Gabriel.
Gabriel,
Não sou a autora, mas a tradutora e alguém que dialoga muito com o autor desse texto. Por isso, autorizo-me a discordar quando você diz que ele se atém a fatores "econômicos". Uma dimensão importante da análise é a do caráter construtivo do compromisso social que sustentara o Estado do Bem-Estar e quebrou-se com a ascensão ideológica e política do chamado neoliberalismo (para outros, pela reconfiguração do capitalismo sob a hegemonia financeira). Ora, essa dimensão não é abordada como fator "objetivo" ou puramente econômico, mas mediada pela chamada escola francesa da regulação - que integra analiticamente dimensões não objetivas da ordem sócio-econômica. Evidentemente, trata-se de texto fundamentando-se em sociologia econômica, logo, outras postagens inter ou transdiciplinares são sempre pertinentes. Mas não foi falta de imparcialidade o que motivou-nos (ao autor e à tradutora) para propor essa postagem aos editores do Cazzo. Pelo contrário, sua postagem sempre esperou contra-análises. Sendo assim, tomar conhecimento de que ele provocou leitura e questionamento quase dois anos depois de sua publicação, deixa a tradutora satisfeita. Espero que estimule outros a propor textos diferentes sobre a atualidade ou não de Marx. Obrigada pelo comentário.
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