segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Da Vida ao Tempo: Simmel e a construção da subjetividade no mundo moderno



Jonatas Ferreira


Introdução

O fato de Simmel ter se mantido em evidência durante a primeira metade do século XX deve-se em grande medida ao interesse que sua obra despertou na sociologia americana, numa época em que os padrões consagrados de produção científica se opunham ao seu brilhante ‘ensaismo’. O seguinte comentário parece representar o tipo de acolhida que sua obra recebeu durante este período: “Simmel tem a mais refinada inteligência entre todos os seus contemporâneos. Mas, fora disso, é totalmente vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a verdade. Ele é um compilador de pontos de vista com os quais rodeia a verdade, sem pretender ou estar apto a possuí-la.” Não obstante esta aparente idiossincrasia de sua personalidade intelectual ou, como o texto sugere, apesar de sua impotência em “possuir” a verdade, a obra Simmel se firmou como referência sociológica das mais importantes. Sua popularização deve sem dúvida ao interesse que a Escola de Chicago demonstrou em alguns de seus traços distintivos, entre os quais eu destacaria uma certa sensibilidade cosmopolita, um enfoque predominantemente microsociológico e uma interpretação da cultura que privilegia o jogo dinâmico entre estruturas simbólicas identitárias e forças de alteridade. Por este motivo, não parece fortuito que ensaios como ‘O estrangeiro’, ‘O aventureiro’ e ‘Conflito’ sejam até hoje presenças obrigatórias nas coletâneas da obra de Simmel publicadas nos Estados Unidos, como pode atestar o Selected Writings editado em 1971 por Donald Levine.

Embora influente e de importância evidente, tal recepção da obra de Simmel deu-se às custas de uma apreciação mais ampla de aspectos fundamentais de seu universo temático. É curioso que um livro tão importante quanto Lebensanschauung. Vier Metaphysische Kapitel, de 1918, reunindo os últimos ensaios produzidos por Simmel, ainda não tenha sido traduzido para o inglês, francês ou português – à exceção do ensaio ‘Caráter Transcendental da vida’, traduzido na década de 70 para o inglês. A importância teórica destes quatro ensaios, todavia, pode ser estimada se tivermos em mente o meio acadêmico no qual eles emergiram e do qual contrastam de forma tão categórica. Pois se é bem verdade que a tradição neo-kantiana, com a qual Simmel convive intimamente, sonha com um projeto sociológico capaz de se estruturar a partir de uma concepção atemporal de subjetividade, o Lebensanschauung aponta para o reconhecimento do tempo como fator estruturante do ser no mundo e da possibilidade do saber. Se o conhecimento científico não for um “esquecimento” desta verdade ontológica fundamental, de forma alguma ele deverá buscar a “posse” de verdades universais e atemporais como critério e base de validade. Anos mais tarde, Heidegger afirmaria que todo saber autêntico deve abrir-se à indeterminação ontológica do ser-no-mundo – e essa indeterminação surge como conseqüência inevitável do reconhecimento de nossa temporalidade, ou seja, como constatação de nossa finitude, ou como diria Heidegger, de nosso ser-para-a-morte. Se aceitamos, todavia, o tempo como estrutura ontológica fundamental, e consequentemente como determinante da possibilidade do saber, todo o projeto neo-kantiano da escola de Baden (leia-se Windelband, Rickert e o Weber dos ensaios metodológicos), com o qual Simmel tem um contato tão íntimo, entra em colapso. Esta perspectiva induziu Rickert a afirmar de forma infatigável durante sua carreira que aquilo que capacita a verdade científica a ser um valor acima de todos os outros valores é precisamente que a ciência se nega a ser “parte da vida em geral”. Procedendo deste modo, a ciência escaparia à sina dos seres orgânicos que germinam, desenvolvem-se e morrem. O conhecimento para Rickert deve se proclamar transcendental em relação à vida e ao tempo – e nesta afirmação mesma nós constatamos a importância de se pensar a pauta fenomenológica (mais especificamente, seus pressupostos existenciais e temporais) que põe tal projeto sociológico de pé.

[Continuando a publicação de artigos velhos aqui no Cazzo, aí vai mais este. Clique aqui para obter o artigo em PDF tal como foi publicado na RBCS]

4 comentários:

Cynthia disse...

Jonatas, que tal escolher uns marcadores para esse texto? Eu mesma gostaria de encontrá-lo mais tarde, quando tiver um tempinho para ler.

Bj

Le Cazzo disse...

Havia me esquecido... Beijo. Jonatas

Sandro69 disse...

O Lebensanschauung já possui tradução para o inglês: "The View of Life".

Le Cazzo disse...

Oi, Sandro.

Não tinha quando eu escrevi o texto. Na década de 1990/2000 a TCS andou traduzindo muita coisa de Simmel. Mas não conhecia a tradução a que você se refere. Obrigado. Jonatas