sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Produção de Memória Biotecnológica e suas Consequências Culturais



Jonatas Ferreira

Introdução

Um dos traços políticos distintivos do mundo moderno parece ser a transformação da vida natural em espaço de exercício de poder. Ao desnudar o corpo de significados culturais específicos, passando a apreciá-lo segundo critérios de funcionalidade e operacionalidade, a ciência finda por trazer a vida biológica para o centro da cena política industrial. Assim, o corpo “para a sensibilidade moderna parece tão fechado, autárquico e fora do reinado do significado” (Laqueur, 2001, p. 18). Esta linha de argumento é bem conhecida dos leitores de Foucault. Sugiro, todavia, a necessidade de se perceber nos desenvolvimentos recentes da biotecnologia molecular algo qualitativamente diferenciado daquilo que Foucault chamou biopoder. Embora partindo de uma politização da vida biológica, da “vida nua”, as dinâmicas políticas que se abrem ao capitalismo contemporâneo já não se definem primordialmente por meio do privilégio à inteireza do corpo individual ou aos limites entre as espécies. Isso é um dado de partida importante. Para usar o jargão adequado, o biopoder já não pode ser plenamente compreendido como “disciplina” nem como “regulamentação”. A inteireza dos corpos, condição de um controle científico de sua plasticidade, assim como os limites entre as espécies, por meio dos quais a idéia moderna de higiene pode ser pensada, não parecem mais constituir a base inquestionável dos processos políticos.

A própria inteireza biológica do humano passa agora a ser um conceito questionável. Entre os achados do Projeto Genoma Humano temos a estranha constatação de que, ao longo de milênios, incorporamos em nosso patrimônio genético seqüências genéticas inteiras de bactérias. Em um sentido mais estrito: a recombinação genética promovida pela biologia molecular aponta numa direção que, se não contradiz politicamente a noção de inteireza plástica dos corpos, não depende tecnicamente desse artifício para transformar o mundo orgânico. Diferentemente do cenário descrito por Foucault, já não se trata prioritariamente de tornar os corpos mais potentes, ágeis, eficientes, disciplinados, mas de construir novos seres a partir de informações moleculares. Diante das possibilidades que se abrem com a fabricação de órgãos, tecidos a partir de células-tronco, poucos hoje teriam a ilusão de que a produção de corpos dóceis seja a essência tecnológica da biologia molecular.

[Estamos todos um tanto ocupados. Enquanto algo novo não sai, vou fazendo merchandising e disponibilizando no Cazzo esses artigos espalhados pela Internet. Click aqui para baixar o resto do arquivo em PDF.]

6 comentários:

Tâmara disse...

Continuou bem, sua operação merchandising; assim que puder leio o artigo inteiro e quem sabe até encomende uma du'zia.
Mas é uma pena que estejam todos um tanto ocupados: amanhã é dia ci'vico no Brasil, bem que teria sido bom um postezinho sobre eleições e cidadania. Bons votos para todos.

Le Cazzo disse...

Oi, Tâmara. Pois é, amanhã temos de votar direitinho por nós e por você, que infelizmente, creio, não poderá votar esse ano. Certamente as eleições valeriam alguns posts. Para começar, tem que tentar entender o apoio que candidaturas como a de Tiririca está recebendo.

Quanto ao artigo, espero que você goste quando o ler. Abraços, Jonatas

Cynthia disse...

Ei, Tâmara, está de volta?

Postzinho sobre eleição não vai rolar, mas amanhã eu vou levar todos os vírus da minha gripe para votar comigo. Talvez ajude a garantir a vitória da Dilma logo no primeiro turno.

tÄMARA disse...

Oi, Jonatas. Espero que vocês tenham votado direitinho; melhor dizendo, esquerdinho.Porque é assim comigo, faço a diferença entre esquerda e direita. Em 2002, morando na França, eu não fazia a diferença entre Jospin e Chirac; lasquei-me, uma direita "descomplexada" assumiu o poder e até hoje eu sofro, inclusive pessoalmente, as consequências. E é essa recuperação da percepção da diferença o que me faz feliz:no Brasil, os candidatos com chance são todos mais ou menos de esquerda. Aqui na França, o mundo mais ou menos de esquerda anda desestabilizado e o mundo mais ou menos de direita tem quase todos os podereS. Resultado: um mundo sufocante, um governo xeno'fobo, uma sociedade assustadoramente perdida, entre um complexo de decadência e a vontade de sustentar mitos como o do de pai's dos direitos humanos, etc. Ou seja, uma merda.
Mas ninguém pode votar por mim no Brasil. Minhas escolhas de vida têm dessas consequências involunta'rias que eu não chamo de efeitos perversos porque não gosto do horizonte epistemo-metodolo'gico em torno desse conceito.
No mais, seu artigo heidgeriano é muito instigante, apesar da ortografia e da sintaxe tão lusitanas. E' sempre reconfortante saber que nem todos os leitores desse rapaz, complicadi'ssimo, resultam em messiânicos. E espero lhe dar noti'cias sobre esse artigo em torno das biotecnologias. Abraço.

Tâmara disse...

Cynthia,
Estou sim de volta, à dura realidade do outono. Eu so' gostei dessa estação à primeira vez em que a experimentei; felizmente, com o sexo foi o contra'rio. Menina, esse nego'cio dos dias que diminuem uns apo's os outros, da' uma tristeza do cabrunco! Tô aqui, precisando urgentemente trabalhar sério, mas so' sensi'vel à tristeza das flores que acastanham e caem.
Se eu tivesse ai', também tentaria votar em Dilma para evitar que o PSDB retome o poder federal. Não que eu possa confiar muito na herdeira de Lula, mas o PSDB parece-me sempre uma versão renovada da UDN paulista. E os paulistas, assim, enquanto paulistas, são cada vez mais parecidos com Miami. Deus me livre! Um beijão

Le Cazzo disse...

Tâmara,

Nem me fale dessa tradução que fizeram de meu texto. Quando era editor de revista científica, aceitava o português de Portugal. Eles lá são um pouco mais rigorosos com relação a isso. Descobri logo de partida que não há o termo estocagem em Portugal - e eu o empregava muito. Ao reler o texto descobri que alguns poucos lapsos passaram, mas é que eu estava tão impressionado com as mudanças que um ou outro erro passou. Jonatas