sábado, 1 de janeiro de 2011

Ontologia da Pedra


Artur Perrusi

Pensando nesse negócio de imanência e transcendência, fui parar alhures, lá pelos cantos dos argumentos ontológicos. Fui parar no velho Marx. Embora seja desconfiado de que ontologia e “tudo é história” não combinam muito, aceitei provisoriamente que, em Marx, há o esboço de uma ontologia do ser social. Por isso, fui parar em Lukács. Assim, fiz algumas anotações que geraram o drops abaixo. Baseei-me, claro, no húngaro, mas dei uma chegada rápida, nalgum momento do drops, por incrível que pareça, em Searle. Aqui, as duas referências:

- Lukács, György (1979) - Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx - São Paulo: Ciências Humanas.
- Searle, John R. (1995) – La construction de La realité sociale – Paris: Gallimard.

(Por falar em Lukács, saiu a bela tradução, direto do alemão, pela Boitempo, dos “Prolegomenos a uma ontologia do ser social”)

Repito: eu me baseei, embora, na verdade, tenha divagado, parando noutros cantos, o que significa que o drops não foi fiel às referências. Como a forma drops permite ficar flutuando nas fronteiras e nas besteiras, arrisquei-me um pouquinho.

Bora lá.

O fato social é uma objetividade totalmente nova em relação à natureza?

(por favor, são perguntas retóricas, viu?! Não respondam, porque assim desmonta minha argumentação. As perguntas devem permanecer como tais, pois, se respondidas, morrem incineradas pelas respostas. As perguntas são frágeis, embora possam causar tempestades – o que não é o caso, aqui)

Posso responder de forma tradicional e dizer que há uma ruptura entre o social e o natural. Caso seja mesmo assim, fica a questão de se achar o fiat lux disso tudo. O tema da ruptura leva-me a desvarios transcendentais, não nego. Sendo uma ruptura, há uma separação ontológica. Se não há ruptura (uma descontinuidade na continuidade, por exemplo), pode-se pensar numa distinção entre o social e o natural? Qual a natureza dessa diferença? E, ainda, essa distinção é heurística ou real?

Mas, e se for uma emergência, no sentido entomológico de “eclosão” -- o fato social como um fenômeno emergente da natureza? Influenciado pelo verbo “eclodir”, pensei na relação entre a borboleta, o casulo e a larva. Viajei na maionese e imaginei, metaforicamente, o esquema marxista da seguinte forma: a larva seria a natureza, o casulo, o trabalho, e a borboleta, o social. A metáfora causou-me efeitos colaterais, pois meu esôfago não parava de rir, por causa de algumas consequências lógicas do meu raciocínio, tipo assim (utilizei enfim essa expressão da inteligência jovem): os cientistas sociais, no fundo, estudam “borboletas” – essa é a minha frase de final de ano.



Se a eclosão é tão radical, que surge uma objetividade absolutamente nova, voltamos ao velho tema da ruptura. Se a eclosão guarda, no seu movimento, o casulo e a larva, o que significa dizer isso? Talvez, todo o problema esteja no casulo. Podemos raciocinar da mesma maneira em relação a artefatos sociais? Bora ver.

Faço uma experiência mental: um grupo de humanos utiliza determinadas pedras para determinado fim. Não vale que seja apenas um indivíduo, um Robinson Crusoé das pedradas, que faça isso. O uso é uma construção social, aquele blá-blá-blá todo. O uso da pedra é coletivo e sua função é reconhecida por todos. Reconhecer socialmente seu uso exige um aprendizado, uma forma de socialização, que implica algum tipo de cooperação entre os humanos. Coleta-se, armazena-se e, depois, joga-se pedra uns nos outros. São usadas num ritual de apedrejamento, digamos assim. As pedras, agora, têm um valor de uso; têm uma finalidade.

(Deduzo do uso, uma finalidade, e daí uma teleologia. Sei, sei, não são termos intercambiáveis... E ainda produzo uma tensão entre os termos “uso” e “função”)

Fico na dúvida se a teleologia ou a finalidade da pedra é-lhe exterior, dependendo completamente do consenso social em torno de sua objetividade natural. Digo isso, porque, olhando-a direitinho, ela continua a mesma coisa de sempre; nenhuma mudança na forma. E faço essas observações, porque estava me perguntando se, já aqui, o valor de uso da pedra significa um rompimento com a sua objetividade natural.

Seria como se, entre a larva e a borboleta, não existisse o casulo – ou estamos falando de um casulo muito especial, do tipo comunicacional? Mas uma larva que passasse por um casulo comunicacional não se transformaria numa borboleta, penso eu, já que seria, no máximo, uma larva com finalidade de borboleta.

(Procurei entomologistas sérios que me disseram, de forma peremptória: uma larva com finalidade de borboleta não é ainda uma borboleta)

Continuo olhando a pedra, abaixo-me e a examino atentamente. Sua existência não depende de minhas atitudes e dos meus desejos. Possui características intrínsecas à sua “pedridade”, como sua massa e sua composição química. Posso dizer que é ontologicamente objetiva. Mas o uso que lhe foi dado pelo grupo de humanos, esse uso está na pedra? É uma função? Pego-a e não vejo função alguma; talvez, seja problema meu, já que, não sendo antropólogo, não compreendo bem as ações e projeções desse grupo de humanos; enfim, tenho dificuldade em entender a alteridade. Balanço a pedra, e nada de cair qualquer função no chão. Deduzo que seu uso não lhe é intrínseco e sim às suas interações com os humanos. Ela é um “actante”, já fazendo parte, mediante seu valor de uso, de relações sociais. Só que sua função é relativa aos humanos e não em relação à sua “pedridade” – ontologicamente, a função é subjetiva. Porém, há um consenso sobre o uso da pedra entre esses humanos. Todos a usam para a mesma e determinada finalidade. Até uma criancinha de cinco anos sabe pra que serve. Posso definir, objetivamente, que seu uso, nessa comunidade de malucos, é o apedrejamento. O reconhecimento social em torno do valor de uso da pedra possui uma força simbólica que molda a significação da pedra, mas não muda sua ontologia.

A função seria epistemicamente objetiva e ontologicamente subjetiva (Searle, 1995).

(nesse momento, fico embananado com os termos “uso” e “função”. A função do coração, por exemplo; não há “uso”, aqui. Seguindo o raciocínio acima, a função do coração é epistemicamente objetiva, dado pelo consenso socialmente construído da comunidade científica, que projeta, nesse orgão, a metáfora da “bomba”. Essa metáfora foi, inclusive, importante na descoberta da circulação do sangue)

De todo modo, a função da pedra depende das relações sociais e do consenso entre os humanos – não depende, necessariamente, de uma específica relação social, como o trabalho, por exemplo. Pode depender, é claro, mas aqui a pedra não foi trabalhada. Seu propósito não depende dessa prática social. O “pôr teleológico”, discordando de Marx (1969) e de Lukács (1979), não seria monopólio do trabalho. Projetar função num objeto material, ontologicamente natural, é uma atividade social que lhe “põe” finalidade, mas não transforma sua ontologia. Lukács discorda dessa minha argumentação, pois diz que, “mesmo quando o objeto da natureza parece permanecer imediatamente natural, a sua função de valor de uso é já algo qualitativamente novo em relação à natureza” (1979: 19). Como sua visão de teleologia esgota-se no trabalho, visto como única forma de práxis, compreendo sua posição.

(Aliás, irei mais longe, ainda: a atividade social teleológica não é patrimônio dos humanos. Quando um grupo de chimpanzés utiliza uma vareta para caçar cupins, essa vareta tem um uso ou função. Se o uso é coletivo, resultado de um aprendizado social que é passado de geração a geração, estamos diante de uma atividade que “põe” finalidade num objeto natural.

Entusiasmado com esse pensamento, imagino uma continuidade entre o social e o natural: o social é natural, tornando-se humanizado com o trabalho, como afirmou Marx. Mesmo discordando desse papel do trabalho como demiurgo da humanização, penso que o social humanizado possui uma diferença; mas, essa diferença produz uma nova ontologia? Em todo caso, ao pensar o social como natural, posso aceitar e compreender por que os primatologistas trabalham também com um conceito de “sociedade” – até mesmo, na verdade, os estudiosos dos insetos sociais.)

O trabalho incorpora, necessariamente, essa atividade social teleológica no seu próprio movimento de transformação. Trabalho é interação; sendo assim, é interação finalizada, isto é, põe teleologia. A pedra trabalhada, transformando-se num objeto de pedra, logo, num artefato, possui função. Como vimos acima, todavia, mesmo sendo intrínseca, a atividade teleológica não se esgota no trabalho.

(Abro outro parêntese, pois a noção de trabalho precisa ser esclarecida. Considero o trabalho uma atividade que transforma objetos -- principalmente, materiais. No sentido marxista, é uma ação material teleológica, uma práxis, que transforma um objeto num outro, objetivamente independente dos agentes da ação ou da atividade propriamente dita. O novo objeto é um artefato, uma nova objetividade. O ponto crucial, aqui, é a transformação, isto é, a práxis é uma ação objetivamente transformadora. Se deixo pra lá a transformação, alargo a noção de trabalho. A caça e a coleta seriam trabalho, por exemplo, e as pedras desse drops, pelo fato mesmo de terem sido coletadas por um grupo de humanos, seriam produtos do trabalho. Porém, com isso, nesse alargamento conceitual, a caça de animais societários teria de ser, também, considerada trabalho. Pelo que entendi, essa é a posição do maior marxista da terra dos altos coqueiros, aquele que ensinou a dialética a Cynthia -- depois, a dita-cuja descambou, por meio de uma traição epistemológica, para o hermetismo do realismo crítico.

No fundo, na argumentação sobre a função da pedra, defendi que a ação teleológica pode ser ou não uma práxis, e que não se esgota numa ação material – só que a projeção da função na pedra não seria ainda uma práxis. Ofereço um exemplo de uma ação transformadora não material: a ação moral. Seria uma atividade criadora e reprodutora, mas produtora e reprodutora de símbolos, de significados e de interação social. Certo, ela não cria nem reproduz toda forma de interação social, mas sim uma específica, embora bem abrangente no mundo social, relacionada à comunicação - seria o que Habermas (1987) denomina de ação comunicativa, um tipo de ação que produz mediações criativas a partir das interações sociais)

No entanto, quero ainda examinar a pedra antes de ser trabalhada. Quero analisá-la, fazendo parte de uma outra rede de relações sociais. Assim, faço uma experiência mental: e se as pedras são levadas para um sistema específico de relações sociais, chamado de “mercado”, para serem trocadas por outros materiais e objetos? Além do valor de uso, a pedra tem, agora, um valor de troca. Para tê-lo, não precisa ser trabalhada – no sentido pelo qual utilizo a noção de trabalho, é claro. As pedras estão espalhadas pelo chão. São apenas colhidas e usadas, simplesmente.

De todo modo, seguindo Marx, o valor de troca da pedra, visto isoladamente de sua objetividade natural, possui uma “objetividade espectral” (1969: 43). Da minha parte, essa objetividade continua espectral mesmo se não a tomarmos de forma isolada. Na verdade, penso que o valor de troca da pedra é ontologicamente subjetivo, mas epistemicamente objetivo. E, se digo isso e levo adiante meu raciocínio, direi que todo valor de troca, mesmo de um artefato, que possui uma objetividade social, não pode ser ontologicamente objetivo. Posso entender que o produto do trabalho tenha uma objetividade diferente da objetividade natural; mas, não entendo como o valor desse artefato possa ser ontologicamente objetivo. No fundo, entendo que a atividade do trabalho tenha valor (fica a questão: ela gera valor?), mas isso não quer dizer que esse valor seja intrínseco ao produto do trabalho, pois depende, nessa minha visão, de um consenso social objetivo, isto é, de uma objetividade epistêmica (com isso, afasto-me da visão econômica marxista).

(Iria até mais longe em relação à “objetividade espectral”. Muitas vezes, assustado com a realidade social, penso que ela seja espectral. Searle (1995: 17) fala da estrutura invisível da realidade social. Essa estrutura invisível “esconderia” sua ontologia complexa. Pessoalmente, acho toda entidade invísível um fantasma)

E a pedra trabalhada? E se o grupo de humanos trabalha a pedra transformando sua forma, sua função, etc e tal? A pedra torna-se um objeto de pedra – não, não apenas isso. A pedra, por meio do seu valor de uso, já era um objeto de pedra; agora, seria mais do que um objeto, um artefato. A ação do trabalho (o casulo de Marx) possui um poder que muda a significação e a objetividade da pedra, agora, artefato e objetividade social. Aqui, seguindo Lukács, defendo que estamos diante de uma nova objetividade, derivada da natureza, é certo, mas nova, quand-même.

Fico confuso, novamente, pois fico na dúvida se posso considerar essa nova objetividade uma nova ontologia. Digamos que sim. A existência do artefato independe de seus produtores, embora seja dependente de sua ontologia natural. Uma ontologia secundária, dependente de uma primária? Lukács diz que existem categorias sociais puras, e o “conjunto delas constitui a especificidade do ser social” (1979: 19). Mas o ser social, como tal, “não apenas se desenvolve no processo concreto-material de sua gênese a partir do ser da natureza, mas também se reproduz constantemente nesse quadro e não pode jamais se separar de modo completo – precisamente em sentido ontológico – dessa base” (19).

A transformação ontológica vai da ontologia natural, passa por formas ontológicas mistas (Lukács refere-se a animais domésticos, por exemplo), chegando a formas ontológicas sociais puras. Do ponto vista ontológico, não há, no marxismo, pelo menos o lukacsiano, uma separação entre cultura e natureza, e sim um desdobramento de uma base natural ou de uma ontologia primária. Entendo esse desdobramento como uma emergência ou uma eclosão, pois passa por diversas mediações ou "casulos". Em todo caso, para Lukács e, provavelmente, para Marx, a ontologia do ser social pressupõe uma ontologia materialista da natureza.

Posto isso, pergunto: o valor de um artefato seria ontologicamente objetivo? Seria intrínseco ao artefato? Tentando evitar contradições, diria que o valor é intrínseco à atividade ou à ação que produziu o artefato. Esse valor é o sentido da ação e depende objetivamente de um consenso social objetivo em torno da atividade e do seu resultado. Seguindo o fio da meada, o artefato pode ser analisado a partir de uma ontologia do ser social, mas não seu valor. Sim, seria um limite sério à análise ontológica.

Mas, se alargássemos a noção de artefato, a ponto de não defini-lo, necessariamente, pela sua materialidade? Uma prática social poderia, nesse caso, ser considerada um artefato. Uma ação moral, afinal de contas, produz o quê? Por exemplo: a ação moral atua numa determinada interação social produzindo, no movimento mesmo de sua atividade, outra interação social; contudo, essa nova interação social não seria independente dos agentes e da própria ação, pois teria um fim em si mesma. A ação moral é práxis porque transforma, mas não é uma ação material, visando não um objeto e sim uma relação ou uma prática. Como uma ontologia materialista, fundada no modelo de práxis do trabalho, daria conta de relações sociais que prescindem de qualquer materialidade intrínseca? Digo “intrínseca”, já que, geralmente, tais interações sociais podem ter um pano de fundo conectado a alguma realidade social material.

(quando um padre, numa cerimônia, faz a enunciação de um casamento, seu enunciado muda uma condição social -- de solteiras, as pessoas tornam-se casadas. Há consequências, aqui, simbólicas e materiais. Não nego que tenha um contexto material em torno do casamento, mas a passagem da condição social é desencadeada por um ato linguístico. Os rituais são práticas sociais, mas não são necessariamente uma ação material)

Esse realismo de tais artefatos sociais poderia ser explicado por uma análise ontológica? Poderia, mas seria capenga, não dando conta de sua objetividade epistêmica e de sua subjetividade ontológica. Uma cadeira de pedra é independente, como objeto, dos humanos, mas não sua função ou seu significado – sem os humanos, aliás, perde seu sentido. E o sentido só pode existir numa rede de relações sociais, isto é, numa comunidade de humanos. O realismo dos produtos morais, dos linguísticos e dos simbólicos não seria ontológico e sim objetivo, mas completamente dependente de uma comunidade de humanos. O modelo da práxis, aqui, não seria fundado no trabalho, mas sim na linguagem. Como tal, eis minha hipótese de base, seria uma práxis incapaz de fundar uma ontologia.

Nesse exato instante, tenho mais dez perguntas...

Boink!

Estão jogando pedra! Caramba! Tá certo, tá certo, eu paro por aqui... Maldita ontologia das pedras.

______________

- Habermas, Jürgen (1987) - Teoria de la acción comunicativa; racionalidad de la acción y racionalización social - Tomo I, Madrid: Taurus.
- Lukács, György (1979) - Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx - São Paulo: Ciências Humanas.
- Marx, Karl (1969) - Le Capital - Paris: Garnier-Flammarion.
- Searle, John R. (1995) – La construction de La realité sociale – Paris: Gallimard.

7 comentários:

vinicius lobo disse...

Freqüentava esporadicamente o blog, mas nunca tinha feito comentários. Como ando mais assíduo nos últimos tempos, e o tema deste post muito me interessa, resolvi trazer uma questão...

Fiquei intrigado quando você falou que a passagem da condição social (solteira para casada) é desencadeada por um ato lingüístico. Fico me perguntando se há significado lingüístico não subsidiado por circunstâncias, e no caso do significado matrimonial em questão, se a linguagem é capaz de levar a cabo a passagem de condição social sem que duas pessoas se conheçam, se interessem, se desejem, unifiquem experiências e etc. Nesse trecho do texto me pareceu que acreditas que o desencadeamento possibilitado pelo ato lingüístico funciona como uma mera etiquetação, tal qual na concepção agostiniana de linguagem criticada por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas. Acho uma idéia central de Wittgenstein nas investigações, e que marca sua ruptura com o Tratatus, é sua negativa em pensar a função significante da palavra como uma mera etiquetação, separada da inferência que na práxis define seu uso num determinado contexto. Bem, queria saber se podes discorrer um pouco mais sobre como funciona esta função desencadeante do ato lingüístico. É a linguagem que funda a práxis ou a práxis que funda a linguagem? A partir dessa questão, como é que fica o reducionismo ontológico em Marx ou Lukacs?

Cynthia disse...

Um artigo muito bom do João Leonardo Medeiros, da UFF, sobre a ontologia de Lukács:

http://www.csog.group.cam.ac.uk/iacr/papers/Medeiros1.pdf

Artur disse...

Grande Vinícius, aí vai uma resposta muito longa para um comentário de blog. Sabe como é que é, né?!

Fiquei na dúvida em colocar aquele exemplo. Arrisquei-me... Quem pariu Matheus, que balance; quem não pariu, que descanse.

De todo modo, meu objetivo não foi passar a concepção de que “o ato lingüístico funciona como uma mera etiquetação”. Caso tenha passado, errei feio na explicitação do meu raciocínio, já que o objetivo era, justamente, o contrário.

Tentarei me explicar: na hora, pensei em Austin, na sua “teoria dos atos de fala”. Pensei no caráter socialmente produtivo da linguagem; naquela divisão austiniana entre conteúdo locucionário (aquilo que se diz) e efeito ilocucionário (aquilo que se faz ao dizer). E, ao pensar em Austin, aceito que tenho como pano de fundo o segundo Wittgenstein, principalmente numa questão central: a relação entre o significado e o uso da linguagem (ou, como diz Searle, entre o significado de uma expressão linguística e as intenções do falante). Acho até que Austin foi mais longe do que Wittgenstein, cujo respeito pela conclusão do Tractatus é patente: “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”.

Austin teoriza, de fato, sobre os diferentes significados práticos dos enunciados linguísticos (refiro-me aquela famosa distinção analítica – e não separação real, vale dizer -- entre as formas constatativas e performativas dos proferimentos linguísticos – o cabra, depois deu uma revisada geral). Pelo que entendo, a forma performativa é uma realidade em ato.

Creio que o pano de fundo da discussão seja o velho problema das relações entre representação e ação, só que do ponto de vista de uma análise da linguagem. Por isso, pensei em Austin, já que acho que o mesmo não se preocupa com o que se representa, e sim com o que se realiza ao se representar – com o que um ato de fala diz, faz e provoca. Quando um coitado, completamente sem noção, diz “aceito fulana como esposa”, o lascado está dizendo algo, fazendo algo e provocando uma futura tragédia na sua vida.

Mas Austin parou por aí e acho que Habermas foi bem mais adiante. A partir da linguagem inferiu uma pragmática geral das interações sociais e humanas e uma teoria da ação social não-fundacionista. Enfim, a comunicação social, por meio de uma análise pragmática da linguagem, pode ser vista como uma ação ou como uma prática.

Ela é uma práxis? Digo que sim, pois ela transforma, embora o “objeto” seja diferente de uma práxis baseada no trabalho. A ação comunicativa transforma menos objetos do que interações sociais. Assim, a noção de práxis é alargada, com consequências éticas e políticas (não entrarei nessa discussão, apenas faço a observação).

Só acho que um modelo de práxis baseado na linguagem não funda uma ontologia; porém, admito que um modelo de práxis, baseado no trabalho, permite, em tese, uma ontologia materialista do ser social. É uma ontologia limitada, já que fundada no trabalho. E o trabalho não captura toda a nossa diferença.

Alargar-se-ia, nesse caso, a ontologia do ser social por meio de uma pragmática geral? Sei não. Como fundar uma ontologia por meio de uma pragmática geral e de uma teoria da ação social não-fundacionista? Para mim, não tem como (Apel defende que é possível uma pragmática transcendental; talvez, aqui, possa-se pensar, novamente, em argumentos ontológicos – mas li apenas, não estudei o autor; por isso, não tenho uma opinião sobre o assunto; por enquanto, fico com Habermas).

No fundo, acho que a análise ontológica precisa do fundacionismo como alicerce; ou ainda: precisa da relação sujeito/objeto (o “objeto” permitiria a “fundação”); a relação sujeito/sujeito, no sentido pragmático, prescindiria de qualquer fundação.

Outro “no fundo”: não consigo conceber as histórias das humanidades como fundadas no trabalho. Por isso, minha desconfiança de que ontologia e história não se bicam. A história pode ter um momentum ontológico? Sim, mas sem ser subsumida pela ontotologia.

Cynthia disse...

"Só acho que um modelo de práxis baseado na linguagem não funda uma ontologia"... Oxente! E Laclau???

Sabe onde está o nó, arture? Numa confusão entre o ontológico (o real) e o material. Na minha opinião, se os pós-estruturalistas tendem a negar (ou pelo menos a ter uma certa dificuldade com) a dimensão material, um realismo de cunho exclusivamente materialista pode negar a realidade das idéias e, portanto, sua capacidade de constituir certas dimensões da realidade social (como nos atos de fala).

É por isso que eu acho que uma ontologia que se preze deve ser estratificada. Uma vez te fiz uma pergunta por aqui que ficou sem resposta: em que sentido uma crença ou um delírio, ou uma alucinação, podem ser considerados "reais"? Qual o critério de realidade que se deve adotar? Incrivelmente, esse problema já foi tratado por Durkheim nas Formas Elementares da Vida Religiosa...

vinicius lobo disse...

Arthur, a questão que coloquei parte de uma insatisfação com relação a uma possível dicotomia na práxis, que acredito ser assumida por Habermas, ainda que analiticamente. Não acredito que a práxis opere em momento algum separada da linguagem, assim como esta última jamais deixa de se operacionalizar dentro de uma situação histórica determinado. Trouxe Wittgenstein no último post porque acho que ele vai contra essa dicotomia; talvez outra perspectiva que vá pelo mesmo caminho seja o holismo semântico de Quine. Tenho uma leitura muito superficial de Hegel e dos textos da juventude de Marx, mas acredito que talvez a dialética possa dar conta dessa promiscuidade presente na relação entre linguagem e práxis. Nesse sentido, não sei se um modelo de práxis baseado no trabalho seria necessariamente materialista, assim como um modelo da práxis baseado na comunicação não necessariamente é idealista. Acho que a bronca é com essa dicotomia (materialismo-idealismo) que por mais que seja atacada, vai se arrastando... sem dúvida seu post me ajudou a catar umas pedras pra tacar nessa danada.

Uma coisa que me pergunto é se a centralidade do trabalho na obra de Marx é realmente destruidora da herança dialética presente na sua teoria, nesse sentido, talvez em certo sentido concordando com Cynthia, acho que mais complica que explica a equivalência entre trabalho e materialismo. O materialismo dilético necessariamente implica um reducionismo ontológico ao trabalho?

Artur disse...

Delirou na minha frente, interno na hora. No asilo, o delírio encontra a sua vã ontologia.

Só existe uma realidade aqui, o poder do psiquiatra.

E Vinicius, se vc continuar com esse papo de dicotomia, dualidade e quejandos, eu te interno, também.

Cynthia disse...

Tá vendo, Vinícius? Quando as coisas se complicam, Artur sempre apela para seus poderes mutantes de psiquiatra. Joga um livro de Foucault na cabeça dele que ele se endireita.