terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Técnica e Liberdade


Jonatas Ferreira

Introdução

Ainda na década de 60, Jürgen Habermas tomou para si a tarefa de repensar o tema central daquilo que se convencionou chamar ‘processo de racionalização do ocidente’, a saber, a relação entre ciência e técnica na modernidade. Seu intuito era tanto purgar a teoria crítica de um certo viés weberiano e pessimista quanto firmar sua própria posição dentro da Escola de Frankfurt. Sob alguns aspectos, o investimento habermasiano desta época, materializado em textos como ‘Técnica e Ciência como Ideologia’, ‘Progresso Técnico e Mundo Vivido Social’, ‘Política Cientificada e Opinião Pública’, parece datado. Ele parece pressupor o welfare state. A reflexão que esse esforço promove ainda se aquece junto às chamas de 68, ainda procura recolocar o problema da liberdade num mundo que se tornara mais afluente sem que uma correspondente liberação política tivesse se verificado. Apesar disto, no que pese a falência do welfare state, a inocuidade de criticar a práxis política marxista a partir da efervescência e dos sonhos do movimento estudantil de então (1973:70-74), apesar dos limites daquela afluência, o esforço habermasiano continua mostrando vitalidade.

Qualquer que seja nossa apreciação de sua obra, a questão específica a partir da qual ela pretende abordar o problema que nos lega a tradição crítica e, num sentido amplo, a própria modernidade, há que ser considerada seriamente. Esta questão poderia ser formulada do seguinte modo: dado o entrelaçamento profundo entre ciência e técnica que, a partir do século dezenove, passa a caracterizar e determinar a história do ocidente, deveríamos aceitar como dado que o espaço reflexivo, e a perspectiva de libertação pela reflexão, passa a ser inextricável do universo da técnica? Mais que isso, aceitaríamos, como a teoria crítica chegou a formular através de Adorno e Horkheimer, que existe aqui um problema metafísico mais profundo, que a própria razão esteve desde o princípio, desde que o astuto Ulisses atou-se ao mastro de seu barco e tapou os ouvidos dos seus companheiros com cera, comprometida com sua dimensão instrumental? A formulação destas questões continua sendo orientadora, quer aceitemos ou não a perspectiva segundo a qual o “homo loquax” resgataria o “homo faber”, ou seja, que a separação entre as esferas da comunicação e da técnica deva ser sustentada como garantia da liberdade humana.

Porém, que tradição é essa sobre a qual Habermas pretende nos oferecer sua própria contribuição? Mais importante: como essa tradição nos ajuda a formular e superar o antagonismo que parece existir entre técnica e liberdade? Tomemos o depoimento de alguns de seus maiores expoentes. Tanto para Horkheimer, quanto para Adorno ou Marcuse, a relação entre ciência e técnica constitui um espaço de investimento intelectual sobre o qual não apenas a modernidade deve ser apreciada mas o próprio projeto crítico em seu esforço libertador e esclarecedor. Em 1944, Horkheimer e Adorno posicionavam-se a este respeito do seguinte modo: “O esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo da calamidade triunfal.” (Adorno/Horkheimer, 1985:19) A associação entre ciência e técnica, que Max Weber já havia pressentido como potencialmente apriosionadora, não resultou no mundo eticamente mais perfeito com o qual sonhara o Iluminismo; sua racionalidade sequer representou o controle e a integração social que o positivismo tanto desejara. Seu resultado foi antes uma brutal instrumentalização do mundo da vida.

[Enquanto estudo Hegel, vai aí outro artigo publicado há alguns anos na revista Lua Nova. Para baixar o arquivo, click aqui.]

4 comentários:

Tâmara disse...

Jonatas,
Que pena que eu não conheci esse seu artigo antes. Porque o que você põe em questão sobre Habermas, embora seja centralizado sobre a tensão técnica/liberdade, parece em convergência de sentido para com as cri'ticas a Habermas sobre sua pro'pria teoria de sociedade - cri'ticas que foram muito importantes para mim, quando estava fazendo uma tese a partir (também) de sua teoria cri'tica: e o que a gente faz, analiticamente, com os conflitos e as desigualdades de poder, colocados em relação de exterioridade à ação comunicativa? Tive que me aproximar de sociologias mais conformadas à realidade empi'rica. Como nunca é tarde, valeu ler seu texto agora.

Le Cazzo disse...

Oi, Tâmara.

Esse é um texto antigo. Não o reli antes de postar, embora lembre do argumento central. Foi importante para que eu entendesse que a teoria crítica, por sua visão unidimensional da técnica, não era espaço para o meu trabalho. Bom saber que você acha que valeu a leitura. Fico contente. Abraço, Jonatas

Diego Viana disse...

Olá Jonatas,
Eu gostaria de sugerir uma referência, na minha opinião fundamental, sobre técnica na filosofia do século XX. Gilbert Simondon. Vi que tem Bernard Stiegler na bibliografia, mas ele é, em grande medida, um "discípulo" de Simondon. Mais do que seu "Do modo de existência dos objetos técnicos", recomendo sua tese principal, "L'individuation à la lumière des notions de forme et d'information", que articula muito mais fundamentalmente a questão da técnica.
Abs

Le Cazzo disse...

Oi, Diego.

Muito obrigado pela sugestão. Faz tempo que li Simondon, mas não o texto que você recomenda. Assim que puder, lerei-o. Muito gentil. Abraço, Jonatas