segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Ontologia e Gênero


Agora é guerra. Artur, em uma mensagem de email privada, fez um ataque indireto a Tony Lawson, meu muso inspirador. Eu deveria responder com um ataque a Scarlett, mas me recuso a baixar o nível. Em vez disso, posto aqui um artigo, anteriormente publicado, sobre a importância de se tirar a ontologia do armário. Às armas, pois!

Cynthia


Muito da da relevância das ciências sociais tem sido avaliada em função das conseqüências políticas práticas de suas teorias ou, colocando a questão de outra forma, de sua capacidade de gerar mudanças na sociedade que possam ser consideradas benéficas para todos ou para uma parte expressiva de seus membros (Delanty, 1997). De forma geral, entretanto, a relação entre o pensamento social e sua aplicação prática tem sido mais explícita entre aquelas teorias nascidas no seio de determinados movimentos sociais, como é o caso do feminismo. Se o movimento feminista tem contribuído para a produção das ciências sociais ao chamar a atenção para temas anteriormente "invisíveis" à comunidade científica e ao sugerir que a ciência tem sido sistematicamente distorcida por causa da "cegueira de gênero", o inverso também é verdadeiro: inspiradas pela dimensão emancipatória do movimento, as teóricas feministas enfatizam as conseqüências políticas de sua produção intelectual, especialmente no que diz respeito a questões para o debate sobre o estabelecimento de políticas emancipatórias.

O compromisso com a idéia de emancipação de forma alguma está limitado à produção feminista, mas pode ser estendido a toda tradição crítica, entendida no sentido amplo de qualquer reflexão teórica que tenha uma visão crítica da sociedade e das ciências, ou que tenta explicar a emergência de seus objetos de conhecimento (Macey, 2000). Em grande medida, esta tradição baseia-se em preceitos clássicos do Iluminismo, em especial a idéia de emancipação via esclarecimento e uma concepção de sujeito capaz não só de conhecer o mundo, mas também de transformá-lo. Parte do problema é que essas idéias estão sob suspeita, o que tem gerado um ceticismo crescente em relação à possibilidade de emancipação dos sujeitos via conhecimento. Isto não apenas tem colocado um fardo excessivamente pesado sobre os ombros de cientistas sociais, cujas atividades não são especialmente justificáveis, mas também sobre os movimentos sociais, que têm perdido parte da fundamentação de suas políticas (Hamlin, 2002).

É sabido que desde os anos de 1970 a teoria feminista tem alertado para os perigos da supergeneralização ao sugerir que os valores, as experiências, os objetivos e as interpretações de grupos dominantes são apenas isso e que não há nada de intrinsecamente natural ou necessário acerca deles (Lawson, 1999). A filosofia e a epistemologia feminista, em particular, dedicam-se sobretudo à forma pela qual o gênero influencia nossas concepções de conhecimento, de sujeito cognoscente, assim como as diversas práticas de justificação dessas concepções. Sem adentrar nas especificidades das diversas tradições da epistemologia feminista, é possível afirmar que, de forma geral, todas procuram identificar as formas por meio das quais as concepções e as práticas de atribuição, aquisição e justificação do conhecimento têm sistematicamente colocado em desvantagem as mulheres e outros grupos subordinados, buscando ainda modificar essas concepções e práticas a fim de que elas possam servir aos interesses desses grupos (sua dimensão emancipatória) (Anderson, 2004).

Para diversas autoras (Flax, 1990; Harding, 1990; Fraser, 1995 e, de uma perspectiva bastante crítica, Benhabib, 1990, 1995), esse tipo de alerta para os perigos da supergeneralização tem criado uma "afinidade eletiva" entre a epistemologia feminista e diversas vertentes de epistemologia pós-moderna, embora a definição deste último termo não seja isenta de ambigüidades ou universalmente aceita (cf. Butler, 1995). A afinidade em questão refere-se a alguns pressupostos compartilhados pelo feminismo e por uma epistemologia pós-moderna que podem ser, para os nossos propósitos, resumidos nos seguintes pontos: a idéia de que nenhuma pessoa ou grupo pode sustentar uma perspectiva neutra ou "descolada" de pontos de vistas específicos; de que toda compreensão ou explicação alcançada será sempre parcial (assim como falível e transitória); de que as identidades não constituem totalidades fechadas e homogêneas. Isto significa, por outro lado, que a prática de universalizar a priori, ou de meramente pressupor ou afirmar a relevância ou validade geral de uma posição é, na melhor das hipóteses, um equívoco metodológico que tem conseqüências políticas significativas (Lawson, 1999).

Apesar disso, essas considerações têm, por vezes, ido mais longe do que muitos de seus proponentes e defensores intentaram. Ao se oporem a diversas práticas de universalização a priori, muitos teóricos acabaram por se opor a toda e qualquer prática generalizante. E uma vez que a base para se considerar uma abordagem dominante como universalmente legítima foi (corretamente) colocada em xeque, com freqüência se tem defendido uma posição relativista extrema, segundo a qual toda abordagem é tão válida, ou tão parcial, quanto qualquer outra (cf. Rorty, 1999). Essa forma de relativismo é especialmente problemática para uma teoria "crítica" que tem por principais objetivos a questão do esclarecimento e da emancipação. Além disso, algumas categorias e conceitos centrais à teoria feminista, como gênero, mulher, feminino, patriarcado etc., têm sido colocados sob suspeição por se basearem em um sistema classificatório binário, dicotômico, que não apenas privilegia um dos pólos do binarismo, mas exclui toda e qualquer alusão a termos alternativos. Assim, por exemplo, o pensamento binário impediu durante muito tempo que se concebesse a existência de sociedades com uma relativa igualdade de gênero dado que, segundo os termos do binarismo, a única alternativa possível ao patriarcado seria o matriarcado (Saffioti, 2005). Como conseqüência, a própria utilidade do termo "patriarcado" foi questionada, em vez de simplesmente se questionar seu status de universalidade e tentar delimitar suas fronteiras históricas e culturais.

Ainda mais problemática para uma teoria feminista emancipatória tem sido a suspeição acerca de sujeitos femininos, ou o próprio conceito de "mulheres". Mas para que a teoria feminista possa ser percebida como uma teoria para o empoderamento de mulheres, ela necessariamente deve fazer alusão às formas como elas têm sido sistematicamente dominadas, assim como às suas capacidades, habilidades e poderes causais que, embora historicamente constituídos, são parte integrante de sujeitos reais, e não meramente nominais (Hartsock, 1990; New, 1998). Sem uma concepção relativamente geral de um tipo de sujeito marcado por uma identidade sexual e de gênero, não importa o quão variáveis e historicamente contingentes, a teoria feminista cai por terra (o mesmo pode ser dito a respeito da epistemologia: sem um sujeito do conhecimento, não há epistemologia possível).

Por fim, a chamada "morte da metafísica" tem gerado um deslocamento importante das questões ontológicas em favor de questões epistemológicas sob o argumento de que toda e qualquer forma de ontologia científica (entendida aqui no sentido de que alguns objetos de conhecimento existem, em sua maioria, independentemente de, ou pelo menos anteriormente a, qualquer investigação científica) deve ser descartada. É este deslocamento, concebido por autores como Sandra Harding (1999) como perfeitamente compreensíveis e justificáveis na teoria feminista contemporânea, que será questionado a seguir. Em outros termos, trata-se de investigar a diferença que uma reflexão ontologicamente orientada pode fazer em relação às nossas proposições epistemológicas e teóricas, com ênfase especial em um modelo explicativo que pode ser derivado delas.

Diferentemente da perspectiva ontológica lukacsiana defendida por Heleieth Saffioti (2005), tentarei demonstrar as vantagens de uma perspectiva ontológica conhecida como realismo crítico, um tipo de realismo científico, não-representativo (ou não representacionista), que concebe a realidade como fundamentalmente (1) aberta e (2) estruturada ou estratificada, isto é, constituída de poderes causais e mecanismos subjacentes aos eventos e fenômenos observáveis. A este realismo ontológico, une-se um relativismo epistemológico (mas não judicativo) que afirma que conhecemos o mundo sob descrições irredutivelmente históricas e sociais (o que se aplica mesmo às suas posições ontológicas que são, por este motivo, sempre abertas e sujeitas a reformulações). Aplicado aos fenômenos sociais, o realismo crítico reconhece, ainda, o caráter "ação-dependente" de todo fenômeno social, isto é, sua existência depende (ao menos em parte) da agência humana intencional (Bhaskar, 1996; Lawson, 1999; Hamlin, 2000).

Inicialmente, desenvolverei essas questões tentando demonstrar como elas podem contribuir para a reflexão acerca de um dos problemas mais espinhosos do feminismo contemporâneo, que toca diretamente a questão da existência das mulheres como agentes sociais ou sujeitos de conhecimento e de mudança: a dissolução da distinção entre sexo e gênero com base na redução da ontologia à epistemologia, ou, ainda, na dissolução dos nossos objetos de conhecimento em nosso conhecimento acerca dos objetos. Por fim, apresentarei um método de formação de hipóteses explanatórias desenvolvido pelo economista britânico Tony Lawson, compatível com o realismo crítico e que possibilita recuperar a dimensão emancipatória da teoria feminista.

Para ler o artigo todo, clique aqui.

3 comentários:

Artur disse...

Já tinha lido o teu artigo. Uma questão que achei interessante e vale a pena se debruçar é a relação entre o "espaço de contraste" e o "conhecimento gerado por grupos marginalizados".

Lembrou-me, mutatis mutandis, a inferência marxista de que a posição de classe do proletariado permitia-lhe questionar a realidade de sua exploração e o capitalismo como um todo.

Lembrou-me também de um comentário, acho que foi de Adrian Scribano, de que o RC permitiria uma renovação ontológica e epistemológica do marxismo. Não sei se chega a tanto, mas há pontos de convergência. Vc concorda?

Artur disse...

Fico me perguntando se a análise ontológica do RC fica muito grudada a um ponto de vista lógico-gnosiológico.

O que seria mais interessante, do ponto de vista de uma argumentação transcendental, interrogar-se sobre as condições de possibilidade do conhecimento sobre a sociedade, fixando a atenção em demasia na produção e reprodução do social (agência x estrutura -- essa conversa interminável) ou sobre as condições de possibilidade da ação social, isto é, sobre as caracterísitcas que deve possuir a realidade social para que a ação seja possível.

Seria um realismo transcendental praxeológico. Sei lá.

Cynthia disse...

"Lembrou-me... a inferência marxista de que a posição de classe do proletariado permitia-lhe questionar a realidade de sua exploração e o capitalismo como um todo".

Deve ser porque a noção de "bifurcação da consciência", um conceito inicialmente desenvolvido pela teoria do ponto de vista feminista e depois adotada por diversas teorias pós-coloniais, tem origem em uma epistemologia marxista, particularmente gramsciana.

Mas diferentemente do marxismo, que confere um status epistemológico privilegiado ao proletáriado (dado que ele supostamente representa os interesses universais da humanidade), o conceito da Dorothy Smith pressupõe simplesmente que existe uma diferença entre o conhecimento gerado por diferentes tipos de experiência no mundo e aquele gerado pelos aparatos conceituais da ciência. Gosso modo, o primeiro seria característico de uma compreensão baseada nas interações entre o mundo material e o corpo; o segundo, um conhecimento abstrato, conceitual. Segundo ela, as mulheres estariam especialmente propensas a experimentarem uma contradição entre essa experiência vivida e o discurso hegemônico da ciência e, frequentemente, tenham que transitar entre os dois "mundos". Algumas autoras, como é o caso da Nancy Hartsock, acreditam que isso daria às mulheres um papel semelhante ao da classe operária, no sentido de um privilégio epistêmico. Outras, como é o caso de Sandra Harding e do próprio Lawson, acreditam que isso apenas faz com que os distintos pontos de vista trazem questões distintas que precisam ser incorporadas na ciência.

Adrián, até onde fui capaz de entender sua exposição, vai por um caminho diferente, relacionando Bhaskar e Zizek. Embora exista um claro ponto de convergência entre esses dois autores (no que diz respeito à influência do marxismo), confesso que me escapa como ele consegue conciliar a concepção de Real do RC e a de Lacan, que é o que informa a abordagem de Zizek.

Quanto ao debate agência-estrutura, isso é característico de uma sociologia realista crítica da década de 1980, mas excetuando-se Archer, não sei se essa distinção analítica permanece como o cerne dos estudos mais contemporâneos. De qualquer forma, não sei se consigo enxergar a diferença entre estabelecer as condições da ação humana com base na realidade social e muito do que foi colocado no debate agência estrutura - a própria Archer tem trabalhado isso em seus estudos sobre ação coletiva e mobilidade social.