quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não-civilizados


Trailer do filme A Vênus Negra, de Abdellatif Kechiche

Por Jonatas Ferreira e Cynthia Hamlin
Publicado em Rev. Estud. Fem. vol.18 no.3 Florianópolis set./dez. 2010


RESUMO

A dinâmica ocidental de civilização implica uma relação tensa entre corpo e mente, cultura e natureza, civilização e barbarismo. No ensaio que se segue, exploramos a construção deste último dualismo ao investigarmos os espaços nos quais certos corpos são definidos como monstruosos. Em particular, estamos interessados na constituição de uma visão científica de diferenças raciais, sua especificidade em relação à percepção medieval do lugar da alteridade, seu papel em legitimar a circulação de corpos 'monstruosos' como mercadorias e sua reivindicação de desvendar uma hierarquia objetiva de raças e gênero. De Lavater a Curvier, a classificação das espécies oferece um modelo hierárquico que será apropriado pelos discursos de raça e gênero na biologia. Nesse contexto, um caso pode ser considerado paradigmático: a 'Vênus Hotentote'. Argumentamos que a negociação política do status ontológico de Sara Baartman, durante os séculos XIX e XX, representa precisamente tal esforço para estabelecer as fronteiras de civilidade mediante a circulação e a exclusão de corpos incivilizados.

Palavras-Chave: mulheres; corpos negros; teratologia; ciência.
"O basilisco [monstro em forma de serpente] é capaz de fulminar o homem pelo olhar porque, ao vê-lo [...] põe em movimento pelo corpo um terrível veneno que, lançado pelos olhos, impregna a atmosfera com sua substância mortífera [...] Mas quando é o homem que vai ao encontro da fera guarnecido de espelhos [...] o resultado é diverso: o monstro, vendo-se refletido nos espelhos, lança seu veneno contra o seu próprio reflexo: o veneno é repelido, retorna sobre ele e o mata."
(Malleus Maleficarum: o martelo das feiticeiras - Heinrich KRAMER e James SPRENGER, 1991, p. 73)

Introdução

Na história do pensamento ocidental, mulheres, negros e monstros têm algo em comum: uma suposta proximidade com a natureza que configura a essência liminar de sua humanidade. Segundo tal forma de pensar, um espaço de civilização que se contraponha a essa proximidade deve ser forjado - um espaço em que, da segurança do mundo da cultura, seja possível objetivar e controlar esses seres fronteiriços. De fato, a constituição de um discurso civilizador abre-se em oposições fundamentadas na identificação de um hiato entre natureza e cultura: corpo versus mente, prazer versus razão, forma versus essência, matéria versus ideia etc. Assim, é comum que o discurso civilizador constitua as seguintes alternativas polares: a natureza alimenta, nutre e constitui nosso lugar dentro da existência; ao mesmo tempo, corrompe essa existência, sepulta-a, impõe-se ao homem civilizado como poder incontrolável, caótico, apavorante. A natureza é simultaneamente fecundidade e luto.

É importante considerar que o discurso civilizador não se estrutura exclusivamente em um dos polos dessa oposição, mas na arquitetura que coloca tais alternativas como algo inquestionável. Na prática, porém, tal discurso precisa excluir incluindo e incluir o outro sob o estigma da exclusão. É, portanto, da própria ambiguidade que deriva sua força, embora, paradoxalmente, seja tanto mais forte quanto menos ambíguo se mostre. É a constituição desses lugares que será investigado aqui. Em linhas gerais, nosso propósito é demonstrar como a ambiguidade diante da alteridade foi objeto de negociações distintas ao longo da história do Ocidente. Em particular, interessa-nos o modo como a constituição da sociedade moderna e de um discurso científico resultou em imagens monstruosas de alteridade, na produção discursiva de corpos considerados exóticos e, no limite, abjetos.

Inicialmente, consideraremos os elementos ambíguos que marcaram as representações culturais da mulher e do negro e que possibilitam sua caracterização como um/a Outro/ a monstruoso/a. Argumentaremos que o monstruoso aparece como o lugar da alteridade por excelência, um lugar que marca a fronteira entre criação e corrupção, ordem e caos, civilização e barbárie. Na sociedade medieval, em que a circulação dos corpos era restrita pela sua própria lógica econômica (o mercado tinha uma importância restrita, local),o monstruoso sempre esteve associado à ideia de circulação imprópria. Numa sociedade que se moderniza, a partir do comércio, da circulação de corpos e mercadorias, uma outra lógica civilizadora teve que ser concebida. Nesse sentido, argumentamos que o surgimento de um sistema de classificação taxonômico representou um primeiro passo legitimador do aumento da circulação de corpos e objetos transformados em mercadoria com o processo de expansão capitalista. Esse sistema de classificação, que constitui a baseda ciência moderna, representa uma ruptura. Para usarmos uma distinção semelhante àquela que Michel Foucault faz com respeito à loucura, diríamos que o monstruoso deixa de ser concebido, primordialmente, como objeto de julgamento moral e passa a ser explicado pela biologia. Distintamente do argumento foucaultiano, acreditamos que o elemento moralizante continuou claramente vivo, subjacente à explicação científica. Essa nova concepção do monstruoso, na exata medida em que se pretende científica, busca ocultar sua matriz valorativa, concebendo esses seres como espécimes naturais. A suposta isenção daquilo que se considera 'natural' é o ponto a partir do qual se essencializa uma explicação histórica e política. Tal naturalização é o equivalente moderno do ritual de exorcismo descrito no Martelo das feiticeiras: ao promover hierarquias raciais e de gênero e localizar o/a Outro/a do civilizado na base dessas hierarquias, a reflexão científica busca, ao mesmo tempo, neutralizar seus poderes, funcionando como o espelho que reflete a mirada do monstro sobre si mesmo. É justamente quando se percebe que esse olhar não é axiologicamente neutro que esse/a Outro/a monstruoso/a surge como um problema real cuja emergência e efeitos precisam ser explicados.

A fim de ilustrar nossos argumentos, efetuaremos um estudo de caso referente a Sara Baartman, mais conhecida como Vênus Hotentote. Baartman nos interessa porque representa uma convergência importante entre os principais pontos levantados aqui. Em primeiro lugar, além de mulher, é negra. Em segundo lugar, representa um caso extremo de constituição de identidade a partir do olhar do outro. Privada de sua própria voz e da perspectiva cultural de seu povo, sua identidade pessoal foi inteiramente subsumida à sua identidade social, fazendo dela uma espécie de significante vazio que reflete os valores dos grupos que a constituem como um tipo específico de sujeito. Por fim, ao ser submetida a três tipos de olhares distintos - a selvagem perigosa e amoral; o negro como raça biologicamente distinta e a heroína dos modernos movimentos sociais - a circulação de seu corpo, desde o século XIX, tem garantido a manutenção da lógica civilizatória europeia.

Para ler o artigo completo, clique aqui.

10 comentários:

Le Cazzo disse...

Estou muito contente de que um trabalho que começou com pequenos textos feitos para o Cazzo retorne à nossa casa. Volta, acho, mais elegante e legível - e mais curto. Gostei muito de ter feito este artigo em parcercia com Cynthia e espero que o(a)s eventuais curioso(a) também o apreciem. Jonatas

Le Cazzo disse...

faltou um "s" em curioso(a).

Cynthia disse...

"Corrigiram" nosso abstract, Jonatas. Além da tradução errada de um termo, nos presentearam com um erro de concordância.

Tâmara disse...

Excelente! Embora eu não soubesse que vocês e a revista que "corrigiu" o abstract fossem tão velhos: publicado em 201?! Antes ou depois de Cristo?
Brincadeiras à parte, é muito bom mesmo o artigo de vocês. Eu o estava esperando a tempos (Cynthia tinha me falado), porque vi o filme de Kechiche e gostei muito (seu cinema costuma incomodar muita gente "civilizada" na França, mas graças aos demônios ainda existem muitos incivilizados franceses). Mas vou digeri-lo melhor para ver se comento mais profundamente - como o artigo merece. Abraço.

Tâmara disse...

Acho que ja' digeri um pouquinho mais. Além de ser um texto muito bem escrito e estruturado, o artigo de vocês veio como uma bela sustentação teo'rica de um capi'tulo delicoso de A Montanha Ma'gica que acabei de ler. Nele, uma mulher asia'tica (na verdade uma russa "impolida" cujo sobrenome estranhamente francês pode ser traduzido como "gata quente")é o objeto escondido do discurso de um "progressista" contra o que ele define como tendência do hero'i a sucumbir à potência destrutiva da natureza contra uma razão iluminista,cienti'fica e ocidental. Neste sentido, a correção que vocês fizeram a Foucault, articulando o que ele separa (fundamento biolo'gico ou moral da definição da monstruosidade), foi providencial: Thomas Mann, através de seu personagem, consegue também desenhar muito bem a ambiguidade necessa'ria entre biolo'gico e moral do discurso cienti'fico positivista e evolucionista.

Quanto ao filme, o que mais me impressionou foi como o diretor e a atriz conseguiram fazer da desumanizada Baartman a u'nica expressão constante de humanidade na histo'ria. E isso através do olhar da personagem filtrado pela câmera do diretor. Lendo o final do artigo, pensei primeiro que Kechiche foi menos pessimista do que vocês, porque ele termina o filme com a festa da recepção do corpo de Baartman na A'frica do Sul. Pensando melhor, Kechiche imprime uma tal angu'stia ao longo da histo'ria que esse final pode muito bem ser entendido não como a ruptura, mas como a confirmação do processo de desumanização sofrido por aquela mulher negra - e do qual ela morreu. A gente sai do cinema tão triste e pesado...Mas com vontade de continuar na luta. Vocês ja'viram o filme? Abraço.

Le Cazzo disse...

Parece que Cynthia já viu; eu não. E fiquei com muita vontade de vê-lo, por tudo o que você falou, Tâmara. Acho que vou reler Alexandre e Outros Heróis, de Graciliano, para cortar o efeito dessa coisa pesada.

Le Cazzo disse...

Agora, o melhor do texto ficou de fora. Uns versos de Bocage sobre um certo Fodaz Ribeiro, que constam de um dos posts, mas ficou fora da versão final - por falta de espaço... Jonatas

Cynthia disse...

Tâmara,

Ainda não assisti o filme (Hellcife é phoda), mas estou curiosa. E preciso reler a Montanha Mágica!

Concordo com vc, o nosso final é meio pessimista (et plus ça change...), mas foi meio desesperador ver o mea culpa (mais para "meia culpa") dos franceses nos relatórios do Senado: por um lado, conferem (deferem?) humanidade a Baartman ao reconhecer o caráter racista do empreendimento colonial; por outro, fazem isso de uma forma tal que sugere que seu único interesse era salvagardar o patrimônio de seus museus. Enquanto isso, os gregos e os egípcios continuam implorando a devolução de suas obras de arte aos ingleses e aos alemães. Dá para acreditar que o cavanhaque da Esfinge ainda está na Inglaterra e eles se recusam terminantemente a devolver sob o argumento de que precisam preservar o patrimônio da humanidade? Vai ver que é porque os egípcios não são propriamente humanos...

Bjs

Anônimo disse...

Caros,
Aproveitando a visita que fiz ao blog para ler o texto do amigo Cibalena...

Penso que o 500 aniversário de nascimento de Ambroise Paré, transcorrido em 2010, teria sido uma ótima oportunidade para discutirmos com seriedade uma obra de fundamental importância para a medicina (no Brasil, o assunto sequer foi comentado...). É preciso lembrar que Paré não é apenas um teórico, mas um cientista que desafiou a academia de sua época, tanto por sua condição social (que lhe permitia no máximo ser barbeiro), quanto pelos métodos que propunha. Paré foi o primeiro a realizar ligações entre vasos e artérias, contrariando o preceito então vigente de que os ferimentos produzidos por armas de fogo (uma novidade então)deveriam ser tratados com azeite fervente. Paré também concebeu e testou diversas próteses. Por fim, foi um desenhista magistral, com técnica sobrando. Sobre os monstros e outros prodígios tem ilustrações incríveis (o que me leva a dizer sempre aos meus alunos que eles antes de fazerem uma tatuagem devem me pedir emprestado o livro, que aliás, comprei por uma fortuna). Escrevi um pequena palestra no ano passado sobre o assunto, caso vocês tenham interesse em trocar ideias, estamos aí...
Cordialmente,

Eduardo Rabenhorst

Cynthia disse...

Oi, Eduardo,

Obrigada pela visita.

Sabe que pensamos seriamente em usar uma das ilustrações do livro do Paré como símbolo do blog? Chegamos a selecionar umas duas ou três, mas desistimos quando vimos o trabalho que seria inserir a figura no título.

Quanto ao seu artigo, você não teria interesse em compartilhá-lo aqui no blog? Seria um prazer, embora o especialista em monstros aqui seja Jonatas.

Abraço