sexta-feira, 1 de abril de 2011

O Triunfo da Música



















Fernando da Mota Lima
Suponho que  a maioria dos curtidores contemporâneos da música acredita com santa inconsciência que os músicos foram sempre elevados às alturas celestiais correntes no nosso tempo. Começo frisando partir de uma distinção deliberada entre amantes da música, ou melômanos, e curtidores, termo que aqui emprego para referir-me ao público de massa. É claro que a distinção contém um juízo de valor que preciso explicitar já de saída porque algo do que escreverei sobre o livro O Triunfo da Música, de Tim Blanning, implicará essa distinção. O amante da música ou melômano, no sentido aqui acentuado, é um apreciador esclarecido da música. Destaco, em tempo,  que ele também existe como público de massa, dado o fato óbvio de que vivemos em sociedades lastreadas por veículos de difusão e recepção de massa. Por mais que invista emoção na sua recepção da obra musical, o melômano nunca se confunde com o mero curtidor da música. Este é aqui compreendido antes de tudo como o receptor que se vale da música como simples diversionismo ou veículo de extravasamento de energia psíquica. Para este, o problema da qualidade estética da música nunca se coloca, ou simplesmente inexiste. Ele curte Ivete Sangalo, por exemplo, com o espírito de um atleta de academia de musculação. Logo, o que busca na música desse tipo, pois é isso o que de resto ela fornece, é fonte de excitação e extravasamento de energia.
O livro de Tim Blanning, em muitos sentidos excelente, ignora por completo a distinção que acima faço. Embora considere indireta ou implicitamente a música enquanto expressão artística esteticamente qualificada, preocupa-se antes de tudo em descrever o longo processo histórico através do qual o músico transitou das funções socialmente subordinadas que exercia na sociedade para o triunfo singular que alcançou na cultura contemporânea. Esse triunfo se traduz em sucesso elevado à sacralização da música e do músico, na riqueza econômica e na fama ostentadas pelos músicos e na soberania da música sobre as demais artes.
Quando ocasionalmente roça a questão da qualidade estética da obra ou do artista, ele o faz baseado numa distinção supostamente simples e inquestionável. O leitor pode conferir melhor o ponto de vista de Blanning se for à página 345 e observar o que ele aí escreve sobre avaliação subjetiva (o exemplo de que se ocupa é o dos Beatles), baseada em critérios estéticos, por definição transitórios, e fato objetivo, isto é, o teste da durabilidade, ou do tempo, que assegurou aos Beatles um lugar excepcional na história da música. Outro critério supostamente objetivo que endossa, típico da ideologia consumista que domina nosso tempo, é o quantitativo. Quando afirma a importância extraordinária de artistas como Paul McCartney e John Lennon, assim como de Bach ou Mozart, ou ainda uma canção como Yesterday, lança mão apenas de dados estatísticos.
Voltando ao ponto de partida deste artigo, Tim Blanning demonstra com abundância de exemplos e meticulosa exposição histórica o processo através do qual o músico, não a música, ascendeu da condição de mero serviçal da nobreza, do clero ou do patrocínio individual de algum poderoso ao estado de deificação observável no presente. Se um exemplo famoso pode resumir esta questão, bastaria lembrarmos John Lennon afirmando, com razão, que os Beatles eram mais famosos do que Jesus Cristo. Muitos crentes ficaram chocados, mas a verdade é que Lennon e ídolos de igual fama inspiram estados de fanatismo e devoção de massa para os quais não sei de equivalentes religiosos na cultura ocidental contemporânea.
Valho-me de um outro exemplo para caracterizar na outra ponta, a da subordinação social do músico, os extremos seguidos pelo conjunto da exposição desenvolvida por Blanning. O exemplo que agora apresento refere-se ao pontapé na bunda que Mozart sofreu quando foi literalmente expulso dos serviços que prestava ao arcebispo de Salzburgo (p. 19). Entre este célebre pontapé e a frase de Lennon se interpõem mais de 200 anos de história. Mas importa ressaltar que o livro cobre um intervalo de tempo bem mais amplo. Dentro dele podemos apreciar a subordinação social, agravada por ocasionais humilhações, de que foram vítimas gênios da música como Bach, Haydn e Mozart. Liszt e sobretudo Beethoven e Wagner desempenham nesse processo papéis fundamentais como pioneiros do reconhecimento do músico como gênio e objeto de veneração, além de inequívoco prestígio conferido pelas instituições sociais do tempo.
O agente fundamental dessa mutação observável no papel social desempenhado pelo músico é o capitalismo. Foi graças a ele que se constituiu um mercado de arte capaz de assegurar ao músico a distinção e os privilégios de que hoje desfruta numa escala sem precedente histórico. Antes do desenvolvimento do capitalismo, como já assinalei, o músico, assim como o artista em geral, vivia subordinado ao poder da nobreza e do clero. É portanto curioso, senão irônico, o fato de tantos artistas lutarem no decorrer do século 20 pela destruição do capitalismo. O ideal de muitos deles era o comunismo que produziu sociedades totalitárias nas quais o artista era impiedosamente fiscalizado, censurado, instrumentalizado ideologicamente e no limite silenciado pelo Estado. Os exemplos são tantos que poupo o leitor do trabalho de ler alguns que de imediato me vêm à memória. Mas aqui vai um: quem viu o filme A vida dos outros sabe muito bem do que estou falando.
É claro que processos semelhantes também ocorreram nas sociedades de economia capitalista nas quais foram impostos regimes autoritários ou ditatoriais. Sofremos essa experiência em tempos recentes no nosso próprio país. Artistas como Geraldo Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar em alguns exemplos restritos à música popular, foram vítimas de diversas formas de controle ou perseguição política. Mas não há como objetivamente situar no mesmo patamar a situação do artista num regime totalitário, como foi o caso da União Soviética, com a do artista que sofre as opressões impostas por ditaduras de regime econômico capitalista. Se a ditadura é imposta para controlar a liberdade do artista em benefício dos interesses do capitalismo, o controle com frequência entra em conflito com os próprios interesses da economia que a ditadura defende. Poupando-me de entrar nos detalhes desse tipo de processo social, encurto o assunto lembrando que isso foi frequentemente teorizado por críticos marxistas como expressão característica das contradições econômicas e culturais do capitalismo.
Seguindo no veio da  realidade brasileira, que naturalmente inexiste no livro de Tim Blanning, podemos melhor apreciar a relação acima indicada entre o lugar social ocupado pelo músico e o desenvolvimento do capitalismo. Como aqui o desenvolvimento deste foi muito tardio, somente a partir da década de 1960, com o surgimento da televisão, da cultura jovem e de um amplo mercado de massa, o músico em geral passou a desfrutar dos privilégios invejáveis que agora plenamente detém. É verdade que antes, digamos a partir da década de 1930, já se constituíra um ralo mercado da música baseado na difusão dos programas de rádio, na indústria fonográfica e no mercado alimentado pelo carnaval.
Diante do que já expus, fica evidente que o livro de Blanning, como ele aliás cuida de esclarecer, não é uma obra de musicologia destinada ao leitor de formação técnica e teórica em música. Citando o próprio autor,
“Prestígio, propósito, lugares e espaços, tecnologia e libertação: estas são as cinco categorias que explorarei para explicar a marcha da música até a supremacia cultural. O que se segue é um exercício de história social, cultural e política, não de musicologia – nenhum conhecimento técnico de música é requerido” (p. 20).
Além de dedicar a cada uma das categorias acima especificadas capítulos exclusivos e extensos, Blanning acrescenta à obra uma introdução e uma conclusão sumárias nas quais ousa explorar até com algum ânimo polêmico questões de prestígio e poder, gosto e consumo característicos da realidade musical contemporânea.
Já considerei brevemente a questão do gosto musical, que ele menciona sem explorar mais amplamente a relação entre gosto e fundamentação estética e sociológica do gosto. Propondo a questão noutros termos: o gosto é puramente subjetivo, ou mensurável a partir de critérios puramente mercadológicos, ou se apoia de algum modo em critérios esteticamente objetivos? Como já assinalei, ele encara os critérios estéticos como se fossem meramente subjetivos, ou transitórios, passa recibo ao leitor e vai adiante. Quando se arrisca a discutir questões de gosto, apoia-se apenas na durabilidade assegurada pelo tempo, juiz sem dúvida supremo, ou na quantificação mercadológica da obra e do artista. O tempo, como venho de observar, é o juiz supremo da arte, mas é impraticável como critério restrito ao presente, que é de resto onde de fato vivemos. O tempo importa apenas como medida obviamente temporal. Logo, vale apenas quando fixamos relações comparativas entre épocas distintas, ou intervalos de tempo amplos o suficiente para que se possa com segurança afirmar a duração da obra ou do artista no tempo ou na linha da tradição.
Tim Blanning salienta com razão o papel decisivo desempenhado pela revolução tecnológica para que a supremacia da música se tornasse realidade na cultura contemporânea. O fato de torná-la acessível a massas de receptores incalculáveis supõe questões estéticas que ele prudentemente contorna ou finge ignorar. Por exemplo: a relação entre democratização da cultura e qualidade estética. Blanning celebra a supremacia da música, recorre a dados quantitativos e factuais para confirmá-la, mas não se atreve a ensaiar uma crítica ou interpretação que deslizariam para um terreno movediço e polêmico.
Enquanto lia o livro, em particular passagens que roçavam questões como as que indico nos dois parágrafos precedentes, pensei por associação no clima musical brasileiro. Confesso haver considerado a possibilidade de me valer da crítica ao livro para introduzir neste artigo algumas questões de gosto, também fatos caracterizadores da realidade musical em que vivemos, que com certeza inflamariam os ânimos do leitor que leva a sério o grosso da música correntemente consumida no mercado brasileiro. Foi com essa intenção que logo no início do artigo introduzi uma distinção, já de cara polêmica, entre o amante da música, ou melômano, e o mero curtidor, que constitui o grosso do nosso público. Mas deixo o dito pelo não dito e encerro o artigo por aqui. Antes, porém, reitero as qualidades excelentes da obra de Blanning enquanto exercício de história cultural da música, ou ainda de sociologia da música. Além disso, a exposição é clara e envolvente, fato que sem dúvida importa para o leitor que busca a leitura como meio de aprendizagem temperada pelo prazer.
Acrescento em tempo algumas  ponderações finais ao artigo para não silenciar completamente sobre a relação entre a música e as demais artes, relação que ficou implícita na evidência da supremacia da música bem demonstrada no livro. Um fator já ressaltado para a realização dessa supremacia é a revolução tecnológica. Em países do tipo do Brasil, de baixa tradição letrada e relações sociais tão pouco regulamentadas, para não dizer de funcionamento anômico ou desregrado, a música alcança um grau de difusão impensável no contexto de um país como a Inglaterra, onde nasceu e vive o autor do livro. Aqui a música, geralmente de baixa categoria, invade todos os espaços sociais, inclusive aqueles tradicionalmente consagrados às outras artes. Bastaria considerarmos a moda das feiras literárias, cada vez  mais badaladas, cada vez mais concorridas e cada vez mais subordinadas ao império da música e dos músicos.
A música ocupa agora praticamente todo o nosso espaço de convívio ou até de solidão harmônica ou simplesmente barulhenta. Em termos de hegemonia cultural, ela perde apenas para a televisão, que aliás não é uma arte ou forma de arte, mas um veículo de difusão de muita coisa, sobretudo de lixo cultural, no caso preciso do Brasil. Valendo-se da televisão para exercer supremacia ainda maior, a música reduziu as artes da palavra, em particular a literatura, a uma posição de servilismo comparável,  dentro das distinções de contexto histórico óbvias, à que o músico sofreu nas sociedades de corte da Europa nos séculos que precederam o pleno desenvolvimento do capitalismo. Dependendo da solidão e do silêncio como meios essenciais de fruição, a literatura perde por completo o rebolado quando ouve o bater de um tambor, o sopro de um clarim ou o acorde ressoante de uma guitarra elétrica.
Se há hoje uma ditadura no Brasil, não tenho dúvida de que é a da música aliada à televisão e outros meios de difusão de massa isentos dos controles impostos nas sociedades onde se respeita a distinção democrática fundamental entre espaço público e espaço privado. Neste país de mãe Joana, onde invadimos de mil modos possíveis e impossíveis a privacidade e a liberdade do outro, há circunstâncias nas quais sequer podemos dormir em paz, imagine ler em paz ou até mesmo ouvir música em paz. 
Recife, 20 de fevereiro de 2011.

Um comentário:

Tiago disse...

Concordo com a crítica que a monopolização da distribuição de produtos culturais (e a música, especialmente)por alguns meios específicos pouco ajuda na qualidade do que é produzido. Mas essas distinções entre melômano/ouvinte, Mozart/Ivete Sangalo recaem numa dicotomia alta e baixa cultura que com certeza mereciam ser melhor problematizadas. Acho que pensar democracia e cultura conjuntamente não significa desprezar expressões culturais de forma elitista (mesmo aquelas que não nos agradam), nem formas de consumo da música. Mas potencializá-las e amplia-las em sua diversidade. E não sei mesmo se a música é hegemônica em relação as demais linguagens, nem sei se dá pra pensar numa coisa tão ontologicamente pura e identificável quanto A música.