sábado, 13 de agosto de 2011

Heidegger, Agamben e o Animal (versão completa)



Jonatas Ferreira 
 
Ao passar a fronteira ou os fins do homem, chego ao animal:ao animal em si, ao animal em mim e ao animal em falta de si-mesmo, a esse homem de que Nietzsche dizia, aproximadamente, não sei exatamente onde, ser um animal ainda indeterminado, um animal em falta de si-mesmo. (Derrida, 2002, p. 15.)
A metafísica é uma interrogação na qual nos inserimos de modo questionador na totalidade e perguntamos de uma tal maneira que, na questão, nós mesmos, os questionadores, somos colocados como questão. (Heidegger, 2006, p. 11.)


 Introdução

Há um conjunto de fenômenos contemporâneos que as ciências humanas costumam designar de “dessimbolizadores”. Já ouvi algumas coisas a esse respeito: que a única democracia que hoje podemos almejar é a do consumo (Lipovetsky), que as várias formas de investimento corporal com as quais nos deparamos seriam algo como a emergência do Real lacaniano (Dany-Robert Dufour), que assistimos ao fim das utopias, ao fim da crítica (Baudrillard e Virilio), à emergência do biopoder como quintessência do político (Agamben, Negri), à transformação do labor na essência de todas as relações sociais (Arendt), à conversão da “vida nua” em campo prioritário de investimentos culturais, políticos, existenciais (Agamben). Minhas alunas de pós-graduação, que fazem dissertações e teses no campo da sociologia do corpo, não parecem mais otimistas: falam do fim da terapia, da medicalização da vida, da sertralinização dos humores, do “império do efêmero”, da ditadura da juventude. Meus colegas lacanianos falam na morte do pai. Aumentou a criminalidade? Isso não é de espantar uma vez que o pai morreu. Há uma cultura do pânico se instalando? Segue o cortejo fúnebre do pai. Em todo caso ainda caberia perguntar se poderíamos entender esse conjunto de conclusões distópicas não como parte de um “diagnóstico” sofisticado de nossa situação, mas como parte de “sintomas” mais profundos que devem ser objeto de reflexão.

Já na década de 1930, Martin Heidegger (2006) advertia acerca do perigo de um certo sociologismo, que ele chamava de “filosofia da cultura”, um tipo de pensar distanciado em que quadros culturais e históricos amplos são traçados sem que o intelectual se veja implicado neste ou naquele enquadramento cultural. Uma forma de reflexão, portanto, metafísica, em que um olhar transcendente cataloga as pequenas e grandes misérias da história da humanidade – e, eventualmente, lacrimeja. Embora não tenha nada a dizer diretamente a propósito do conjunto de questões que absorvem minhas alunas ou amigos lacanianos, e no que pese sua crítica àqueles que chegam facilmente a uma Weltanschauung das sociedades contemporâneas, Heidegger parece alimentar essa visão pessimista. De fato, não há como evitar esse tipo de conclusão sombria, uma vez constatado o niilismo como essência de nossa cultura tecnológica e, portanto, fundamento do imperativo da aceleração e da disponibilização total dos entes. Também não obtemos outro tipo de conclusão quando consideramos a afirmação heideggeriana de que a própria linguagem teria sido apropriada pelas demandas de desempenho das tecnologias de informação e comunicação. Tudo isso é compatível com diagnósticos tais como dessimbolização, morte do pai, investimento no concreto do corpo, perda de valores supremos. Se mesmo a linguagem, âmbito em que o pensar se realiza, encontra-se mobilizada pela técnica, por seu afã inovador, acelerador, em que espaço a crítica seria possível? Essa linha de argumentação é bem conhecidapelos estudiosos de Heidegger e diz respeito, sobretudo, às suas contribuições da década de 1960, entre as quais podemos mencionar Língua de tradição elíngua técnica e A caminho da linguagem. Cito aqui o próprio Heidegger:
Ora é precisamente esta concepção corrente da língua que se vê não somente avivada pelo fato da dominação da técnica moderna, mas reforçada e levada exclusivamente ao extremo. Ela reduz-se à proposição: a língua é informação. [...] em que medida o que é próprio da técnica acaba por se impor à língua levando à sua transformação em pura informação, de tal maneira que provoca o homem, quer dizer, obriga-o a assegurar a energia natural e a colocá-la à sua disposição? (Heidegger, 1999, p. 33)
E em outra passagem:

O “grande perigo” é que “a maré da revolução tecnológica que se aproxima na era atômica pode cativar, enfeitiçar, ofuscar e iludir o homem de tal modo que o pensar calculador pode algum dia ser aceito e praticado como único modo de pensar” (Heidegger apud Dreyfus, 1993, p. 305).

O desafio que o pensamento heideggeriano apresenta é, portanto, poder discorrer acerca de “nossa situação” histórica sem pensar o ser humano como coisa dada, como pergunta respondida por suas determinações culturais: “e isto porque estes diagnósticos e prognósticos somente nos fornecem um papel e nos desconectam de nós mesmos, em vez de nos auxiliar no intuito de nos encontrarmos” (Heidegger, 2006, p. 93). Como é possível pensar a humanidade do ser humano, os constrangimentos que resultam da condição histórica na qual esse ser se realiza e se perde, mantendo-nos ao mesmo tempo abertos à ideia fundamental de que o ser humano é aquele cuja essência é um estar sempre a caminho? Se essa definição é verdadeira, ser-nos-ia logicamente inconcebível totalizar o ser humano, obter dele uma mirada transcendente que o objetivasse e disponibilizasse de algum modo. “Filosofia é o contrário de todo aquietamento e asseguramento” (Idem, p. 24). Por isso, a resposta que Heidegger oferece à questão acima é: faz-se necessário refletir sobre essa desconexão que o sociologismo e a filosofia da cultura promovem entre o ser do ser humano e seu mundo, sobre essa distância que nos arrasta para um “tédio profundo”, sob cuja influência o mundo e a tarefa intelectual parecem submergir em niilismo. Em O aberto, Giorgio Agamben (2004) parece se concentrar nas questões que daí decorrem. Comentando as 180 páginas que, em Os conceitos fundamentais da metafísica, Heidegger dedica a pensar o que ele próprio denomina “chatice profunda”, ou “tédio profundo”, Agamben pretende se concentrar em um ponto específico daquela análise, a saber, a relação entre o humano e o animal – caso possamos aceitar que do ponto de vista de tal abordagem alguma relação aqui se pode estabelecer, ou que ainda a eventual impossibilidade desse vínculo nos diga respeito. No conhecido Carta sobre o humanismo essa relação já é problematizada do seguinte modo: porque a pergunta fundamental que o humanismo produz é sempre “o que é o ser humano?”, entendendo e dispondo o ser humano, portanto, em meio à totalidade dos entes, o humanismo no fundo reduz o humano à condição de animal, à condição de um “que” – ainda que lhe confira algum tipo de qualidade específica: a inteligência, a fala, o luto etc. O animal é o horizonte a partir do qual o humanismo tende sempre a pensar o ser humano – e é ao mesmo tempo o seu impensado. Aqui é necessário dizer que a redução do humanitas ao animalitas é apenas uma forma diferente de expressar a desconexão, distância sobre a qual falávamos e que torna o mundo impenetrável, tedioso. Ou seja, tal gesto filosófico torna o niilismo inevitável precisamente ao cancelar, ao não encarar de modo que seja radical o suficiente, a questão da essência do humano.

[Esse texto foi publicado na revista Tempo Social. Para o ler na íntegra, clique aqui]



Um comentário:

Le Cazzo disse...

Olá!

Quando postei pela primeira vez uma versão dessa introdução, o Sr. Anísio e Tiago Marques (Qualquer Coisa) me pediram a versão completa do texto. Só agora vi o pedido enquanto postava o ensaio tal como foi publicado no último número da Tempo Social. Espero que Tiago e Anísio ainda leiam o Cazzo, lamento não ter respondido antes ao interesse lisonjeiro. Bem, mais aí vai. Uma versão levemente ampliada do texto também deve sair esse ano em uma coletânea organizada por Franz Brüseke (coisa fina!). Farei a propaganda quando for o tempo (mas nada me impede de afiar um pouco as garras). Abraços.

Jonatas