sábado, 29 de outubro de 2011


Por Renan Springer de Freitas (UFMG)

Nos últimos cinqüenta anos o pensamento teológico cristão cunhou a expressão “teologia da superação” (“displacement theology”) para se referir, de forma pejorativa, à concepção teológica, crucial para a imagem que o cristianismo construiu a respeito de si próprio, de que a saga do povo de Israel relatada nas escrituras hebraicas foi desde sempre uma prefiguração da presença atemporal de Jesus no mundo. De acordo com esta concepção, que já se esboça na epístola de Barnabás (final do primeiro século), a morte e ressurreição de Cristo tornou o judaísmo obsoleto porque universalizou o acesso à graça divina que os judeus haviam outrora restringido a si próprios. A substituição do judaísmo pela fé cristã foi posteriormente atribuída à pregação de Paulo e, no século XIX, o teólogo protestante Ferdinand C. Baur arrematou essa concepção “superacionista” ao postular que a passagem de Paulo significou a transição de uma “religião étnica, particularista”, o judaísmo, para “a idéia universal de Cristianismo”.


Judaísmo, racionalismo e teologia cristã da superação: um diálogo com Max Weber discute o vínculo existente entre essa concepção teológica e uma discussão de inequívoca centralidade na sociologia: a que diz respeito ao processo que conduziu ao racionalismo ocidental. Este vínculo é particularmente visível na tese weberiana, desenvolvida recentemente por Wolfgang Schluchter (em The rise of western rationalism), de que a doutrina profética hebraica trazia em germe certas concepções inovadoras cujas potencialidades éticas o povo judeu, em razão de sua condição de “pária”, não foi capaz de desenvolver e, por esta razão, foi necessário que o particularismo judaico viesse a ser substituído, ou superado, pelo universalismo Paulino para que tais potencialidades pudessem, de fato, se desenvolver no ocidente. Argumenta-se que esta linha de raciocínio se limita a reeditar a visão superacionista, peculiar ao pensamento teológico do século XIX, a respeito da importância histórico-cultural do trabalho missionário de Paulo, da natureza do judaísmo farisaico e da relação entre ambos. Impõe-se, nesse caso, a tarefa de apresentar um quadro mais veraz a respeito de tudo isto. É o que me proponho a fazer no presente livro.

sábado, 22 de outubro de 2011

O Manifesto Slow Science


Somos cientistas. Não blogamos nem tuitamos. Não temos pressa.

Sem mal entendidos. Somos a favor da ciência acelerada do início do século XXI. Somos a favor do fluxo interminável de revistas com pareceristas anônimos e seu fator de impacto; gostamos de blogs de ciência e mídia, e entendemos as necessidades que relações públicas impõem. Somos a favor da crescente especialização e diversificação em todas as disciplinas. Queremos pesquisas que tragam saúde e prosperidade no futuro. Estamos todos neste barco juntos.

Acreditamos, entretanto, que isto não basta. A ciência precisa de tempo para pensar. A ciência precisa de tempo para ler, e tempo para fracassar. A ciência nem sempre sabe onde ela se encontra neste exato momento. A ciência desenvolve-se de forma instável, através de movimentos bruscos e saltos imprevisíveis à frente.  Ao mesmo tempo, contudo, ela muitas vezes emerge lentamente, e para isso é preciso que haja estímulo e reconhecimento.

Durante séculos, slow science foi praticamente a única ciência concebível; para nós, ela merece ser recuperada e protegida. A sociedade deve dar aos cientistas o tempo de que eles necessitam, e os cientistas precisam ter calma.

Sim, nós precisamos de tempo para pensar. Sim, nós precisamos de tempo para digerir. Sim, nós precisamos de tempo para nos desentender, sobretudo quando fomentamos o diálogo perdido entre as humanidades e as ciências naturais. Não, nem sempre conseguimos explicar a vocês o que é a nossa ciência, para o que ela servirá, simplesmente porque nós não sabemos ainda. A ciência precisa de tempo.

– Tenham paciência conosco, enquanto pensamos.

(tradução de José Eisenberg; revisão Antonio Engelke)

[original: http://slow-science.org - (c) The Slow Science Academy, 2010]
[cópia: http://revistapittacos.org/- Revista Pittacos: Revista de Cultura e Humanidades]

sábado, 8 de outubro de 2011

Um Pardal voando sobre um Ninho de Cucos


Por Artur Perrusi

Toc, toc, toc, ô de casa, tem alguém aí?!

Eita que desapareci, hein?! Bem, as justificações cansam a verdade. Reapareci, eis a questão. Talvez, um mistério filosófico seja o fato de as pessoas aparecerem e desaparecerem. São até irritantes nesse movimento.

Publico uma resenha do filme "Um Estranho no Ninho". Achei-a no meu baú de textos perdidos. Seria publicada, prometeram-me. Prometer é um ato falho. Não publicaram, e me esqueci do dito-cujo. Dei uma recauchutada e publico aqui e agora.

Um Pardal voando sobre um Ninho de Cucos[1]

Não farei, aqui, uma análise desse clássico do cinema, “Um Estranho no Ninho”, e sim aproximações entre as temáticas do filme e a psiquiatria ou, melhor dizendo, entre o filme e minha experiência como psiquiatra e sociólogo. Será, digamos assim, uma exposição que apresentará algum cunho pessoal. Claro, esforçar-me-ei para que a narrativa não fique idiossincrática, tentando contextualizá-la e, com isso, conectando-a a uma totalidade mais ampla. O jogo entre filme e experiência pessoal, nesse sentido, permitirá um exame mais geral do poder institucional da psiquiatria.

O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome do escritor estadunidense Ken Kesey. Foi escrito em 1962, num contexto histórico bem significativo, marcado pela contracultura. O autor, pode-se dizer, condensa bem a época: um polemista e crítico ferino da sociedade americana, tendo sido um ícone da juventude beatnik e hippie. Foi um dos gurus do LSD. Sua crítica à instituição psiquiátrica tem como pano de fundo a condenação do “american way of life”. E a conclusão é ambiciosa: a psiquiatria prefigura o modelo das instituições modernas. Ela é totalitária e, ao mesmo tempo, norma das outras instituições. O controle comportamental imposto pela psiquiatria, nas suas instituições, é a base das relações de dominação existentes na sociedade. Em suma, vive-se, na América, uma espécie de totalitarismo “doce”, sem um específico centro de poder, embora sistêmico, baseado num enquadramento normativo do comportamento que transforma os indivíduos em meros vetores do sistema.

O filme foi realizado em 1975. Vivia-se, ainda, a rebordosa dos anos 60. Os temas da década passada continuavam vivos, embora com menos otimismo e psicodelismo. A antipsiquiatria continuava sendo a crítica hegemônica, diante do sempiterno domínio do asilo psiquiátrico. Contudo, não creio que o filme tenha o alcance da crítica de Ken Kesey, conquanto permaneça a contundência contra a instituição psiquiátrica. Pode-se, é claro, interpretar a relação conflituosa entre Randle McMurphy (Jack Nicholson) e Mildred Ratched (Louise Fletcher) como metáfora dos conflitos existentes na sociedade americana, mas não iria por esse caminho. De todo modo, é justamente essa relação, interpretada de forma genial pelos dois atores, que é o fulcro do filme. E creio que ela seja muito útil para pensar o alcance da crítica à psiquiatria.

Inclusive, depois do “Estranho...”, surgiram outros filmes com temáticas direta ou indiretamente relacionadas à psiquiatria. Com o tempo, a crítica antipsiquiátrica arrefeceu, e os filmes passaram a não contestar, propriamente, a validade da psiquiatria, e sim alguns modelos de assistência, principalmente aquele baseado no asilo. Geralmente, na nova safra de filmes, o psiquiatra tem salvação, sim, contanto que esteja fora do padrão asilar, e assuma uma prática profissional que seja relacional, dialógica e de profundo respeito pelo paciente, agora transformado em usuário da assistência psiquiátrica. Lembrando-me rapidamente de alguns filmes, tais como “As loucuras do Rei George”, “Gênio Indomável” e “Garota, Interrompida”, nota-se que o psiquiatra deixou de ser a besta-fera, podendo ter ideias modernas, uma postura informal e, quem diria, demonstrar até mesmo... emoção.

Mas, vamos ao filme.

Randle McMurphy é um detento que é enviado a uma clínica psiquiátrica. Por quê? Há dúvidas sobre sua sanidade. Ele é doido ou não? Sua estadia na clínica é, justamente, para a comprovação diagnóstica de sua suposta loucura. Ora, o espectador descobre, rapidamente, que McMurphy finge ser louco – inclusive, o diretor da clínica desconfia bastante de seu comportamento. Por meio desse artifício, cria-se uma conexão imediata entre o espectador e o personagem. Diria que, praticamente, é inevitável, a partir dessa situação singular, ter uma empatia por McMurphy.

A primeira questão, assim, que coloco em discussão, seria a seguinte: é possível simular a loucura? Não é uma questão simples e tem consequências clínicas e, até mesmo, filosóficas. Embora a questão não seja simples, a resposta é rápida: sim, é possível simular um surto psicótico, um sofrimento psíquico, uma doença mental. O problema aparece quando se examina as possíveis consequências dessa resposta. Uma delas seria a seguinte: o fato de existir a possibilidade de simulação implica que a loucura não seja uma doença mental? Não é uma pergunta banal, pois a psiquiatria não tem, para a maioria de suas doenças, exames complementares, isto é, objetivos, digamos assim, que mostrem, de uma vez por todas, a “realidade” da loucura. Não há raio-x, ultrassonografia, exame laboratorial que comprovem que a pessoa está “louca”. Uma doença orgânica é uma unidade discreta que pode ser examinada de forma objetiva. Sem a demonstração objetiva, a loucura seria completamente subjetiva, logo, passível de ser simulada? Sendo subjetiva ou uma forma de subjetividade, seria doença? Afinal, no que se baseia o psiquiatra para firmar seu diagnóstico? Ora, basicamente, no comportamento. Mas, caso seja isso mesmo, como apreender objetivamente sintomas psicopatológicos por meio da observação do comportamento de uma pessoa? Ora, o exame do comportamento implica fazer atribuições psicológicas a uma pessoa. Como projetar atributos psicológicos a uma doença? A “doença”, como tal, não sente, não sofre, não significa, exceto metaforicamente. Tais atribuições não podem ser discretas, como uma doença orgânica, por isso a atribuição sempre remete, invariavelmente, a uma totalidade, no caso, à pessoa doente.

Na medicina, a etiologia revela o invisível, mostrando que o visível é apenas epifenômeno. O comportamento patológico é a manifestação de causas ocultas, reveladas pela ciência médica. Mas a psiquiatria, justamente por não ter um consenso etiológico (afinal, qual é a causa da loucura?), é uma medicina de sintomas. Jamais escapou do comportamento. Nunca se libertou de uma compulsão classificatória -- vide seus manuais de “Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais” (DSM) e suas classificações nosológicas. Como deduzir, dessa forma, patologias do comportamento? Como evitar confusões no campo do significado, isto é, entre o normal e o anormal, entre o anormal e o patológico? Como evitar a transformação da psiquiatria numa máquina de etiquetagem, num empreendimento moral?

Sinceramente, não sei.

Por que isso acontece? Tenho algumas hipóteses. Resumo algumas:

sábado, 1 de outubro de 2011

Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE: Humano, Demasiado Humano



Por Cynthia Hamlin


No dia 29 de setembro de 2011, cerca de 100 estudantes da UFPE foram à reitoria protestar contra o que consideram a ausência de uma política institucional em relação à ocorrência de suicídios  no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Embora tenham sido colocadas grades nas varandas de todos os andares do prédio, foram registrados 3 casos no ano de 2011, o que atestaria a insuficiência das medidas adotadas.

 A iniciativa dos estudantes é importante e revela a necessidade de se pensar coletivamente a solução não apenas deste, mas de uma série de problemas relativos a segurança, espaços de convivência, funcionamento dos elevadores, más condições das salas de aula, para ficarmos apenas no âmbito do CFCH. Apesar disso, uma política de prevenção de suicídios eficaz pressupõe clareza acerca da relação entre os suicídios e os diversos problemas que atingem a comunidade do CFCH e da UFPE, como um todo. E é aí que as dificuldades começam.

O suicídio é um fenômeno complexo que pode envolver fatores de diversas ordens - biológica, psicológica, social e cultural - e deve ser entendido como um processo, mais do que como um simples ato. Isso significa dizer que, ainda que ocorra em um local e momento específicos, pode estar associado a processos de médio e longo prazo, como a depressão, o abuso de drogas, a doença mental. Esses processos não ocorrem em um vácuo social, estando associados a determinados contextos que podem atuar, ora como causa, ora como efeito, ora como reforçando-se mutuamente: o ambiente familiar, o tipo de relações entre os grupos de pertencimento e outros grupos, relações interpessoais etc. Por fim, ocorrem em um lugar específico que, além de representar ocasião ou contexto para o ato em si, pode estar associado  ao uso de métodos particulares que frequentemente carregam um conteúdo simbólico e comunicativo (Hamlin & Brym, 2006; Brym & Hamlin 2009).

Generalizações - especialmente as de base reducionista e construídas sobre um número insuficiente de casos que fundamentam argumentos do tipo: “estudantes de ciências humanas são mais propensos ao suicídio”, ou  “a ‘desumanização’ do campus e do CFCH tem contribuído para os suicídios observados” – frequentemente se baseiam em associações causais que não se sustentam, ou entre elementos que estão tão remotamente associados que não podem servir como guia para nenhuma política de prevenção séria.  Ao contrário, terminam gerando estigmas que, esses sim, podem atrair mais pessoas para escolherem o CFCH como local para dar cabo à própria vida na medida em que estabelecem uma associação simbólica entre o prédio e o suicídio. (Falo aqui de uma associação simbólica apenas na medida em que existe, na cidade do Recife, uma série de outros edifícios com características estruturais semelhantes ao CFCH. Isso não significa dizer que elementos simbólicos seriam os únicos, ou mesmo os mais importantes, na escolha de um local qualquer).

Dado que argumentos como os acima, apresentados com graus de sofisticação variável, tem sido os mais comuns, torna-se fundamental esclarecer alguns pontos.

Em primeiro lugar, o estigma que vem sendo associado aos estudantes de humanas e ao prédio do CFCH baseia-se no pressuposto de que os suicidas, em sua maioria, consistem em estudantes da UFPE, particularmente os de humanas. Isso não parece ter fundamento. Uma rápida observação dos registros, efetuados pela Direção do CFCH, relativos ao suicídios ocorridos desde 1997 sugere que poucos eram estudantes da UFPE. Digo “sugere” porque os dados a que tive acesso são insuficientes. (Havia lacunas no registro disponível, de forma que solicitei à Direção do Centro um registro mais completo, desde o ano de 1997 - quando a Universidade passou a efetuar o registro sistemático dos casos. Aguardemos, pois. E cobremos).

Em segundo lugar, e relacionado à questão anterior, impedir a cristalização do estigma implica a celeridade da instituição, por meio de sua Assessoria de Comunicação, em desmentir falsos boatos acerca do suicídio de estudantes. Isso é especialmente importante diante do poder das redes sociais contemporâneas na disseminação de boatos. Vejamos.

No dia 28 de setembro último, o Jornal do Commércio publicou uma matéria na qual pelo menos duas das informações fornecidas não procediam. Primeiro, afirma que ocorreram quatro suicídios no CFCH este ano (foram três - já não é ruim o suficiente?); segundo, afirma que o último caso ocorrido envolvia uma aluna da UFPE, mais especificamente, do Curso de Ciências Sociais. Até o momento em que escrevo, três dias após a divulgação da notícia pelo Jornal do Commércio, não vi a Universidade se manifestar publicamente a fim de desmenti-la.

Além de contribuir para o referido estigma, ao se omitir de ações como esta a Universidade está contribuindo para um outro fenômeno, que em sociologia se denomina de “pânico moral”. O pânico moral assume as seguintes características:

Uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge e passa a ser definido como uma ameaça a valores e interesses sociais; sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotípica pelos meios de comunicação de massa; as barricadas morais são erigidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas cujas opiniões são consideradas sensatas e moralmente corretas [right-thinking people]; peritos socialmente reconhecidos pronunciam seus diagnósticos e soluções; a condição depois desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se mais visível. [...]. Algumas vezes o pânico passa e é esquecido, exceto no folclore e na memória coletiva; outras vezes, tem repercussões mais sérias e duradouras e pode produzir mudanças legais e em políticas sociais, ou mesmo na forma como a sociedade se autoconcebe (Cohen, citado em Thompson, 1998: 7).

Assim como ocorre na maioria dos casos de pânico moral, a visibilidade da situação real e sua resolução são especialmente difíceis porque envolvem um tema considerado tabu. Se o filósofo francês Edgar Morin (1968)  já afirmava que, após a revolução sexual, a morte permaneceu como o último grande tabu do século XX, talvez caiba aqui uma hipérbole: a morte por suicídio é o tabu que não ousa dizer seu nome. Isso explica, em parte, o silêncio da Universidade em relação ao tema. Outra parte do silêncio poderia ser explicada por meio da referência a um fenômeno que ficou conhecido como “efeito Werther”.

O efeito Werther refere-se à onda de suicídios observada entre os jovens românticos, especialmente na Alemanha, após a publicação do romance de Goethe - Os Sofrimentos do Jovem Werther - que de certa forma glamourizava o suicídio ao caracterizá-lo como um ato de coragem. O fenômeno caracteriza, assim, o elemento de difusão ou contágio do suicídio a partir de sua menção ou divulgação – um fenômeno que tem servido como fundamento de uma espécie de código de ética entre jornalistas do mundo inteiro.

Embora tenha afirmado que “não há dúvida de que a ideia do suicídio se transmite por contágio”, Durkheim (2000: 138) teve o cuidado de definir o contágio em termos de imitação e delimitar em que sentido este último poderia ser legitimamente aplicado ao estudo do suicídio:

Há imitação quando um ato tem como antecedente imediato a representação de um ato semelhante, anteriormente realizado por outros, sem que entre essa representação e a execução se intercale nenhuma operação intelectual implícita ou explícita, sobre as características intrínsecas do ato reproduzido.

Isso significa que o suicídio por imitação tende a ocorrer na ausência de reflexão - o que aponta para a necessidade de fazer as pessoas expostas ao suicídio, como é o caso dos nossos alunos, refletirem sobre o assunto. E o silêncio certamente não é a forma mais apropriada de gerar uma reflexão informada.

Por outro lado, existem controvérsias consideráveis acerca do alcance dos processos imitativos na explicação das taxas de suicídio. O próprio Durkheim atribuía um alcance limitado ao suicídio por imitação, afirmando que “do fato de que o suicídio possa transmitir-se de indivíduo para indivíduo, não se segue a priori que [...] ela afete a taxa social de suicídios”(Ibid: 143). E utilizava como argumento a ideia de que, se o contágio tivesse uma influência marcante nas taxas de suicídio, dever-se-ia observar um fenômeno de concentração dessas taxas em determinados núcleos geográficos (por ex., o centro das cidades) e uma diminuição gradual dessas taxas à medida em que se afasta desses núcleos. Traduzindo para o nosso caso, ao longo de um período relativamente extenso, deveria ser possível observar um número relativamente elevado de suicídios entre estudantes, professores e funcionários da UFPE, em particular os diretamente expostos ao suicídio, em comparação com suicidas oriundos de outras áreas da cidade. Como vimos, este não parece ser o caso. Mas aguardemos mais informações antes de fazermos quaisquer afirmações categóricas neste sentido. (Abro aqui um parêntese para enfatizar fortemente que não estou usando este argumento para defender a ideia de que, se não altera as taxas de suicídio entre os membros da UFPE, a difusão não deve ser considerada em uma política interna de prevenção de suicídios. Um único caso é um caso em excesso. O que estou argumentando é que esse risco deve ser combatido por meio da reflexão informada, já que a exposição ao suicídio é um fato concreto, pelo menos no momento).

O argumento de Durkheim não foi consensualmente aceito e a controvérsia continuou. Nas décadas de 1970 e 1980, o sociólogo David Philips publicou uma série de artigos sobre o tema. O principal deles foi resumido por outro sociólogo, Ira Wasserman (1984: 427), da seguinte forma:

Empregando um método quasi-experimental para examinar a influência que as estórias de suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times entre 1947 e 1968 tiveram nos padrões de suicídio nos meses seguintes, Philips (1974) formulou um novo teste para a teoria da imitação. Contrariamente a Durkheim, encontrou um aumento significativo no número de suicídios no mês que se seguiu ao aparecimento dessas estórias no New York Times.

Ao submeter a hipótese da imitação a teste novamente, Wasserman (Ibid.) efetuou um estudo com base em uma série de modelos que o permitiram controlar fatores exógenos, como a influência dos ciclos de negócios e das crises econômicas nos resultados observados por Philips.  Concluiu que não havia correlação significativa entre a taxa nacional de suicídios e as estórias sobre suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times no período 1947-1977. Por outro lado, ao aplicar seu modelo apenas às manchetes relacionadas a “celebridades”, observou uma correlação significativa entre as estórias contadas a partir de tais manchetes e um aumento nas taxas de suicídio no mês subsequente à sua publicação. Isso significa que a hipótese de Philips é mais limitada do que ele supunha, isto é, tende a ser corroborada nos casos de reportagens sobre o suicídio de celebridades.

A isto, a Organização Mundial de Saúde menciona outras conclusões importantes, retiradas de outras pesquisas: primeiro, que o impacto da cobertura jornalística na mídia impressa e televisiva tende a ser maior entre pessoas jovens; segundo, que não são as notícias per se que geram um aumento nas taxas observadas, mas a forma como os suicídios são noticiados para as populações vulneráveis (de maneira sensacionalista, com excesso de detalhes, oferecendo explicações simplistas ou sugerindo que o fenômeno é inexplicável, glamourizando o ato ou transformando a vítima em mártir, caracterizando o suicídio como única saída possível, omitindo a dor de familiares e amigos, dentre outros).

Assim, ao contrário da ideia simplista de que os suicídios não devem ser noticiados a fim de evitar sua difusão por contagio ou imitação, num documento de prevenção do suicídio direcionado a profissionais da mídia (World Health Organization, 2000: 6) enfatiza-se que “certos tipos de cobertura [jornalística] podem ajudar a prevenir a imitação do comportamento suicida”. O documento enfatiza ainda que “sempre existe a possibilidade de que a publicização do suicídio possa tornar a ideia de suicídio ‘normal’. A cobertura contínua e repetida do suicídio tende a induzir e a promover preocupações suicidas, particularmente entre adolescentes e adultos jovens.” (Ibid). Neste sentido, a conclusão geral é a de que  
reportar os suicídios de uma maneira apropriada, acurada e potencialmente útil pela mídia esclarecida pode prevenir a perda trágica de vidas pelo suicídio.  (Ibid.).
Dada a exposição a que temos sido submetidos ao suicídio na UFPE, o poder das novas mídias em difundir boatos que são reforçados pelas mídias tradicionais e a situação de pânico moral que isso ajuda a difundir, o silêncio da UFPE em torno do tema não contribui em nada para a resolução desta situação: ao contrário, tende a perpetuá-la e a gerar uma série de problemas associados à ansiedade, ao sentimento de insegurança e aos conflitos que decorrem deles.

Para o bem ou para o mal, o suicídio não pode mais ser tratado como um tabu entre nós, mas como algo “humano, demasiado humano”. Já está mais do que na hora de começarmos a falar sobre assunto de forma clara, informada e responsável. Façamos, cada um de nós, a nossa parte.

(a ser editado)

Referências

Brym, Robert J.; Hamlin, Cynthia Lins. (2009) “Suicide Bombers: Beyond Cultural Dopes and Rational Fools”. In: Cherkaoui, Mohamed; Hamilton, Peter. (Org.). Raymond Boudon: A Life in Sociology: Essays in Honour of Raymond Boudon. 1 ed. Oxford: The Bardwell Press, v. 2, p. 83-96.
Durkheim, Émile (2000). O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes.
Hamlin, Cynthia Lins; Brym, Robert J. (2006) The Return of the Native: A Cultural and Socio-Psychological Critique of Durkheim's Suicide based on the Guarani-Kaiowá of South-Western Brazil. Sociological Theory, Estados Unidos, v. 24, n. 1, p. 42-57.
Morin, Edgar (1951) L’Homme et la mort. Paris: Éditions du Seuil.
Thompson, Kenneth (1998). Moral Panics. Londres e Nova York: Routledge.
Wasserman, Ira M. (1984). Imitation and Suicide: a reexamination of the Werther effect. American Sociological Review, V. 49, June, p. 427-436.
 World Health Organization (2000). Preventing Suicide: a resource for media professionals. Genebra: Mental and Behavioural Disorders, Department of Mental Health, WHO.