terça-feira, 15 de novembro de 2011

Compreensão antropológica e objetivação participante: mais um estudo de cazzo sobre a sociologia reflexiva de Bourdieu



O delicado equilíbrio entre a objetividade e o tornar-se nativo na compreensão da alteridade


Por Gabriel Peters – Doutorando em Sociologia (IESP/UERJ)

O contato das sociedades ocidentais em expansão colonial e imperial com povos dotados de padrões de conduta significativamente diferenciados daqueles vigentes no Ocidente forneceu o impulso histórico à constituição da antropologia como disciplina intelectual. Esta elegeu aqueles povos como seu objeto de estudo, tomando-os como “primitivos” (em termos de uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico), “simples” (a partir de um conceito de complexidade social baseado em determinados critérios analíticos, tais como nível de diferenciação institucional) ou ainda, mais recentemente, simplesmente como “outros” do ponto de vista sociocultural. É necessário advertir, entretanto, que, tal como acontece com sociólogos e filósofos, uma parte essencial do que fazem os antropólogos é definir e redefinir (ad infinitum?) aquilo que fazem. Nesse sentido, entraríamos em território muito mais controverso caso partíssemos desta quase consensual referência histórico-descritiva à antropologia como universo disciplinar e arriscássemos uma definição mais ostensivamente epistêmica. Por exemplo, a própria tese de que a antropologia estaria necessariamente voltada ao estudo da alteridade social e cultural (a ideia da antropologia como uma espécie de sociologia do outro, enquanto a sociologia seria algo como a antropologia do mesmo) parece por demais restritiva ao excluir de seu alcance a estratégia heurística de antropólogos como Louis Dumont, que mobilizam achados oriundos de seu trabalho de pesquisa em contextos sociais que lhes são estrangeiros para jogar uma luz nova e inesperada sobre o próprio universo sociocultural em que estão imersos (no caso de Dumont, o Ocidente moderno permeado pela ideologia individualista [e.g., Dumont, 1997; 2000]).

O caso de Bourdieu é algo similar. Foi após seu treinamento acadêmico formal como filósofo que ele se voltou para as ciências sociais, desembocando na sociologia em seguida aos trabalhos de investigação etnológica que dedicou à sociedade argelina, cruciais para a crítica imanente do estruturalismo que resultaria na sua teoria praxiológica do mundo social. A singularidade de sua trajetória intelectual teve como conseqüência um modus operandi sociocientífico que faz da “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) um elemento constitutivo da própria sociologia. Como Dumont, Bourdieu passou a fazer uso de insights sobre a agência humana e a vida social obtidos no estudo de contextos sociais dos quais não era nativo para interrogar-se, de maneira mais reflexiva, crítica e criativa, acerca do próprio ambiente societário em que estava imerso. Um exemplo claro dessa manobra é o procedimento pelo qual o autor se apropria da tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais objetivas e estruturas mentais de percepção do mundo, transpondo-a da análise das chamadas sociedades “primitivas” para o próprio estudo da sociedade francesa contemporânea (Bourdieu, 2007), bem como do campo científico onde ele mesmo se situava como um “jogador” estruturalmente posicionado (Bourdieu, 1988).

Como membro orgulhoso de uma tradição de teoria crítica da dominação atenta aos mecanismos sócio-simbólicos por meio dos quais condições de existência historicamente contingentes são vivenciadas e reproduzidas como ordenamentos naturais e evidentes das coisas para o senso comum, sua obra dá testemunho de que uma percepção desnaturalizante das configurações sociais pode ser mais facilmente alcançada a partir do momento em que a cientista social torna-se capaz de situar-se, ao menos intelectualmente, em múltiplos universos de experiência humana. A passagem pela antropologia também é relevante para a reflexão sobre os desafios metodológicos colocados à interpretação dos estados subjetivos e manifestações comportamentais dos atores humanos. A antropologia cultural impôs aos seus praticantes uma tarefa semelhante àquela enfrentada pelos historiadores que serviram de base para as epistemologias da compreensão de Dilthey e Weber, qual seja, a penetração em visões de mundo que se apresentam ao pesquisador, de início, como estranhas e aparentemente ininteligíveis. O tocante (ou ao menos fofucho) discurso de Malinowski ao final de sua obra magna (1976) evidencia uma postura metodológica aparentada à visão diltheyana, postura que se reflete no seu compromisso último com a captação do “significado íntimo e...realidade psicológica de tudo que, numa cultura diferente, é superficialmente estranho e compreensível à primeira vista” (Op.cit: 374). Tal captação, continua o antropólogo polonês, estaria calcada na diligente coleta de dados propiciada pela imersão etnográfica, mas seria dependente também de certa disposição de espírito por parte do etnógrafo.

Segundo a leitura contemporânea de Geertz, o acento de Malinowski sobre as qualidades de sensibilidade necessárias à compreensão antropológica do ponto de vista nativo contribuiu para a criação de um mito: o “mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (1997, p.85). Ironia da história: a publicação póstuma e não autorizada de Um diário no sentido estrito do termo (Malinowski, 1997), em que o etnógrafo polonês dava livre curso à expressão de toda espécie de insatisfações intensas em relação aos nativos com quem convivia, serviu como demonstração acachapante da implausibilidade do mito segundo o qual o conhecimento da forma nativa de pensar e sentir o mundo deriva, em última instância, de “algum tipo de sensibilidade extraordinária” (Geertz, 1997, p.86). Rejeitado este caminho, resta a questão: “o que acontece com o verstehen [a compreensão] quando o einfühlen [a empatia] desaparece?” (idem). Substituindo qualquer concepção psicologizante de produtos culturais como expressões de intenções e qualidades mentais inefáveis por uma perspectiva textualista (Reckwitz, 2002, p.248; Peters, 2011: 324) que os toma em seu caráter publicamente encarnado em eventos, símbolos e condutas humanas, o antropólogo estadunidense ensaia uma resposta hermenêutica, concebendo o entendimento antropológico em termos de diálogo e tradução intercultural voltados ao ideal da “fusão de horizontes” (Gadamer, 1997, p.457) entre pesquisador e pesquisados.

A despeito de sua partilha do ceticismo de Geertz no que toca a artifícios empáticos como a “reprodução psíquica” (Dilthey) ou a “transferência intencional sobre o outro” (Husserl), Bourdieu rejeita não apenas a proposta geertziana, mas também, e ainda mais causticamente, as versões radicalizadas e pós-modernizantes do interpretativismo que desembocaram em uma estirpe particular de antropologia “reflexiva” (Marcus e Clifford, 1986). Animadas por “considerações falsamente sofisticadas sobre ‘o processo hermenêutico de interpretação cultural’ e a construção da realidade através da etnografia”, estas correntes teriam levado a “uma explosão de narcisismo” em resposta à “repressão positivista” (Bourdieu, 2003b, p.282) que outrora obstava a expressão narrativa da etnografia como experiência particular de uma subjetividade parcial e situada.

Opondo-se en bloc ao subjetivismo empático, ao dialogismo hermenêutico, ao objetivismo estruturalista e, finalmente, ao apelo à “reflexividade narcísica da antropologia pós-moderna” (Op.cit, p.281), o sociólogo francês advoga um procedimento de “objetivação participante” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.253; 2003b) baseado no diagnóstico sociocientífico das condições, inseparavelmente sociais e epistêmicas, de teorização e pesquisa acerca de um contexto sociocultural estrangeiro. Este caminho metodológico representa a aplicação específica, na investigação etnológica, da inflexão particular que Bourdieu empresta à reflexividade epistêmica nas ciências sociais, capazes de aplicar ao entendimento de si próprias os instrumentos de objetivação cunhados no seu interior para a elucidação de outras realidades empíricas (Bourdieu, 1993b, p.274).

Voltada, assim, à objetivação da relação subjetiva que o antropólogo mantém com seu objeto e das condições sociais de possibilidade de tal relação, a etnografia reflexiva advogada por Bourdieu não leva “a um subjetivismo relativista ou mais ou menos anticientífico” que deságua na tese derridiana de que “tudo é...nada além de...texto”. A objetivação participante é pensada, ao contrário, como uma estratégia metodológica para a conquista da “objetividade científica genuína” (Bourdieu, 2003b, p.282). O retorno reflexivo do sujeito objetivador sobre suas próprias categorias de entendimento, bem como sobre os interesses que motivam seu trabalho de objetivação, permitiria a ele controlar as influências distorcivas de tais pressupostos e interesses sobre o retrato do universo societário que ele pretende construir.

Nesse ponto, críticos poderiam evocar o lukácsiano Michael Löwy (1994), que comparou pitorescamente a ideia de que a objetividade do conhecimento poderia ser obtida através de um mero ato de boa vontade intelectual ao fantástico feito em que o famoso mitomaníaco Barão de Munchausen escapara do pântano em que afundava puxando a si próprio pelos cabelos. No entanto, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera introspecção ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia retrucar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para sair do pântano de seus preconceitos sociocognitivos:
Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 2001: 5-6).
Para oferecermos um exemplo, vejamos as investigações de Bourdieu sobre as estratégias matrimoniais na sociedade Cabila (Bourdieu, 1977; Bourdieu, 1990b). Naturalmente, ele aqui denuncia com veemência a abolição fictícia da distância epistêmica e social entre pesquisador e pesquisados pelo mero recurso à observação participante, como se fosse preciso apenas uma intenção sincera para colocar-se em pensamento e experiência no lugar do nativo. O mestre francês afirma que o necessário para se “aproximar” verdadeiramente do nativo é objetivar reflexivamente todos os pressupostos tacitamente inscritos na própria situação de objetivação exterior e distanciada. Isto vale, em particular, para o abismo que separa o etnógrafo - que busca decodificar atos, eventos e símbolos por meio do entendimento explícito - e o nativo - um “ser-no-mundo” (Heidegger) continuamente engajado nas respostas às demandas práticas urgentes do mesmo, apoiando-se em um entendimento tácito, ao mesmo tempo infraconsciente e imediato, do universo em que está imerso. Estando fora do teatro do qual é espectador, o pesquisador estrangeiro está tentado a perder de vista as limitações analíticas acarretadas por essa distância, as quais ele só tem condições de superar retornando, por um esforço auto-reflexivo, à sua experiência de ator situado no seu próprio mundo – portanto, descobrindo o “nativo” dentro de si e inserindo em sua teoria da prática uma teoria da diferença entre um relacionamento teórico e um relacionamento prático com o universo social. A ignorância irrefletida de tal diferença leva o antropólogo projetar inadvertidamente sua relação desprendida com o mundo etnografado na mente do próprio nativo, o que dá ensejo, segundo Bourdieu, a diversas formas da “falácia escolástica” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.123) - por exemplo, as caracterizações intelectualistas das motivações da conduta individual que assumem na teoria da escolha racional ou no “legalismo” artificial que supõe da parte dos atores uma conformidade consciente com normas explicitamente estatuídas (Bourdieu, 1990a, p.21).

Portanto, a “familiarização do exótico” reclamada para a apreensão do ponto de vista nativo deveria ser perseguida, segundo o sociólogo francês, não por meio da imersão empática pura e simples na sociedade indígena ou de uma situação hermenêutica de “fusão de horizontes” interpretativos, mas sim por uma objetivação participante, capaz de ultrapassar tanto a “imersão mistificada” quanto o objetivismo do “olhar absoluto” preconizado pelo seu mestre estruturalista Lévi-Strauss (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.68). Além disso, o procedimento duplo de objetivação simultânea do objeto e da relação (social e epistêmica) do sujeito cognoscente com tal objeto não reclama apenas um novo percurso para a familiarização do exótico, no caso da investigação de contextos sociais estrangeiros ao cientista social. Ele também importa no processo correspondente de “exotização” ou estranhamento metodologicamente construído do familiar nas situações em que os pesquisadores estudam os próprios universos em que estão imersos - em particular, é claro, o terreno onde é constituído e atua o Homo academicus, título de um estudo (1988) que constitui, nesse sentido, tanto uma análise histórico-sociológica substantiva do mundo universitário francês quanto um exercício experimental de método.

Seja no caso da familiarização, seja no da exotização do objeto, o que está em jogo é a tentativa de explicar e explicitar as dimensões motivacionais e recursivas das práticas sociais que são invisíveis à cognição consciente dos agentes, precisamente por serem taken for granted, como diria Schutz. A dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta, assim, em uma abordagem que combina ambas as formas pelas quais a sociologia buscou tradicionalmente iluminar o saber de senso comum: a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo, isto é, “pelas suas costas”, à revelia de sua volição e consciência, ou precisamente através da moldagem socializante de seus interesses volitivos e “hábitos diretrizes da consciência” (Mauss); b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores que operam em nível implícito ou tácito.

É claro que a proposta de Bourdieu não está isenta de problemas, mas, se ainda estiver vivo, falarei sobre isso em outro post.

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Bibliografia
BOURDIEU, P. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
________Homo academicus. Stanford: Stanford University Press,1988.
________Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990a.
_______The logic of practice. Stanford: Stanford University Press, 1990b.
________Lições da aula. São Paulo, Ática, 2001.
_______Participant objectivation. Journal of the Royal Anthropological Institute, v.9, n.2, p.281-294, 2003b.
________A distinção: crítica social do julgamento do gosto. São Paulo/Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007.
BOURDIEU, P; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (eds). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.
DUMONT, Louis. (1997), Homo hierarchicus. São Paulo: Edusp.
________(2000), Homo aequalis. São Paulo: Edusc.
GADAMER, H.G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997.
GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997.
KURASAWA, F. The ethnological imagination: a cross cultural critique of modernity. University of Minnesota Press, 2004
LOEWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen. São Paulo: Cortez, 1994.
MALINOWSKI, B. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
________Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.
PETERS,G. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu
--> http://uerj.academia.edu/Gabrielpeters/Papers/404388/Percursos_na_teoria_das_praticas_sociais_Anthony_Giddens_e_Pierre_Bourdieu . 2011. 
RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, V.5, N.2, p. 243-263, 2002.

18 comentários:

Cynthia disse...

Desculpa aí, Gabriel (não tem nada a ver com o seu post), mas o Cazzo está com uma espécie de síndrome de Zellig. Vez por outra muda de cor e de fonte e, embora na "visualização" apareça como deveria, na "publicação" aparece de forma completamente diferente. Alguém sabe como consertar isso?

Le Cazzo disse...

No meu computador, a visualização está perfeita, Cynthia. Jonatas

Cynthia disse...

Muito bom texto, Gabriel. Mas fico me perguntando se o que você oferece como resposta não deveria ser justamente o ponto de partida.

Afirmar que "a dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta ... em uma abordagem que combina ... a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo ... e b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores..." não pressupõe justamente o que precisa ser explicado? E, no caso de Bourdieu, creio que o segundo ponto levantado por você é particularmente difícil de ser alcançado por meio de sua "sociologia reflexiva".

Cynthia disse...

Foi mal, Gabriel, mas não resisti à piada de uma praxiologia do mundo animal...

Gabriel Peters disse...

Querida Cynthia,

Eu deveria saber de antemão, ao enviar o texto para esse cazzo, que a seriedade mortal da temática seria irresponsavelmente neutralizada por alguma espécie de tratamento leviano e irreverente. Na linha de discussão pós-especista sobre a questão neo-spivakiana “pode o animal falar?”, este vídeo vai além do ventriloquismo epistemológico, já devidamente denunciado pelos críticos de Althusser, e documenta diversas manifestações de eloqüência canina, normalmente exprimindo carência materna : http://www.youtube.com/watch?v=Td9ndmvMu1U

Cynthia disse...

Gabriel, você está me chamando de irresponsável e leviana???? Tá legal, o vídeo foi maldade com Bourdieu (vou chamar Nicole para te defender!). Mas pelo menos é engraçadinho, né? Ao contrário dessa aberração que você linkou aí. Quem faz uma maldade dessas com um cachorro?

Bj

Alyson Freire disse...

Bem, antes tecer comentários mais sérios ao ótimo texto de Gabriel, e como sei que o Cazzo tem um pé no humor e o próprio Gabriel coloca pitadas em seus textos por aqui, creio que vocês não hão de se incomodar com a brincadeira que tiramos com os Bourdiesianos mais ortodoxos por aqui em Natal.

Trate-se da Igreja dos Bourdistas dos Últimos Dias, cuja oração celestial é:


Pai Bourdieu que estais no campo,
santificado seja o vosso habitus,
vem a nós o vosso poder simbólico ,
seja feita a vossa sociologia
assim na França como no Brasil.
A Distinção de cada dia nos daí hoje,
perdoai-nos as nossas críticas,
assim como nós perdoamos
a quem são da Doxa,
não nos deixei cair em tentação da violência simbólica
mas livrai-nos de toda sociologia espontânea.

Amém.
hehehe

Alyson Freire disse...

Agora vamos ao sério. Primeiro, parabéns pelo texto, é muito interessante esse debate entre Bourdieu e a antropologia. Tem um antropólogo, Paul Rabinow, que foi bastante influenciado por Bourdieu e a quem o próprio respeita bastante por seu trabalho no Marrocos, prefaciado por Bourdieu salvo engano.

Mas o que eu queria mesmo lhe perguntar é em relação as críticas a Bourdieu. Você tem algum texto revisando estas?

Li recentemente um bom trabalho de Michael Burawoy - O marxismo encontra Bourdieu - no qual o autor estabelece diálogos imaginários entre pensadores marxistas (Gramsci) e Bourdieu. Burawoy tem uma postura fantástica nesse livro no qual na medida em que reconhece a força da sociologia de Bourdieu tenta, criticando-a em alguns pontos, encorpá-la mais a partir de sínteses - e alguns omissões - via o marxismo. Apesar da consistência, criatividade e clareza dos argumentos de Burawoy não sei se o marxismo é a melhor tradição para se buscar essas sínteses. Parabéns pelo texto! Abraços,

Tâmara disse...

Rapaz,
Considerando a convicção religiosa dos bourdistas dos últimos dias que exala dessa oração, como também estes tempos sombrios inspiradores de fundamentalismos, acho que o perigo é o de um conflito religioso com os marxistas dos primeiros dias...
Falando sério, e me metendo na caçarola de Gabriel, não acredito que uma síntese da sociologia de Bourdieu via marxismo seja muito pertinente. Bourdieu já é um sociólogo explicitamente sintético e, penso, tanto se encontra Marx como Durkheim (confesso que vejo este demais) e Weber. Melhor dizendo, pode-se também ler Bourdieu via Durkheim ou Weber (e esqueci outra influência fundamental: Lévi-Strauss!), mas acho que uma leitura interna dos problemas teórico-metodológicos bourdieusianos, assim como a comparação entre seu arcabouço teórico e a pesquisa empírica, são mais interesantes do que esssa tentativas de subsumi-lo sob uma ou outra de suas referências. Abraço

Alyson Freire disse...

Tâmara,

Marxistas dos "primeiros dias", foi hilário...

Estou de acordo com você também com respeito a pertinência de uma síntese entre Bourdieu e o marxismo, embora o diálogo com Gramsci, praticamente não citado por Bourdieu - pelos menos até onde conheço este último - possa ser algo frutífero. Bourdieu é bastante sintético, e aos nomes que você citou, ainda há outros de peso como Wittgenstein e Bachelard, centrais para sua noção de prática e epistemologia, respectivamente.

De todo modo, o livro do Burawoy é instigante. Além, de Gramsci e do próprio Marx, Burawoy promove diálogos imaginários entre Bourdieu e Fanon, Wright Mills e Simone Beauvoir, sempre se posicionando criticamente, ora com Bourdieu, ora contra Bourdieu e a favor do marxismo.

Vale ainda dizer que, para a elaboração das aulas que mais tarde se converteriam no livro, Burawoy, sociólogo consagrado por etnografias em fábricas e presidente da Associação Internacional de Sociologia, e à pedido dos alunos, se matriculou nos cursos sobre Bourdieu de Luc Wacquant em Berkeley, onde também leciona. Uma bela atitude. Abraços,

Tâmara disse...

Alyson,
Devo admitir que guardo um ranço marxista, porque a oração celestial funcionou em mim como o ópio do povo, embotando meu entendimento - ou pelo menos minha percepção. Vi imediatamente hindus, muçulmanos e sirks, católicos e protestantes, etc., cujas interações muitas vezes são complicadíssimas, resistentes à teoria da ação comunicativa. Acabei de ler dois romances que tematizam essas pragas...E aí fui logo imaginando a potencialidade do conflito. Mas acho que tem lá sua adequação de sentido, essa distinção engraçada entre os dos últimos e os dos primneiros dias: o marxismo, por muitos desprezado por sua suposta dimensão teleológica quase messiânica, aponta para um horizonte positivo de renascimento; já o arcabouço teórico-metodológico de Bourdieu, talvez devido principalmente às suas referências durkheimiano-straussnianas, às vezes exerce em mim uma sensação de círculo fechado negativo: estruturas-estruturantes-estruturadas, ai meu Deus!, que desespero! Isso pode inspirar almas apocalíticas, doidas para que o mundo acabe. Costumo dizer que fico deprimida quando percebo o mundo parecendo com a descrição bourdieusiana...E o pior é que ando percebendo-o muito assim. Ou seja, não posso negar a força da sociologia de Bourdieu. Mas acho que minhas tendências religiosas tem mais afinidades com o anti-utilitarismo da Allain Caillé.
E você me convenceu sobre o livro de Burawoy - quem eu quis tanto conhecer no último congresso da SBS, mas que perdeu o avião e não apareceu. Abraço

Gabriel Peters disse...

Pessoas legais,

Com o perdão da mesóclise, valer-me-ei da distinção alysoniana:

1) Comentário (pretensamente) sério:

De fato, numa síntese que mobiliza, além da Santíssima Trindade da sociologia clássica, o racionalismo aplicado de Bachelard, a epistemologia relacional de Cassirer, os estruturalismos de Saussure e Lévi-Strauss, as fenomenologias de Husserl, Heidegger, Schutz e Merleau-Ponty, a microssociologia dramatúrgica de Goffman, a pragmática da linguagem do segundo Wittgenstein e tantas outras abordagens de mortos ilustres, acredito haver espaço para leituras que, sem se tornarem demasiado infiéis (sic), aproximem Bourdieu mais de um ou de outro autor. Dito isto, creio, como Loic Wacquant, que uma mirada panorâmica sobre a obra do (santo) Pierre evidencia um distanciamento crescente do marxismo que era tão influente em um livro como “A reprodução”.
A aproximação com Gramsci e com outras figuras do “marxismo ocidental” é compreensível, dado que a teoria da violência simbólica permanece sendo uma espécie de reformulação da visão marxista da ideologia com os instrumentos do “kantianismo sociológico” (Lévi-Strauss) de Mauss e tio Durkheim, atada ainda a uma visão weberiana da autonomia relativa das “ordens de vida” (ou campos), bem como das condições de produção da legitimidade da dominação. No entanto, sem poder desenvolver esse ponto em detalhe e permanecendo lamentavelmente no plano da asserção peremptória, não apenas concordo com a tese wacquântica de que a exegese da obra de Bourdieu revela um afastamento gradual do marxismo que era mais forte na sua “juventude” (latu sensu), mas creio também que essa desmarxização relativa tem de ser intensificada em nossa apropriação de sua obra. Nesse sentido, acho que vou mais pela linha da Tâmara e, pelo menos no que toca à proposta geral, sou cético em relação à empreitada de Burawoi.
De fato, meus estudos de Cazzo sobre Bourdieu soam quase acríticos em função de sua preocupação predominantemente interpretativa. Se me permitem a autopromoção, tenho um texto em que argumento que a tentativa bourdista (bourdieusiana, bourdieuriana, bourdiana, blá, blá, blá) de superação da antinomia subjetivismo/objetivismo não é bem sucedida e que a principal fonte disso é sua negligência da reflexividade do ator leigo. Et voilà: http://sociofilo.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2011/03/Habitus-reflexividade-e-neo-objetivismo-Peters.pdf

Se quiserem ler (por favor, não se sintam coagidos a fazê-lo), podem pular a seção sobre a “sociologia como arma de reflexividade”, a qual repete os argumentos, quando não as formulações mesmas, do texto anterior sobre “Bourdieu como auto-ajuda” que vocês (Cynthia, Tâmara, Alyson) leram e comentaram tão bem aqui.
Embora Margaret Archer tenha feito uma crítica similar ao déficit de reflexividade na caracterização bourdieusiana do agente, acho que a leitura de Bourdieu que ela avança é um tanto redutora e recai, por vezes, em visões demasiado intelectualistas dos motores subjetivos da conduta humana. Prefiro os esforços mais matizados de figuras como Dave Elder-Vass (não confundir com uma certa música de “A noviça rebelde”) e Keith Sayer, que apresentam uma compreensão bem sofisticada do continuum (intra)subjetivo entre habitus e reflexividade.

Gabriel Peters disse...

P.S do comentário (pretensamente) sério: quis dizer Andrew Sayer.

Comentário (pretensamente) engraçadinho:

Ótima oração bourdieusiana, Alyson! Se houvesse uma igreja marxista dos primeiros dias – e, de fato, aqueles eram os dias da inocência que terminaria aniquilada no sangrento século XX -, ela seria mais ou menos assim:

Pai Marx que estais no museu britânico,
santificada seja a vossa revolução,
venha a nós o vosso comunismo,
seja feita a vontade da história,
aqui na terra e não no céu.
O pão nosso de cada dia dai a cada um de acordo com suas necessidades,
perdoai os gulags soviéticos,
assim como nós perdoamos sua defesa do imperialismo britânico na Índia.
Não nos deixeis cair na tentação reformista,
mas livrai-nos da alienação.
Amém

Durkheim

Pai Durkheim que estais no céu,
santificada seja a vossa norma,
venha a nós o vosso rigor metodológico,
seja feita a vossa solidariedade,
assim na França como no Brasil.
O pão nosso de cada dia...a divisão social do trabalho dar-nos-á hoje,
perdoai as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem tenha ofendido a consciência coletiva.
Não nos deixeis cair em anomia,
mas livrai-nos do suicídio.
Amém

Weber

Pai Weber que estais no céu,
santificada seja a Marianne,
venha a nós o vosso conceito,
seja feita a vossa neutralidade,
em Heidelberg como no céu.
O lucro nosso de cada dia seja asceticamente reinvestido na produção,
perdoai os nossos profetas de cátedra,
assim como nós perdoamos seu partidarismo desavergonhado na Primeira Guerra Mundial.
Não nos deixeis cair em depressão,
mas livrai-nos do colapso nervoso.
Amém.

Seria possível burilar e melhorar tais orações, mas minha cara de pau tem limites (por enquanto). Abração

Tâmara disse...

Gabrel,
Você é um luxo. Abraço

Alyson Freire disse...

Gabriel,

Você se superou dessa vez, rsrs. E o riso, como diria o Zaratustra de Nietzsche, é arma mais cortante contra a dogmatização, pois dessacraliza qualquer fé, ridiculiza ídolos e outras pretensões sublimes. Abraços,

PS. Simmel é tão escorregadio que até quando é pra ser satirizado escapa, talvez porque fosse, dos clássicos, o mais elástico, fragmentado.

Cynthia disse...

Hahaha!

Cynthia disse...

E antes que eu me esqueça, Andrew Sayer tem uma vantagem sobre a Maggie Archer: é um grande dançarino de salsa.

Nicole Pontes disse...

Epahei pai Bourdieu! Bonito texto Gabriel!