Por
Wellthon Leal
No dia 20 de janeiro de 2012 estudantes e trabalhadores se encontraram em frente ao histórico Colégio Pernambucano, para protestar contra mais um aumento de passagem do transporte “público” do atual governo de Eduardo Campos. Para surpresa de todos os manifestantes presentes, no momento em que caminhávamos em direção ao palácio do Governador, a tropa de Choque lançou bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e spray de pimenta nas pessoas que participavam do ato pacifico. Foram atingidos desde pessoas que passavam nas ruas a cadeirantes e idosos que estavam no ato protestando lado a lado.
Sobre esse primeiro ataque do Estado “legítimo”, vale lembrar a montagem inescrupulosa que a Rede Globo Nordeste fez, ao filmar um estudante revidando aos ataques do Choque com uma pedra, acusando durante o Jornal Nacional de ter “atacado” um grupo de 50 homens, armados com escudos e capacetes, e a força policial teria simplesmente reagido ao ataque dos “violentos” estudantes. Uma discussão sobre a mídia seria realmente interessante a ser feita não apenas desse episódio como em toda repercussão que a mídia tem feito em relação aos protestos recentes que tem ocorrido no Recife. Se bem que isso não é o foco do que pretendo discutir aqui, mas acho fundamental olhar para a repercussão midiática, com atenção para sinalizar e compreender de melhor maneira o que ocorre de fato com a movimentação política no Estado de Pernambuco.
O outro episódio sabido por todos, sobretudo os acadêmicos da UFPE, foi após a dispersão dos manifestantes que iam ao palácio do governo; esses se refugiaram na Faculdade de Direito do Recife (FDR) como meio de dialogar entre si o andamento do protesto, já que ali num espaço sob jurisdição federal seria possível se refugiar dos PMs que estavam prendendo sem motivos algumas pessoas presentes no ato. Tentando dar andamento a manifestação, estudantes saíram da FDR, permanecendo em frente ao espaço federal para protestar.
Mas novamente a tropa de Choque atirou balas de borrachas em manifestantes porque estes estavam atrapalhando a ordem da cidade. Ao entrar na FDR, a surpresa pela violência policial continuou, o Choque jogou bombas dentro do espaço federal, e atirou em estudantes que estavam dentro da UFPE. Inclusive um aluno do Centro de Filosofia e Ciências Humanas foi atingido por uma bala de borracha no braço com uma distância pequena [1], outro manifestante foi socorrido por receber uma bala a curta distância no peito causando um sangramento intenso.
Estudantes em pânico e em choro gritavam contra a PM e se desesperaram ainda mais ao ver duas alunas da UFPE serem carregadas por PMs para serem presas porque estavam participando do protesto e não tinham conseguido correr para dentro da FDR. Ao assistir a cena, eu me indagava: como a Tropa de Choque fora autorizada pelo Governador para atacar um protesto pacifico? Como o Governador estava pouco se importando com as leis sobre liberdade de expressão, pelas quais tantas pessoas lutaram nesse país? Assisti uma cena de ataque a um espaço federal, algo que só ocorreu na ditadura, e assistia a isso assustado, tamanha a violência gratuita promovida pelo governador em quem votei.
Infelizmente a resposta dada pela Reitoria da UFPE sobre a invasão do seu Campus foi que “A DSI destaca ainda que, na área federal, não houve registros envolvendo manifestantes e servidores do CCJ/FDR e também não ocorreu dano ao patrimônio público, durante o episódio." Nota do Reitor Anísio Brasileiro [2]
Veja o vídeo do ataque a FDR:
Não é o que os jornalistas e 200 manifestantes dizem sobre o fato, e nem o que vídeos flagrantes do ataque do Choque mostram. Manifestantes foram, sim, atacados e atingidos dentro de um espaço federal. Ao ler essa nota do Reitor, me lembrei o quanto a preocupação política dos fatos vem tomando o lugar dos direitos básicos dos cidadãos.
Não apenas a atual gestão da UFPE tem feito vistas grossas à violência que ocorreu no dia 20 de janeiro, como também deputados da frente popular – a mesma que se considera “de esquerda” –, têm amenizado e acreditado nas versões manipuladas como a da Rede Globo Nordeste e do Diário de Pernambuco. Este último caracteriza que o problema de trânsito, cujos protestos causam, é mais impactante do que cobrar cerca de 170 reais mensais de trabalhadores do Recife num país cujo salário mínimo custa 622 reais, mas não indaga por que tanta gente usa carro e causa engarrafamentos.
As razões para se compreender o que se passa no Consórcio Grande Recife obviamente são menos importantes para parte da mídia, já que durante a reunião para se decidir sobre o aumento das passagens a imprensa não pôde acompanhar [5] e pouco se questionou a respeito. A liberdade de expressão de fato não apenas em Recife, como em todo país, é mediada pelo direito de o mercado pôr o que deseja na capa do jornal e pelos desejos dos partidos sejam de “esquerda” ou direita escolherem o que será destaque, além de que os partidos trabalham para garantir doações e acordos mais lucrativos para suas campanhas de manutenção de poder e aparelhamento do Estado. O povo é quem acaba sofrendo e recolhendo os resquícios que caem da mesa em que empresários e políticos tem se fartado.
A sociedade brasileira não questiona e não se indaga sobre os aumentos das tarifas dos transportes público. Esse fato só é problemático quando impacta na inflação de modo que atinja não apenas ao trabalhador que recebe 622 reais ou ao estudante que raramente tem uma bolsa de manutenção acadêmica, mas também aos que estão no alto do poder.
Portanto, segundo nossa sociedade, nossos partidos de “esquerda” e nossa mídia, a passagem cara é problema quando “baderneiros” (como bem diz a capa da Folha de Pernambuco de vide foto acima) saem às ruas para lembrar que não concordamos com a decisão que destina mais de 170 reais de cada trabalhador para as empresas de transporte público da Região Metropolitana do Recife, enquanto o:
“Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostrou que o brasileiro teria que ganhar um salário mínimo de R$ 2.398,82, em janeiro, para suprir suas necessidades básicas, como alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência. Ou seja, o salário mínimo deveria ser 3,86 vezes maior do que o que está em vigor - de R$ 622,00.” [3]
A Grande Recife Consórcio (Grupo de Empresas de ônibus) detém a concessão pública do Estado para transportar pessoas na RMR. O estranho e inquestionável por nossa sociedade, mídia, partidos de “esquerda” etc. é que essas empresas não competem entre si tal como pressupõe a concessão pública. Ao contrário, o termo “cartel” seria mais interessante de ser posto ao Grande Recife, visto que apenas quatro famílias e um vereador possuem 11 empresas de ônibus que representam quase toda a frota de transporte público na capital Pernambucana. O nosso governador tem questionado isso durante suas campanhas eleitorais, inclusive no vídeo que fala que faz parte da política de seu partido (PSB) diminuir os preços das tarifas. (vide vídeo) [4]
Vale lembrar que apesar da capa da Folha de Pernambuco mostrada acima várias vezes textos tanto no Diário de Pernambuco, como no Jornal do Commercio, a TV Jornal, a TV Tribuna e TV Clube apoiavam a causa e o protesto pacifico. Conversei com alguns jornalistas, inclusive ancoras nacionais que cobriam os protestos, e ouvia claramente que a direção do jornal alterava e moldava as matérias. A critica aqui se põe ao papel que a empresa midiática assume ao tornar o patrocinador mais importante que o leitor. Um exemplo interessante disse foi apresentador Cardinot que apoiou os estudantes e chegou até a divulgar os protestos nas rádios em que apresenta programas. É de se esperar que o diretorias de redação tenham sido chamadas atenção, caso que suponho ser da mesma capa da Folha de Pernambuco. (vide o vídeo de Cardinot no fim do texto).
Soledade sem Solidariedade
No dia 24 de janeiro, novamente a Policia Militar de Pernambuco atacou estudantes que estavam fazendo passeata pacifica na Avenida Conde da Boa Vista. Estive presente nos momentos de tensão e presenciei na Rua da Soledade a cena em que um PM dá uma chave de braço em uma garota de 14 anos e saca a arma de fogo para que ninguém se aproximasse dele.
Uma foto que comoveu o Estado e se espalhou pelas redes foi de uma estudante de Fisioterapia que estava indo almoçar e foi abordada por um PM que também lhe deu uma chave de braço. Entre gritos de desespero e sprays de pimenta (fui atingido diretamente no rosto por um spray quando tentava segurar uma garota que recebia um mata leão). A sensação de levar um spray no rosto é a pior possível, ficar sem enxergar é o mínimo diante da dor que toma conta do rosto, nariz, boca, olhos... É de fato desesperador.
Aos gritos, corri para não ser preso, coisa que, aliás, chegou a ser feita com a jornalista do Diário de Pernambuco Juliana Colares, que, ao ser vista por PMs tirando fotos da violência policial, recebeu voz de prisão e foi encaminhada ao carro da PM – após mostrar documentos que provaram que era uma jornalista é que ela foi liberada. Outras pessoas que estavam tirando fotos tiveram seus aparelhos confiscados por policiais.
A agressão era gratuita, as mulheres pareciam ser o alvo, e caso alguém tentasse impedir também seria agredido e preso – foi o meu caso, eis o motivo do spray no rosto e do estudante de Música que levou um murro no rosto e foi socorrido. Correndo em direção ao Derby avistei um PM agredindo uma garota e agarrando-a para imobilizá-la, cerca de 7 pessoas tentaram saber porque ela teria recebido voz de prisão, o PM com cerca de 1,80 de altura não respondia e apenas falava que queria levar ela para o carro. Indignadas, as 7 pessoas conseguiram após muita insistência arrancar a garota dos braços do PM.
Enquanto isso na Rua da Soledade outros manifestantes ofereciam flores a Tropa de Choque, como critica a violência gratuita promovida pelo Estado.
Lembro-me bem das palavras do comandante do Choque durante protesto da Marcha das Vadias ocorrido em 2011 em que disse: “Eu sou o ESTADO, tenho o poder e faço o que me mandam, não quero ninguém na rua e se não obedecer nós resolvemos!”. Minutos depois, um PM chama um manifestante de “frango”(sic).
Não apenas em Recife, mas também em Pinheirinho, em Fortaleza, em Teresina e outras capitais do Brasil, tem se visto a cada dia o poder, no qual o Estado se abarca, ser usado contra a própria população que questiona as políticas injustas aplicadas e também por cobrar promessas não cumpridas, como no caso do nosso Governador Eduardo Campos.
De fato, o que se percebeu no Recife é que os jovens através do Facebook conseguiram se articular sem a interferência da mídia. Partidos, organizações estudantis e estudantes não ligados a nenhuma “agremiação” propagaram o questionamento, sobre o que seria justo a ser pago por um transporte que deveria permitir a livre circulação de pessoas na RMR, e se indagaram sobre a desculpa de que a lógica de aumento e repasse através da inflação seria algo justo a ser cobrado.
Somos meros contribuintes para a riqueza das empresas da Grande Recife, obrigados a escolher se iremos comprar um feijão ou ir ao centro apenas com a passagem de ida. A péssima qualidade do serviço público de transporte no Recife se junta ao preço abusivo. Os que conseguem fugir disso se prendem em carros com ar-condicionado para aguentar horas de engarrafamentos nas vias recifenses.
Como se pensar em gerir um Estado repetindo dia a dia a lógica desenvolvimentista, a mesma que causa engarrafamentos insuportáveis dia a dia e joga cerca de milhares de carros diariamente? Ao invés de pensar como melhorar o sistema público e garantir de fato preço digno e justo para a população, a lógica empresarial vem em primeiro lugar, acima dos ideais morais de gestão pública.
Não foi a toa que as empresas boicotaram o projeto de implementação do Veículo Leve sobre Trilhos – uma espécie de metrô leve de superfície de alta tecnologia e pouco poluente que garantiria uma viagem no mínimo digna à população – que ligaria Cabo de Santo Agostinho até Igarassu. Para o Grande Recife Consórcio, esse investimento não valia a pena, porque obviamente seus lucros não teriam mais crescimento exponencial. Afinal é mais interessante lotar ônibus e cobrar R$2,15 ou R$3,25 do que garantir o direito do Estado pelo qual essas empresas foram nomeadas. O projeto foi engavetado dando lugar aos ônibus, é claro.
E os intelectuais com isso?
É com pesar e indagação que vejo parte da academia e dos intelectuais não manifestando a respeito, não apenas sobre a agressão que estudantes têm sofrido durantes os atos, como também pela censura que a Secretaria de Defesa Social tem promovido ao intimar pessoas que estavam organizando os protestos sobre alegação de estar formando “baderna” e também pessoas que manifestavam publicamente via Facebook apoio aos protestos.
Além disso, o não questionamento a respeito do nosso modelo econômico parece ter pairado na academia e nas discussões teóricas, e quando de fato alunos e a juventude vão aplicar nas ruas e nas redes de internet o que se pensa nas salas, são agressivamente reprimidos.
O silêncio de parte da intelectualidade acadêmica de Pernambuco incomoda os estudantes, os seus alunos de sala não apenas por saber que eles haviam passado pela mesma sala de aula décadas atrás, mas também pelo fato de que a solidariedade por vezes é silenciosa e até um ato de violência vista como algo “normal” de se ver no Brasil, alguns caem na relativização dos fatos.
Qual o papel do intelectual então? Ater-se aos ofícios burocráticos de fato é incômodo e preciso, mas quanto ao seu compromisso de construção de pensamentos, indagações que visem a construção e reflexão não apenas cientifica mas social, humanística. Enquanto alguns estudantes apanhavam nas ruas, por viver lá fora o que se escreve nas provas, por vezes não viram o apoio e indignação do que se passava no Recife vinda desses intelectuais.
A necessidade desse reconhecimento da luta e da mobilização social não é para que se ganhe legitimidade, não é para que se fixe a ideia da transferência na qual o status de intelectual garanta que o protesto é correto, mas sim para que se perceba que o que se passa nas ruas também é resultado desses mesmos intelectuais e também é fonte para que eles permaneçam a questionar e a construir o conhecimento. É como escrever os fatos e as digressões destes em momentos sociais cabíveis, entretanto não se lutar com/junto a eles e nem apoiá-los. Os manifestantes não queriam apenas que todos os intelectuais estivessem ali nas ruas junto a eles. Queriam, sim, manifestar que aquilo também lhes pertencia.
Como já se diz no livro em comemoração aos 150 anos do Manifesto do Partido Comunista de Coutinho et al (1998) [6], é preciso que os intelectuais abram suas janelas da sala, do escritório dos gabinetes e olhem para a transformação que ocorre no momento em que se está presente. Não é uma mera critica ao que alguns chamam de “academicismo” mas sim um aviso para os que se prendem em burocracias e questões intelectuais. Olhem para as ruas, vejam e presenciem e vivam para se sentir um intelectual de fato.
Aliás, se até Cardinot se emocionou...
Referências
1 – [http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=_XDpMcFgwhM]
2 – [http://www.ufpe.br/proext/index.php?option=com_content&view=article&id=1211:nota-a-comunidade-universitaria-sobre-episodio-envolvendo-estudantes-no-movimento-contra-o-aumento-da-passagem-de-onibus&catid=6&Itemid=122]
3 – [http://oglobo.globo.com/economia/salario-minimo-deveria-ser-de-239882-diz-dieese-3894268]
4 – [http://www.youtube.com/watch?v=ay0_1bSjrt0]
5 – [http://jconlineblogs.ne10.uol.com.br/deolhonotransito/2012/01/19/imprensa-nao-tera-acesso-a-reuniao-sobre-aumento-das-passagens/]
6 -
Coutinho et al. Manifesto Comunista 150 anos Depois. São Paulo: Perseu Abramo, 1998.