Talvez tenha chegado a hora de revisar a história recente da teoria sociológica e trazer alguma ordem à galáxia da microssociologia. A fim de focar a atenção do leitor, proponho renomear a microssociologia. Chamá-la-ei ‘nanossociologia’ por duas razões: primeiro, por estar cansado da já banalizada história envolvendo as relações entre agência e estrutura e desejar contornar por completo todo o debate acerca da ligação micro-macro; segundo, pelo fato de o termo micro não se referir a um domínio da existência social, e sim a um olhar, uma determinada maneira de perscrutar as minúcias da vida social visando descobrir como os atores habilmente a viabilizam. Não existe razão pela qual o microscópio sociológico deva se deter no nível molecular e não explorar o infinita ou infinitesimalmente pequeno. A sociedade é em última instância constituída de indivíduos, mas como nos diz Gabriel Tarde em seu Monadologia e Sociologia, os últimos elementos alcançados pela ciência são eles mesmos complexos e compostos [1]. E se alguém não desejar enfocar indivíduos, porém, como os pragmatistas, os interacionistas simbólicos e os etnometodólogos, optar por investigar situações de ação, por que não levar a empreitada às últimas consequências e investigar curtas sequências de ação que poderiam variar de algumas horas a alguns minutos ou mesmo segundos?
Atualmente, tornou-se lugar comum nas introduções à sociologia uma apresentação da história recente da disciplina em termos da antinomia entre agência e estrutura ou ação e ordem – como se os sociólogos tivessem que ter esperado por Jeffrey Alexander, Pierre Bourdieu ou Tony Giddens para encontrar uma teoria dialética das práticas que resolvesse o dilema. Esta história canônica não é somente infrutífera e repetitiva; é sobretudo enganadora. Quem quer que considere a ‘microrrevolução’ californiana dos anos 1960 sem os antolhos do debate agência-estrutura não deixará de observar que Goffman, Garfinkel e Harvey Sacks, os campeões da análise situacional, eram obcecados com a questão da ordem. Para eles, o desafio consistia em demonstrar a natureza ordenada da vida cotidiana. Esperar por um ônibus, dirigir em uma autoestrada, portar-se como os playboys do posto 8, observar por um microscópio, todas essas atividades comuns são ordenadas, quer dizer previsíveis, testemunháveis, relatáveis enquanto atividades orquestradas em situações concretas. Da mesma forma, eles não opunham agência e estrutura, mas encontravam ‘estrutura’ em todos os níveis da sociedade e, particularmente, no nível ‘nano’ da ação.
Com efeito, ao invés de opor agência e estrutura, se poderia igualmente opor ação à prática e, assim, distinguir entre várias microssociologias conforme elas enfoquem o ator de dentro ou de fora, à medida que elas adotem a perspectiva em primeira pessoa do participante ou a perspectiva de terceira pessoa do observador, ou ainda que elas tentem interpretar o comportamento social ou simplesmente descrevê-los. Enquanto que a sociologia da ação é uma sociologia interpretativa que pode legitimamente reivindicar sua origem nas páginas iniciais de Economia e Sociedade [2], a sociologia da prática é uma sociologia descritiva que encontra sua inspiração central não em Weber, tampouco em Marx, mas em Durkheim.
Oriundos da fenomenologia e do pragmatismo, os autores mencionados leram criativamente Durkheim (ou o ‘desinterpretaram’, como o Garfinkel tardio instruía seus orientandos), projetando sua análise estruturalista dos fatos sociais para o nível micro. Entre uma sociologia fenomenológica da ação que investiga as motivações, significados e tipificações dos atores e enfatiza a intencionalidade e a reflexividade de um lado e, de outro, uma sociologia microestruturalista das práticas que descreve sequências ordenadas de ações situadas por agentes anônimos que rotineiramente fazem o que fazem sem muita reflexão, encontra-se a sociologia da interação que analisa como os atores definem as situações em que estão inseridos de modo a coordenar suas ações com outros agentes na mesma situação. Esta sociologia interacionista da ação, que remonta a Georg Simmel, Marcel Mauss ou G. H. Mead, pode seguir ambos os caminhos. Quando acentua a conexão entre agência e cultura e concebe a linguagem como o meio simbólico que possibilita a Ego e Alter coordenarem suas ações e agirem juntos, se coaduna à teoria fenomenológico-hermenêutica da ação de Weber, Schütz e Parsons. No entanto, quando enfoca mais a situação da ação do que os atores propriamente ditos para analisar como os agentes sociais se deparam com injunções situacionais formando um microssistema que condiciona rigorosamente suas práticas, ela se associa à teoria das práticas de Goffman, Garfinkel e Wittgenstein.
Notas
* Esta é uma versão ligeiramente modificada de texto a ser publicado no Cadernos do Sociofilo, no. 2. A tradução do inglês foi de Thiago Panica Pontes.
[1] Tarde, G. (1999): “Monadologie et sociologie”, Oeuvres de Gabriel Tarde, vol. 1, p. 36. Paris: Les empêcheurs de penser em rond.
[2] "Sociologia… é a ciência que procura compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e consequências".
3 comentários:
Digamos, então, que apesar da nanosociologia a teoria social continua brigando para (re)construir uma teoria que (re)concilie as antípodas da agência e da estrutura...one step forward, two steps backwards?
Como faz bem à imaginação sociológica ler um texto de Vandenberghe, né? Ouvi-lo em mesas redondas, também. Sou fã quase incondicional!
Sei não, José. Creio que a abordagem é meio rortiana (ou será wittgensteiniana?). Algo na linha "vamos mudar de assunto?".
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