José Luiz Ratton
Professor
e Pesquisador do Departamento de Sociologia e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco
O crack é uma forma fumável da cocaína que produz efeitos
intensos, curtos e quase instantâneos em quem o utiliza e que possui
elevadíssima natureza aditiva. Sua venda é realizada em quantidades
bastante fracionadas e possibilita lucros relativamente altos para os
diferentes tipos de “traficantes”, o que funciona estruturalmente
como um estímulo para o que pode ser chamado de “empreendedorismo”
neste mercado. Em outras palavras, as condições logísticas para o
comércio varejista desta substância não são difíceis, aumentando
potencialmente a chance de mais indivíduos participarem do mercado
de crack como vendedores ilegais.
A literatura internacional indica e as evidências empíricas da
pesquisa brasileira sobre o tema confirmam que o crack é uma
inovação tecnológica no mercado de cocaína que produziu
diferentes impactos: expandiu-se, atingindo um amplo público
consumidor nos estratos sociais mais baixos e interiorizou-se,
tornando-se uma droga ilícita largamente comercializada não apenas
nos grandes centros urbanos, mas também nas pequenas e médias
cidades.
O grande número de indivíduos envolvidos na venda de crack e os
elevados níveis de endividamento observados neste mercado – tanto
entre usuários e traficantes, quanto entre pequenos e médios
traficantes - são elementos explicativos fundamentais para a
compreensão dos altos patamares de conflitualidade presentes no
mercado do crack. Alguns pesquisadores que investigam o tema no país
sugerem a existência de associação entre a expansão do mercado
desta droga e o aumento dos crimes contra a vida, o que ainda está
por ser demonstrado. Não está claro se a elevação das taxas de
homicídio em vários estados brasileiros (no Sul, no Centro-Oeste,
no Nordeste e no Norte) nos últimos anos, está relacionada de
alguma forma com a introdução e a expansão do crack nestes
estados. Na mesma linha, outra pergunta importante e que ainda não
tem resposta conclusiva é se a permanência e a resiliência de
altos patamares de violência nos mesmos territórios dentro de
várias das grandes cidades brasileiras - inclusive naquelas que
observaram redução das mortes violentas nas últimas décadas –
pode ser explicada parcialmente pelas dinâmicas conflitivas do
mercado do crack, que intensificaram e consolidaram processos sociais
violentos ali instalados previamente.
Parece razoável afirmar que, a despeito dos exageros retóricos de
parte dos meios de comunicação, o Brasil vive, desde o final da
década de 1990 (em São Paulo um pouco antes) uma expansão
epidêmica do crack. O aumento expressivo do número de apreensões
desta droga pelas polícias brasileiras e o aumento do número de
internações relacionadas ao consumo abusivo da substância são
indicadores de que estamos (ou estávamos) diante de um processo
epidêmico. Um aspecto importante presente em quaisquer das
“epidemias de drogas”, inclusive a do crack, é que elas
apresentam dinâmicas evolutivas, etapas e ciclos – que obviamente
têm condicionantes políticos, econômicos, culturais e psicológicos
– que devem ser compreendidos na sua singularidade, se quisermos
produzir algum tipo de efeito adequado sobre elas, no plano das
políticas públicas. O reconhecimento de que diferentes mercados de
drogas passam por processos de desenvolvimento que envolvem a
expansão aguda, estabilização e declínio pode nos ajudar a
entender de forma pragmática o que de melhor pode ser feito em cada
um destes estágios. Neste sentido, a literatura sobre o tema nos
Estados Unidos indica que a estabilização e decadência do mercado
do crack naquele país deveu-se mais a mecanismos internos de
controle do próprio mercado do que a ruidosas e ineficientes
políticas de guerra às drogas.
As considerações acima não devem conduzir ao imobilismo político.
O que se quer ressaltar é que a compreensão das complexidades do
mercado do crack é condição necessária para a construção de
políticas mais efetivas neste campo. Assim, tanto estratégias
coercitivas, centradas no aumento dos custos da distribuição, como
preventivas, dirigidas para a minimização dos danos sociais e para
a construção de mecanismos específicos e focalizados de
assistência e proteção para usuários e dependentes mais
vulneráveis, no plano do consumo, devem levar em consideração os
diferentes estágios de estruturação do mercado do crack.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal Estado de São Paulo no dia 27 de janeiro de 2013. Agora, gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.
3 comentários:
Muito bom ler um texto sobre o crack no Brasil, escrito por quem sabe do que está falando. Eu sou quase absolutamente senso-comum sobre esse problema, tendendo a vivê-lo como uma epidemia assustadora. Neste sentido e,provavelmente influenciada pela cinematografia norte-americana sobre as relações máfia/políticos, cheguei a delirar, pensando que se eu fosse responsável política, a própria Dilma, entraria em negociação secreta com traficantes, buscando um acordo para a diminuição da distribuição. Você fala em medidas coercitivas para aumentar os custos da distribuição. Pergunto: como exercer isso sobre num mercado ilegal, se não com políticas de guerra às drogas? E estas, você bem o diz, são ineficientes...
Tâmara,
A conversa é longa e prometo respondê-la com mais vagar nos próximos dias. Posso adiantar contudo que em um contexto em que no curto e médio prazo não se alteram as condições políticas e institucionais para a descriminalização, a combinação de alternativas coercitivas seletivas, por um lado, e as alternativas de redução de danos e preventivas, por outro, podem ser bem sucedidas. Uma forma de exercer a coerção de forma inteligente é definir prioridades a partir de valores. Assim a polícia priorizaria intervenções coercitivas sempre que houvesse algum tipo de produção da violência e ameaça à vida. Por exemplo, se o tráfico de crack em uma dada região produz morte violenta, a polícia obrigatoriamente teria que entrar, identificar os eventuais suspeitos e submetê-los aos procedimentos legais adequados e rigorosos. A repetição de tais fatos não acabará com a venda de crack mas sinalizará para os que nele estão envolvidos que a produção de mortes violentas ou de violência não será tolerada. A atuação coercitiva da polícia, neste caso, "civiliza" indiretamente o mercado da droga, se for repetida, pois aumenta os custos da morte violenta para os "traficantes", que querem manter seu negócio. Obviamente isto precisa ser muito bem construído, nos níveis centrais de governança das polícias e da área de segurança pública. Existem experiências interessantes deste tipo que tem produzido bons resultados.
A policia chega com a coerção violenta somente aonde não tem política.
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