domingo, 3 de fevereiro de 2013

O Mercado do Crack e seus paradoxos (ou a desumanização a varejo) (Parte I)

-->


José Luiz Ratton

Professor e Pesquisador do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco

O crack é uma forma fumável da cocaína que produz efeitos intensos, curtos e quase instantâneos em quem o utiliza e que possui elevadíssima natureza aditiva. Sua venda é realizada em quantidades bastante fracionadas e possibilita lucros relativamente altos para os diferentes tipos de “traficantes”, o que funciona estruturalmente como um estímulo para o que pode ser chamado de “empreendedorismo” neste mercado. Em outras palavras, as condições logísticas para o comércio varejista desta substância não são difíceis, aumentando potencialmente a chance de mais indivíduos participarem do mercado de crack como vendedores ilegais.

A literatura internacional indica e as evidências empíricas da pesquisa brasileira sobre o tema confirmam que o crack é uma inovação tecnológica no mercado de cocaína que produziu diferentes impactos: expandiu-se, atingindo um amplo público consumidor nos estratos sociais mais baixos e interiorizou-se, tornando-se uma droga ilícita largamente comercializada não apenas nos grandes centros urbanos, mas também nas pequenas e médias cidades.

O grande número de indivíduos envolvidos na venda de crack e os elevados níveis de endividamento observados neste mercado – tanto entre usuários e traficantes, quanto entre pequenos e médios traficantes - são elementos explicativos fundamentais para a compreensão dos altos patamares de conflitualidade presentes no mercado do crack. Alguns pesquisadores que investigam o tema no país sugerem a existência de associação entre a expansão do mercado desta droga e o aumento dos crimes contra a vida, o que ainda está por ser demonstrado. Não está claro se a elevação das taxas de homicídio em vários estados brasileiros (no Sul, no Centro-Oeste, no Nordeste e no Norte) nos últimos anos, está relacionada de alguma forma com a introdução e a expansão do crack nestes estados. Na mesma linha, outra pergunta importante e que ainda não tem resposta conclusiva é se a permanência e a resiliência de altos patamares de violência nos mesmos territórios dentro de várias das grandes cidades brasileiras - inclusive naquelas que observaram redução das mortes violentas nas últimas décadas – pode ser explicada parcialmente pelas dinâmicas conflitivas do mercado do crack, que intensificaram e consolidaram processos sociais violentos ali instalados previamente.

Parece razoável afirmar que, a despeito dos exageros retóricos de parte dos meios de comunicação, o Brasil vive, desde o final da década de 1990 (em São Paulo um pouco antes) uma expansão epidêmica do crack. O aumento expressivo do número de apreensões desta droga pelas polícias brasileiras e o aumento do número de internações relacionadas ao consumo abusivo da substância são indicadores de que estamos (ou estávamos) diante de um processo epidêmico. Um aspecto importante presente em quaisquer das “epidemias de drogas”, inclusive a do crack, é que elas apresentam dinâmicas evolutivas, etapas e ciclos – que obviamente têm condicionantes políticos, econômicos, culturais e psicológicos – que devem ser compreendidos na sua singularidade, se quisermos produzir algum tipo de efeito adequado sobre elas, no plano das políticas públicas. O reconhecimento de que diferentes mercados de drogas passam por processos de desenvolvimento que envolvem a expansão aguda, estabilização e declínio pode nos ajudar a entender de forma pragmática o que de melhor pode ser feito em cada um destes estágios. Neste sentido, a literatura sobre o tema nos Estados Unidos indica que a estabilização e decadência do mercado do crack naquele país deveu-se mais a mecanismos internos de controle do próprio mercado do que a ruidosas e ineficientes políticas de guerra às drogas.

As considerações acima não devem conduzir ao imobilismo político. O que se quer ressaltar é que a compreensão das complexidades do mercado do crack é condição necessária para a construção de políticas mais efetivas neste campo. Assim, tanto estratégias coercitivas, centradas no aumento dos custos da distribuição, como preventivas, dirigidas para a minimização dos danos sociais e para a construção de mecanismos específicos e focalizados de assistência e proteção para usuários e dependentes mais vulneráveis, no plano do consumo, devem levar em consideração os diferentes estágios de estruturação do mercado do crack.


Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal Estado de São Paulo no dia 27 de janeiro de 2013. Agora, gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.

3 comentários:

Tâmara disse...

Muito bom ler um texto sobre o crack no Brasil, escrito por quem sabe do que está falando. Eu sou quase absolutamente senso-comum sobre esse problema, tendendo a vivê-lo como uma epidemia assustadora. Neste sentido e,provavelmente influenciada pela cinematografia norte-americana sobre as relações máfia/políticos, cheguei a delirar, pensando que se eu fosse responsável política, a própria Dilma, entraria em negociação secreta com traficantes, buscando um acordo para a diminuição da distribuição. Você fala em medidas coercitivas para aumentar os custos da distribuição. Pergunto: como exercer isso sobre num mercado ilegal, se não com políticas de guerra às drogas? E estas, você bem o diz, são ineficientes...

José Luiz Ratton disse...

Tâmara,

A conversa é longa e prometo respondê-la com mais vagar nos próximos dias. Posso adiantar contudo que em um contexto em que no curto e médio prazo não se alteram as condições políticas e institucionais para a descriminalização, a combinação de alternativas coercitivas seletivas, por um lado, e as alternativas de redução de danos e preventivas, por outro, podem ser bem sucedidas. Uma forma de exercer a coerção de forma inteligente é definir prioridades a partir de valores. Assim a polícia priorizaria intervenções coercitivas sempre que houvesse algum tipo de produção da violência e ameaça à vida. Por exemplo, se o tráfico de crack em uma dada região produz morte violenta, a polícia obrigatoriamente teria que entrar, identificar os eventuais suspeitos e submetê-los aos procedimentos legais adequados e rigorosos. A repetição de tais fatos não acabará com a venda de crack mas sinalizará para os que nele estão envolvidos que a produção de mortes violentas ou de violência não será tolerada. A atuação coercitiva da polícia, neste caso, "civiliza" indiretamente o mercado da droga, se for repetida, pois aumenta os custos da morte violenta para os "traficantes", que querem manter seu negócio. Obviamente isto precisa ser muito bem construído, nos níveis centrais de governança das polícias e da área de segurança pública. Existem experiências interessantes deste tipo que tem produzido bons resultados.

Danilo disse...

A policia chega com a coerção violenta somente aonde não tem política.