Em 1993, em reconhecimento ao fato de que as mulheres têm direito de viver uma vida livre de violência, a Organização das Nações Unidas lançou a Declaração da Eliminação da Violência Contra as Mulheres. A fim de contribuir para a implementação de políticas públicas eficazes, em 2003, a Assembleia Geral da ONU, em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e com a Comissão Econômica para a Europa, consensualmente adotou uma resolução solicitando um estudo em profundidade acerca de todas as formas e manifestações de violência contra as mulheres. As dificuldades de um estudo como esse são bem conhecidas de todos aqueles que trabalham com dados internacionais: procedimentos metodológicos distintos que dificultam comparações entre os dados coletados, ausência de dados confiáveis, inexistência de pesquisas sobre o tema, dentre outros. E parte da dificuldade advém do fato de que, até recentemente, a violência contra as mulheres era, por razões culturais, encarada como algo do âmbito privado e, não raro, sancionado pelos Estados (para se ter uma ideia, apenas em 2005 o Código Penal Brasileiro retirou o termo “mulher honesta” de suas definições de estupro e de atentado violento ao pudor, o que, na prática, dividia as mulheres entre as que eram e as que não eram “merecedoras” de proteção institucional).
Dificuldades metodológicas à parte, os dados disponíveis nos permitem afirmar com segurança que a violência contra as mulheres é um fenômeno global que, em sua perversa democratização, tem consequências no âmbito dos direitos humanos, nas dimensões econômicas, políticas e de saúde pública de todas as sociedades, o que não mais justifica a visão de que se trata de algo “apenas” da esfera privada.
Se a violência contra as mulheres é apenas a ponta do iceberg no que se refere às desigualdades de gênero (outras incluem acesso desigual a educação, saúde, previdência e assistência social, bens duráveis e uso do tempo; menores salários; menos poder político), todas elas formas têm em comum aquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu (2010) denominou de violência simbólica: uma violência que, ao contrário da violência física sofrida cotidianamente por mulheres do mundo inteiro, é quase invisível para as suas vítimas e para os seus algozes porque fundamentada em uma ordem simbólica compartilhada por todos e segundo a qual é direito natural de uns dominarem outros. Obviamente que isso não significa dizer que mulheres espancadas, estupradas, assassinadas, são vítimas de violência simbólica apenas, mas que a incorporação dessas relações de poder extremamente desiguais entre homens e mulheres têm um denominador comum na ordem simbólica que ajuda a naturalizá-las, explicando a monótona manifestação de violência física, sexual, psicológica e econômica a que as mulheres têm sido historicamente submetidas. Como afirma o relatório do Departamento de Questões Sociais e Econômicas das Nações Unidas (The World’s Women 2010: Trends and Statistics, p. 126):
A violência contra as mulheres ao longo de seu ciclo de vida é uma manifestação histórica das relações de poder entre mulheres e homens. Ela é perpetuada por meios de práticas tradicionais e costumeiras que atribuem às mulheres um status mais baixo na família, no ambiente de trabalho, na comunidade e na sociedade, e é exacerbada por pressões sociais. Estas incluem vergonha e, portanto, dificuldade em denunciar certos atos contra as mulheres; falta de acesso por parte delas a informação, auxílio ou proteção jurídica; um conjunto de leis que efetivamente proíba a violência contra as mulheres; esforços inadequados por parte das autoridades públicas no sentido de reforçar as leis existentes e promover seu conhecimento; ausência de meios educativos que possam endereçar as causas e consequências da violência.
De acordo com um release das Nações Unidas, em novembro de 2011, 70 por cento das mulheres do mundo inteiro, ou cerca de um bilhão de mulheres, vivencia alguma forma do que pode ser caracterizado de violência contra a mulher durante sua vida. A probabilidade de que uma mulher entre 15 e 44 anos seja estuprada ou vítima de violência sexual é maior do que suas chances de contrair câncer ou desenvolver um acidente vascular cerebral. Abaixo, alguns dados, todos do mesmo documento, que especificam melhor essas cifras:
A forma mais comum de violência física vivenciada por mulheres no mundo inteiro é a cometida por parceiros íntimos e cerca de metade das mulheres assassinadas globalmente são mortas por parceiros ou ex-parceiros:
· Na Austrália, Canadá e Israel, de 40 a 70% das vítimas de assassinato do sexo feminino foram mortas por seus companheiros.
· Nos EUA, um terço das mulheres assassinadas a cada ano foram mortas por seus parceiros íntimos.
· Na África do Sul, a cada seis horas uma mulher é morta por um parceiro íntimo.
· Na índia, no ano de 2007, 22 mulheres foram mortas por dia em assassinatos relacionados ao dote.
A violência sexual, em que pese a subnotificação dos casos, não é menos alarmante:
· O número de mulheres com mais de 15 anos que sofrem violência sexual por parte de não-parceiros varia entre menos de um porcento na Etiópia, a entre 10 e 12% no Peru, em Samoa e na Tanzânia.
· Na Suíça, 22.3 porcento das mulheres vivenciam violência sexual por não-parceiros em algum momento de suas vidas.
· No Canadá, um estudo entre adolescentes de 15 a 19 concluiu que 54% das mulheres experimentaram “coerção sexual” em uma relação de namoro.
No que se refere ao estupro como tática de guerra,
· Na República Democrática do Congo, aproximadamente 1.100 estupros são reportados a cada dia, uma média de 36 mulheres e meninas estupradas todos os dias. Acredita-se que mais de 200.00 mulheres tenham sofrido violência sexual desde o início do conflito armado.
· Entre 250.000 e 500.000 mulheres foram estupradas durante o genocídio em Ruanda, em 1994.
· A violência sexual foi uma característica na guerra civil na Libéria, que durou 14 anos.
· Durante o conflito na Bósnia, no início dos anos de 1990, entre 20.000 e 50.000 mulheres foram estupradas.
A violência durante e após a gravidez também tem sido particularmente documentada e o infanticídio feminino, a seleção do sexo no prenatal e a negligência sistemática de meninas são práticas comuns em partes da Ásia, África e do Oriente Médio. Outras formas de violência contra as mulheres, como a maior exposição ao vírus do HIV, também são conhecidas. De acordo com a mesma fonte, a dificuldade que muitas mulheres enfrentam para negociar o uso da camisinha é grandemente associada à alta incidência do HIV/Aids. Além disso, o sexo não desejado (ao qual mulheres jovens são especialmente vulneráveis) resulta em maiores riscos de abrasões e sangramentos associados à transmissão do vírus. Por fim, são bem documentadas formas de violência como a mutilação genital feminina (com estimativas que variam de 130 a 140 milhões de mulheres que sofreram diversas formas de MGF) e o assédio sexual e moral no mundo do trabalho:
· Estima-se que entre 40 e 50% das mulheres nos países da Comunidade Europeia experienciem avanços sexuais e contatos físicos não-desejados e outras formas de assédio sexual em seus ambientes de trabalho.
· Nos EUA, 83% das meninas entre 12 e 16 anos experimentam alguma forma de assédio sexual em escolas públicas.
No Brasil, alguns estudos e fontes mostram tendências semelhantes. Documentos como o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (p. 16) mencionam estudos segundo os quais “aproximadamente 24% das mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica. Quando estimuladas por meio da citação de diferentes formas de agressão, esse percentual sobe para 43%. Um terço afirma, ainda, já ter sofrido algum tipo de violência física, seja ameaça com armas de fogo, agressões ou estupro conjugal”.
E as estatísticas do horror podem se estender e se estender. Mas nosso objetivo aqui é outro: o que pretendemos ilustrar com esses dados (inclusive em sua fragilidade) é que, dada a ordem simbólica que ajuda a estruturar esses fenômenos, nada mais adequado do que aliar às políticas públicas diretamente voltadas à erradicação da violência contra as mulheres manifestações culturais e políticas que ajudem a desnaturalizá-la. O Um Bilhão que se Ergue, assim como a Marcha das Vadias - que dentre outras pautas reafirma a não aceitação da culpabilização da mulher nos casos em que são vítimas de violência sexual-, tem como objetivo usar a dança e outras expressões artísticas e corporais para convocar as nações a se erguerem e lutarem contra a opressão e violência perpetrada contras mulheres e meninas.
Concebido pela organização V-Day, que tem à sua frente a ativista e teatróloga Eve Ensler, o Um Bilhão que se Ergue tem envolvido cerca de 13.000 atividades diferentes em cerca de 190 países. Em sua maioria, ocorreram no dia 14 de fevereiro, dia de São Valentino, padroeiro dos namorados em parte do mundo (a do vídeo aí de cima foi em Zurique, Suíça). Em Recife, devido às comemorações momescas, a organização local decidiu pelo dia 16 de fevereiro.
E você, vai ficar aí parad@?
Um Bilhão que se Ergue - Recife
Onde: Marco Zero, Recife
Quando: 16 de Fevereiro de 2013, às 19:00h.
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