Por Tâmara de Oliveira (UFS/DCS)
Conheci Robert Castel em Marselha no ano de 2008, num evento de uma instituição escolar para adolescentes que fracassaram no sistema de ensino regular – L’École de la deuxième chance. Vi um velhinho gripado e frágil, extremamente diminuído fisicamente. Mas quando falou no evento, com sua voz baixa e mal calibrada, manifestou-se um grande sociólogo, aquele capaz de falar, a um público não universitário, com a imaginação sociológica do/no mundo.
Na hora do coquetel, aproximei-me, apresentei-me e manifestei-me fã. Ele ficou constrangidissímo; não era homem de espetáculo, mas da vida do pesquisar, pensar e agir (por isso estava naquele evento). Que uma brasileira socióloga venha lhe falar do quanto o admirava, isso o deixava cabreiro, tipo, “essa moça pensa que sociologia é show business?” É uma de minhas vergonhas intransponíveis: ter me aproximado de Robert Castel com o comportamento de uma adolescente fã de Justin Bieber.
No início de sua carreira Castel foi muito aproximado ao que Bourdieu fazia, mas, quando se concentrou num domínio específico da sociologia, o do mundo do trabalho assalariado e de suas relações com o Estado e com o capital, Castel desenvolveu um trabalho autônomo, cada vez mais independente de quaisquer modelos teórico-metodológicos; cada vez mais se apropriando do saber histórico, descritivo e analítico para construir sua sociologia do trabalho e da questão social de ontem e de hoje; cada vez mais preocupado com uma sociologia que renda à sociedade o que a esta, parece-me, é devido: a restituição do que a sociologia consegue lhe entender e propor.
Numa de suas entrevistas dos últimos anos de vida, lá entre 2008/2010, Castel esclareceu o que fazia com que, apesar de sua extrema fragilidade física, ele continuasse a estudar, descrever e tentar intervir sobre as questões sociais contemporâneas que, para ele, eram resultado da “degradação da sociedade salarial” – esta sociedade de interação entre o Estado do Bem-Estar Social e o regime fordista de acumulação, em que um “compromisso social” se construiu em nome de uma relativa redistribuição das riquezas socialmente produzidas. Essas questões seriam três: socioeconômica, urbana e étnica, todas globalizadas ou “globalizáveis”, abordadas a partir de suas dinâmicas articuladas mais visíveis: precariação do mundo do trabalho; recrudescimento e complexificação das desigualdades sociais; segregações urbanas; etnicização dos conflitos sociais.
Castel se preocupava muito com a juventude vivendo nesse admirável mundo novo, de “degradação da sociedade salarial”, no qual a socialização de quem nasce nos lados negativamente segregados significa, em geral, pouquíssimas chances de sucesso escolar e de inserção regular no mundo do trabalho globalizado (precário, flexível e hipercompetititvo). No caso da França, Castel se preocupava também com a parte da juventude que tinha ascendência imigrante nas ex-colônias que, segundo ele, além de crescerem em espaços urbanos socioeconômicamente desfavoráveis, viviam sob o estigma de uma marca indelével de “estrangeiros”, “naturalmente” incompatíveis com a escola, o trabalho, a cidadania, etc. Jovens que nascem e crescem com tudo contra eles, mas sobre os quais, sócio-cultural e politicamente, ergue-se a perversa responsabilização de sua própria sorte – responsabilização resultante de uma lógica societal individualista, ou seja, dissimuladora das articulações entre fracasso individual e estruturas sociais.
E era porque tinha essas preocupações que Robert Castel enfrentou sua gripe de homem velho e viajou até Marselha, para dialogar com jovens franceses que fracassaram no sistema francês de ensino regular, mas que insistiam em aproveitar as migalhas de um Estado do Bem-estar Social degradado: a chance de voltar à escolarização, numa escola de segunda chance. Minha chance, também, de conhecer um grande sociólogo – um que sabia exercer a imaginação sociológica.
Robert Castel morreu no dia 12 de março de 2013, às vésperas de completar 80 anos de idade. Morte discreta, pouco divulgada até no mundo acadêmico, e, ironia inevitável do mundo do espetáculo e das redes sociais, alardeada nos facebooks ou twitters da vida como se tivesse sido um falso anúncio da morte de um ator francês (que não sei de onde saiu). Admirável mundo novo...Pequeno imenso Robert Castel.
Conheci Robert Castel em Marselha no ano de 2008, num evento de uma instituição escolar para adolescentes que fracassaram no sistema de ensino regular – L’École de la deuxième chance. Vi um velhinho gripado e frágil, extremamente diminuído fisicamente. Mas quando falou no evento, com sua voz baixa e mal calibrada, manifestou-se um grande sociólogo, aquele capaz de falar, a um público não universitário, com a imaginação sociológica do/no mundo.
Na hora do coquetel, aproximei-me, apresentei-me e manifestei-me fã. Ele ficou constrangidissímo; não era homem de espetáculo, mas da vida do pesquisar, pensar e agir (por isso estava naquele evento). Que uma brasileira socióloga venha lhe falar do quanto o admirava, isso o deixava cabreiro, tipo, “essa moça pensa que sociologia é show business?” É uma de minhas vergonhas intransponíveis: ter me aproximado de Robert Castel com o comportamento de uma adolescente fã de Justin Bieber.
No início de sua carreira Castel foi muito aproximado ao que Bourdieu fazia, mas, quando se concentrou num domínio específico da sociologia, o do mundo do trabalho assalariado e de suas relações com o Estado e com o capital, Castel desenvolveu um trabalho autônomo, cada vez mais independente de quaisquer modelos teórico-metodológicos; cada vez mais se apropriando do saber histórico, descritivo e analítico para construir sua sociologia do trabalho e da questão social de ontem e de hoje; cada vez mais preocupado com uma sociologia que renda à sociedade o que a esta, parece-me, é devido: a restituição do que a sociologia consegue lhe entender e propor.
Numa de suas entrevistas dos últimos anos de vida, lá entre 2008/2010, Castel esclareceu o que fazia com que, apesar de sua extrema fragilidade física, ele continuasse a estudar, descrever e tentar intervir sobre as questões sociais contemporâneas que, para ele, eram resultado da “degradação da sociedade salarial” – esta sociedade de interação entre o Estado do Bem-Estar Social e o regime fordista de acumulação, em que um “compromisso social” se construiu em nome de uma relativa redistribuição das riquezas socialmente produzidas. Essas questões seriam três: socioeconômica, urbana e étnica, todas globalizadas ou “globalizáveis”, abordadas a partir de suas dinâmicas articuladas mais visíveis: precariação do mundo do trabalho; recrudescimento e complexificação das desigualdades sociais; segregações urbanas; etnicização dos conflitos sociais.
Castel se preocupava muito com a juventude vivendo nesse admirável mundo novo, de “degradação da sociedade salarial”, no qual a socialização de quem nasce nos lados negativamente segregados significa, em geral, pouquíssimas chances de sucesso escolar e de inserção regular no mundo do trabalho globalizado (precário, flexível e hipercompetititvo). No caso da França, Castel se preocupava também com a parte da juventude que tinha ascendência imigrante nas ex-colônias que, segundo ele, além de crescerem em espaços urbanos socioeconômicamente desfavoráveis, viviam sob o estigma de uma marca indelével de “estrangeiros”, “naturalmente” incompatíveis com a escola, o trabalho, a cidadania, etc. Jovens que nascem e crescem com tudo contra eles, mas sobre os quais, sócio-cultural e politicamente, ergue-se a perversa responsabilização de sua própria sorte – responsabilização resultante de uma lógica societal individualista, ou seja, dissimuladora das articulações entre fracasso individual e estruturas sociais.
E era porque tinha essas preocupações que Robert Castel enfrentou sua gripe de homem velho e viajou até Marselha, para dialogar com jovens franceses que fracassaram no sistema francês de ensino regular, mas que insistiam em aproveitar as migalhas de um Estado do Bem-estar Social degradado: a chance de voltar à escolarização, numa escola de segunda chance. Minha chance, também, de conhecer um grande sociólogo – um que sabia exercer a imaginação sociológica.
Robert Castel morreu no dia 12 de março de 2013, às vésperas de completar 80 anos de idade. Morte discreta, pouco divulgada até no mundo acadêmico, e, ironia inevitável do mundo do espetáculo e das redes sociais, alardeada nos facebooks ou twitters da vida como se tivesse sido um falso anúncio da morte de um ator francês (que não sei de onde saiu). Admirável mundo novo...Pequeno imenso Robert Castel.